Quinta-feira, 5 de Fevereiro de 2004

Os Supérfluos

- Madeira, hoje vens atrasado três minutos.

- Estás a gozar com a minha tristeza e ris-te. Mostras o teclado, ainda bem que continuas com boa disposição, mas digo-te, Tavares, daqui não saímos inteiros, os gajos querem dar cabo de nós.

- Não digas isso. Estamos à espera de uma justa decisão, e ela virá porque somos teimosos e estamos unidos. Repara que batemos já o recorde, vinte e sete dias na sala branca, 16 trabalhadores a ver as moscas e as paredes numa sala, oito horas por dia e ainda rimos. Olha, quando deixarmos de rir, estaremos prontos para o caixão. Eles estão desesperados, mas sabem que somos nós que os estamos a proteger, pois quanto mais cedo cedermos, mais depressa virá também a hora deles.

- Talvez pá, mas olha, pelo menos descansamos e não respiramos aquele ar imundo do fundo da Oficina 7. Ainda não puseram o ventilador de ar para fazer sair os fumos dos motores dos carros na oficina. Aquela porcaria de médico do trabalho diz que sim, aquilo faz mal aos pulmões, mas nunca fez nada.

- Já disseste isso, quinhentas vezes, Azevedo, não serve mais de consolação. Esperamos, esperamos, estamos à espera de quê afinal? Do Godot, como naquela peça do não sei quantos que vi há anos na televisão. Não, aqui lemos os jornais e jogamos às cartas. Os gajos não nos deixam trabalhar. Deixem-nos trabalhar! Podemos gritar aqui. Salta para cima da mesa e faz um trombone com os jornais e grita para fora, deixem-nos trabalhar.

- Vocês fazem é figura de malucos e o meu marido já anda lixado, quatro mulheres no meio de tantos homens, sempre fechados na mesma sala. Já me disse: Olímpia! Vê lá o que fazes com aqueles colegas, o melhor é aceitares a guita e vires para casa. Julga que acabamos por nos dar uns com outros. Pelo contrário, acabamos é todos à porrada. O Zé diz que a Marca Francesa deveria, ao menos, pôr-nos em duas salas, uma para mulheres e outra para homens.

- Sim, sim, como nos meus tempos da escola primária. Só rapazes e a das raparigas ficava muito longe. Olha, eu, o Madeira, que aqui está em vias de enlouquecer, andou na Machado de Castro. Só rapazes e na Mocidade Portuguesa também. As raparigas tinham a Mocidade feminina ou o quê, a minha irmã aprendeu lá costura. Eu não aprendi nada.

- Então e não acabaste o curso. És um bom mecânico, mas não és encarregado ou mestre. Com o curso eras capaz de o ser.

- Se não estivessem aqui mulheres, dizia uma asneira das grossas. Mecânico, sempre. Já disse, nunca descerei de categoria como me propuseram e não aceito o despedimento com vinte e tal ordenados.

- Pázinho, Madeira, não é isso. Quiseram fazer de ti um preparador de viaturas novas. Polir, tirar as nódoas dos vidros. Não vês isso? Um trapinho, um pouco de cuspo e tiras a caca de mosca do vidro do conta-quilómetros.

- Não, Olímpia de um marido ciumento, eu sou mecânico, não sou preparador de carros e não brinques com isso. Somos doutores pelos cursos comunitários, fechados num campo de concentração da Marca Francesa. Aqui é a "casa branca", na Cabos Ávila é a "casa amarela" daquela freira ou monja católica do carago, Teresa d' Ávila. Que porra de democracia é esta com casas de concentração para os trabalhadores que não aceitam ser despedidos.

- É isso, os nazis punham o pessoal em campos de concentração. Agora os gajos das empresas põem-nos civilizadamente numa sala de paredes brancas, sem direito a café, sem fazer nada. É também como aquela tortura da Pide. Só que em vez de sermos estátuas em pé, somos estátuas sentadas, oito horas por dia até darmos em malucos durante semanas e semanas. A Marca Francesa é pior que a Pide! E não há um sacana na Assembleia da República que faça uma lei a proibir isto, porra!

- Está bem Madeira, já sabemos que és o doutor aqui, viajaste, sabes de história e não sei quê. Mas nós sabemos de futebol e carros, carrinhos e carrões. Já não os posso ver. Lá na Damaia estão por toda à parte. Nem posso entrar em casa com uma mala ou caixa, está sempre a porcaria de uma viatura a atravancar a minha entrada. Porra, odeio os automóveis. Deveríamos sair todos aqui armados de matracas e ir para a porrada aos carros, amachucar as latas, partir os pára-brisas, riscar as pinturas e destruir os escapes. Os carros deveriam ser utilizados como caixões. Sim, deveria haver uma lei que obrigasse cada gajo a ser enterrado no seu carro, a uns dez metros de profundidade e depois outros por cima. Já viste, a dois metros de altura por viatura, davam cinco carros com os presuntos lá dentro por cada cova. Aqueles gajos que colocam uma latinha de gasolina a arder junto ao pneu de um carro é que têm razão. São os justiceiros do futuro. Os revolucionários, anarcas ou sei lá o quê. Abaixo o automóvel. Pás, vamos fundar o partido anti-automóvel. Olha! Os gajos talvez arrepiassem caminho.

- Cala-te lá, Mateus, estás mas é virado. Os carros ainda são a nossa profissão. Mas que estamos afogados neles todos os dias é verdade. Eu também já não os aguento, por isso ando com uma velha Quatro quando ando. Se houvesse eléctricos rápidos, preferia-os bem. Mas os gajos das câmaras andam ao contrário. Quanto mais carros, ruas mais estreitas, passeios mais apertados e prédios mais altos. Para o pior está tudo sempre na mesma. Já viste como está isto aqui à volta.

- Olhem lá, o Mateus tem o seu quê. Lá no meu bairro, havia uma tipa, engraçada até, que detestava os carros. Andava sempre com um ferro a riscar as pinturas. Uns vizinhos meus apanharam-na e lavaram-na para a esquadra. Foi o mesmo que nada, os polícias já a conheciam e, por isso, não a prenderam. Talvez dessem razão à miúda, ela até era gira.

- Eu vou desistir, não aguento mais, vou aceitar os dois mil e oitocentos contos que me oferecem e vou gastá-los. Depois atiro-me da ponte abaixo. Pá, até posso vir a ser o primeiro gajo a suicidar-se da Ponte Vasco da Gama. Estás a ver, no dia da inauguração com o meu cadáver todo estendido e ensanguentado lá em baixo. Sim, não me vou atirar à água, mas antes ao cais junto ao pilar. Levo um cartaz a protestar contra o desemprego, serei o Jan Palak do desemprego, sabem, o gajo checo que se suicidou pelo fogo a protestar contra a invasão soviética.

- Nada disso, Domingos, estás muito intelectual, mas aqui jurámos todos aguentar até ao fim e repara que o Natal já passou, tempos de receber o décimo quarto. Olha, eu fiz as contas, para receberes o equivalente à reforma mínima tens de ter umas dez mil brasas em conta a prazo no banco, faz as contas aos juros que os Champas e outros estão a pagar. Essa porcaria de indemnização de que falas dava para dez ou doze meses. E depois, ias viver com a miséria do fundo de desemprego?
- Madeira, não armes em chefe. Tenho aqui uma pistola e vou dar cabo de mim, já. Não aceito ser um trapo, aqui perdi uma vista a endireitar chapa e fiquei quase surdo de um ouvido. Lá fora ninguém me aceita. Não quero ser um objecto, supérfluo, descartável como as seringas dos drogados. Fomos utilizados uma vez e agora deitam-nos fora, quebrando primeiro os nossos nervos nesta sala de concentração e paredes brancas. Não, porra, dou um tiro aqui no coração.

- E o gajo disparou mesmo. Chamem o 115! O calado! Nunca dizia nada e quando falou, deu um tiro no coração, fodam-se!

- Ajudem, deitem-no em cima da mesa, o Tavares foi chamar o médico e o 115.

- Olha, o Domingos ri, nem desmaiou, só ri, parece feliz ou está a fazer troça de nós? Deve ter dado um tiro de alarme, mas a pistola parece a sério. E está a sangrar, mas continua rir.

- Está aí o 115. Ponham a maca aqui.

- Pronto, não precisa de soro. O ferido está lúcido e aparentemente bem disposto.

- Vamos com ele?

- Não! Se sairmos daqui perdemos o direito à paga, é como faltar ao trabalho, percebes Madeira!

- Percebo sim, o Domingos não morreu, pelo menos agora. Ainda bem, seria trágico. A bala não deveria ter pólvora, era velha, certamente. Sei dum gajo que deu um tiro com uma pistola que tinha lá a bala há mais de dez anos. Foi só fumaça, a bala ficou quase à flor da pele. Deve ter acontecido o mesmo ao Domingos, o gajo nunca tinha disparado aqu
publicado por DD às 21:03
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