Fala-se muito da violência doméstica sob a forma de agressão do homem à mulher e raramente o contrário.
É certo que este ano foram assassinadas algumas mulheres por maridos e companheiros e as queixas de mulheres foram muito grandes. Mas, a violência da mulher sobre os maridos e filhos raramente é comentada e eu não sei se é atualmente muito ou pouco praticada porque nunca falo com casais sobre as suas vidas domésticas.
Contudo, recordo de uns casos contados por um colega de escola que conheci primeiro em 1945 quando andávamos na Infantil da Escola Alemã na Palhavã. Com o fim da guerra, a escola fechou e eu mais alguns colegas portugueses e alemães fomos para o Colégio Valsassina, situado então ali perto num enorme palácio na Av. António Augusto de Aguiar. Talvez não fosse tão grande como parecia a um miúdo de cinco a seis anos de idade. Aquilo era um salão central de dois andares rodeado de quartos que serviam de salas de aula e no primeiro andar havia um bela galeria ornamentada.
Da Infantil nesse ano passámos depois para a Primária, pois ali nas chamadas Avenidas Novas só havia aquela escola e a escola da Câmara na Rua de S. Sebastião onde íamos fazer os exames da terceira e da quarta classe. Era uma escola mandada construída pelo Marquês de Pombal que ainda existe. Salazar não fez nada pelo ensino naquela zona da cidade. Ele detestava mesmo tudo o que fosse mais do que a quarta classe. O liceu Camões foi feito pela monarquia liberal e inaugurado já nos tempos da República.
O colega com quem eu me dava mais vivia perto da minha casa, pelo que íamos sempre juntos a pé para casa e vice-versa.
Eu e mais uns amigos tínhamos-lhe dado a alcunha de “O Manguito” pela mania que tinha de fazer manguitos a toda a gente. Ele era também um “mestiço” luso-germânico pelo que falávamos sempre em alemão e usávamos os piores palavrões em bom português no meio da conversa, o que arreliava muito a jovem professor da primária. É que a escola alemã não tinha ensinado palavrões em alemão, enquanto os portugueses ouvíamos por toda a parte. Era o tempo em que as peixeiras andavam descalças e os filhos também.
Um dia, o Manguito apareceu na escola com um grande penso na testa e uma fita em torno a segurar aquilo. A professora perguntou logo o que lhe tinha acontecido e respondeu que andava às cavalitas do irmão mais velho e caiu para a frente, batendo com a testa numa parede.
No regresso para casa, o manguito disse-me, “é pá, não caí nada, foi a minha mãe que me atirou uma escova enorme à cabeça”. Porra, disse-lhe eu, mas porque foi? Ora, ela chamou-me e respondi-lhe “o que é que a pichota quer; ela correu atrás de mim em volta da mesa da casa de jantar e não conseguia apanhar-me, pelo que me atirou a escova à cabeça”. Pá, ela depois arrependeu-se quando me levou ao “Curry Cabral” para fazerem uns pontos e comprou-me aquele carrito que eu queria ter.
Mas, a tua mãe tem esse hábito de atirar coisas á cabeça dos filhos? “Mais ou menos”, respondeu o Manguito. “A especialidade da minha mãe é atirar tudo à cabeça do meu pai, não há semana em que não tenha uma fúria e atire-lhe pratos até com comida ou jarras e panelas. O meu pai é um bom homem e nunca levantou a mão contra a minha mãe nem contra nós.”
“Pá, um dia ela atirou um prato cheio de comida, o meu pai desviou-se, mas ficou todo sujo. Outra vez pegou numa cadeira e quis partir-lhe a cabeça. O meu pai agarrou a cadeira e empurrou-a de maneira que se estatelou no chão.”
Há dias, disse-me ainda o Manguito: “vi a minha mães a lavar muito uns bifes e tinha atirado com um para o caixote de lixo e perguntei-lhe porque é que fazia isso. Ela respondeu porque meti aqui veneno de ratos para vos matar a todos. O bife que foi para o lixo era para o teu pai”. E tu o que fizeste, contaste ao teu pai? Perguntei-lhe. "Não pá, aquilo parecia-me normal era assim e eu esquecia-me logo a seguir do que se tinha passado.”
"Não era só a minha mãe que tinha dessas fúrias. A vizinha de baixo, a escritora daqueles livros que te dei também tem fúrias com grandes gritarias." O Manguito não gostava de ler e dava-me os livros que a conhecida escritora lhe oferecia e que hoje tem nome de rua lisboeta.
"Pois é pá. A escritora tem fúrias do c… e ouve-se em todo o prédio. Também atira tachos e panelas ao marido". Depois eu vim a saber que era um notável médico pediatra que se tornou diretor da maior maternidade do país. “E tem fúrias com as criadas. Um dia uma delas fugiu de casa e foi queixar-se à polícia para ir lá buscar as suas coisas e o ordenado que faltava”. A polícia não prendeu a escritora porque era uma pessoa conhecida.
Tempos depois, o Manguito ainda me contou que a avó materna tinha fúrias contra o avô e rasgava com facas os quadros que o retratava e depois tentava atirar-lhe as molduras à cabeça.
O Manguito era um infeliz até ao dia em que mãe saiu de casa e ainda lhe perguntei, “mas não te zangavas com a tua mãe e não dizias nada? “Não, pá, mãe é mãe, e ela arrependia-se e chorava muito, mas não dormia com o meu pai. Ia sempre dormir na cama da minha irmã mais nova” e eu julgava que a minha mãe tinha fúrias por minha culpa ou por coisas que eu dizia.”
Violência doméstica era algo que nunca se falava naquela época salazarenta, mas devia existir de lado a lado. Já em pequeno diziam que numa mulher não se bate nem com uma flor. Nas classes médias e altas, talvez a mulher fosse mais respeitada pelos maridos e companheiros que hoje. Juridicamente a mulher não era igual ao homem, mas na prática os lisboetas mais educados respeitavam muito a mulher e não proferiam palavrões, pelo que os aprendi mais na rua que em casa ou na escola. Ainda hoje, há uma apreciável diferença de linguagem entre um lisboeta genuíno, sempre mais educado, que um cidadão do Norte, nomeadamente do grande Porto. Mas parece que já não há classes educadas. Juízes generais, ministros, jornaleiros, etc. são todos iguais e cada vez mais reles.
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