Sábado, 7 de Fevereiro de 2004

o Drama do Boy



Na segunda-feira seguinte às eleições, o doutor Lima entrou no serviço, esforçando-se por apresentar a cara o mais normal possível. Previamente tinha estudado a pose e o modo de se apresentar para dar a impressão de que nada de especial tinha acontecido. Até escolheu a roupa mais utilizada, a de sempre, sem gravata e sem fato completo. De pouco serviu, logo à entrada foi cumprimentado pelo porteiro:
- Parabéns doutor, o seu partido ganhou bem, não é verdade, então agora vai a ministro.


- Obrigado Mateus, - respondeu-lhe o Lima.


A cena repetiu-se mais umas tantas vezes, no elevador e depois lá em cima, a secretária Lurdes, toda pepedisto e daquilo, foi das primeiras a cumprimentar.


Nem lhe deu os parabéns, chutou logo: -Temos ministro, não é verdade doutor?


Lima esperava este tipo de reacção, até porque não eram as primeiras eleições em que participava como militante, se bem que a vitória nem sempre sorriu. Já conhecia o acolhimento pretensamente efusivo, mesmo dos adeptos dos outros partidos, ou principalmente desses. Iam bater-lhe nas costas e perguntar se já estava ministro, como fez o seu colega no gabinete jurídico, o doutor Serra, um homem sempre do partido do seu interlocutor de momento. Não que o confessasse abertamente, mas falava com um tom pretensamente secreto e confidencial, como se estivesse ligado ao interlocutor por um pacto secreto, a pretensa adesão comum ao mesmo ideário e o conhecimento das mesmas pessoas. Até o secretário-geral do ministério lhe telefonou a dar os parabéns, imagine-se um dos seus maiores inimigos. O recém-promovido “Boy”, apesar de trabalhar naquele serviço há dez anos, não esperava isso. O secretário já lhe tinha feito antes algumas alusões à possível vitória do seu partido numa ocasião em que ambos se encontraram no elevador. Claro que foi entendido mais como uma pequena provocação ou brincadeira, mas altamente irritante para o assessor jurídico do ministério, farto como estava de ser posto de lado pelo secretário-geral.


A equipa jurídica daquele ministério há muito que nada fazia, lia os Diários da República e da Assembleia da República, faziam um sumário de legislação, mas para a verdadeira consultoria jurídica era sempre chamado pessoal de fora, por vezes pago a peso de ouro, sem que aos próprios serviços do Ministério fosse dada a oportunidade de mostrar qualquer tipo de trabalho, para não dizer, reconhecimento de competência. Lima e os colegas Serra e Duarte com o respectivo pessoal auxiliar passavam o dia numa indolente ociosidade, aproveitada por todos para fazer algo para fora. Os colegas trabalhavam na advocacia e Lima dedicava muito do seu tempo livre a escrever artigos para jornais diários e semanários.


Além disso, Lima foi candidato a deputado pelo círculo de Lisboa, mas em lugar de todo inelegível, quadragésimo tal, lugar adequado a um idealista que não acalenta nada mais do que ver concretizados os seus grandes ideais democráticos.


Naquele primeiro dia pós-eleitoral começou a tortura diária do Lima. Todos os dias os colegas perguntavam quando ia a ministro. Outras vezes, perguntavam quem ia mandar no Ministério, fingindo não duvidarem de que ele, doutor Lima, sabia quem vai ser ali o novo ministro, o novo chefe daqueles devotos fiéis da causa pública. Lima carregava o seu semblante até ficar com um ar enigmático e, com toda a sinceridade, dizia que não sabia, obtendo sempre um sorriso de dúvida do respectivo interlocutor ou uma afirmação, está tudo ainda no segredo dos deuses. Claro que Lima desconhecia tudo a respeito do novo governo. O novo primeiro-ministro nada lhe tinha dito e nunca o poderia ter feito, já que Lima não faz parte do círculo dos seus íntimos. Toda a gente no Ministério sabia disso, mas fingiam que não, perguntando constantemente como ia a formação do novo elenco executivo. Procuravam dar a entender que tinham o doutor Lima por personagem muito influente no partido que agora saiu vencedor das eleições.


Durante alguns dias, o secretário-geral e o pessoal do gabinete cessante ainda o cumprimentavam, mas a partir de um dado momento, deixaram de o fazer. O poderoso secretário-geral passou pelo Lima frente a toda a gente na entrada e nem se dignou cumprimentá-lo, no que foi imitado pela serigaita que fazia de secretária no gabinete do ministro cessante. O porteiro percebeu logo o sinal, Lima não ia a ministro nem a lado algum, só andaram a brincar com o doutor. Passou a dizer isso a todos os que trocavam algumas palavras com ele sobre o momentoso problema da formação do novo gabinete ministerial. Lima sentiu isso quando o secretário-geral lhe pediu com toda a urgência uns tópicos sobre a legislação comercial de uns produtos tutelados pelo Ministério. Teve algumas dificuldades em despachar o pedido em poucos minutos, o que seria normal, mas o secretário-geral não quis saber e mandou a sua secretária telefonar-lhe de cinco em cinco minutos a pedir os tais tópicos. Por fim, foi o próprio secretário-geral que berrou ao telefone como nunca o tinha feito.


Lima sentiu-se enxovalhado. Acabou por mandar um contínuo entregar os tópicos e pensou, “claro, o tipo já sabe quem vai ser o próximo ministro”. Um independente, ou uma independente, que os vai deixar a mandar como se tivessem ganho as eleições. Sim, já deixaram de fingir com perguntas idiotas. O elenco sai amanhã. A culpa é minha, andei por aí a pavonear-me com o partido e depois com a candidatura a deputado. No quadragésimo lugar não tinha razão para isso.


Efectivamente, no dia seguinte saiu nos jornais o nome do novo titular. Uma independente de todos os costados. Lima não tinha ilusões, não seria chamado ao gabinete para uma qualquer consulta jurídica quanto à nova legislação. Ninguém na chefia do Ministério saberá que está ali um destacado militante do partido vencedor. Dias depois veio a portaria com as nomeações para o gabinete do Ministro e para alguns postos. Todos militantes do partido derrotado. Até o poderoso secretário-geral ficou de pedra e cal.


Lima ficou cilindrado quando soube que a sua famigerada inimiga, a doutora, foi promovida e ele, o jurista Lima, nem sequer foi consultado sobre os problemas jurídicos que envolvem o trabalho passado da doutora. “Ela deveria estar na prisão”, pensou Lima quando lia a lista das nomeações, “depois de ter comprado um produto que provocou a morte de muitas pessoas, mas acabou premiada e viva o velho”. “Vão todos rir-se de mim depois do mal que disse da doutora e da tentativa frustrada de a fazer comparecer em tribunal”. “Mas, também é minha culpa, fui cobarde, não fui capaz de tomar uma medida a sério contra a doutora e as suas chefias, fiquei calado, obedeci à lei da rolha do antigo primeiro, agora pago-as. Melhor fora que o meu partido não tivesse ganho as eleições ou que eu nem sequer fosse candidato.







publicado por DD às 21:24
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