Domingo, 8 de Fevereiro de 2004

O SUBSÍDIO NÃO VEIO

O empresário Rui de Melo acordou estremunhado. Sonhou que o subsídio não viria mais e, sem qualquer alternativa financeira ou comercial, foi ao seu escritório doméstico. Subiu a uma cadeira e retirou a pistola da caixa de sapatos colocada no cimo de uma estante, carregou-a com uma única bala e disparou no osso frontal. Ficou logo estatelado sobre a sua artística secretária de madeira, exalou o último suspiro enquanto sangrava abundantemente da ferida provocada pelo disparo. As suas últimas palavras foram Pedip, Pedip.


- Não, não pode ser, - disse para consigo - estou apenas a sonhar, os cinquenta mil contos hão-de vir, o projecto que entreguei é bom e está assinado por um especialista na matéria, o doutor Faria dos Santos. Bem, não vale a pena entrar em pânico, vou levantar-me para ir trabalhar.


Mesmo assim, Melo chegou ao escritório acabrunhado e triste. Foi logo ver se tinha chegado algum fax do Ministério, mas nada, só um extracto de contas de um fornecedor estrangeiro com asteriscos nos últimos números e uma frase a dizer que essas contas estavam por saldar.

- Porra, sempre a mesma porcaria, os gajos querem o dinheiro. Não tenho, porra, não tenho; gritou para consigo. A secretária Arlinda ouviu-o a falar e perguntou se estava a dirigir-se a ela.

- Não Arlinda e bom dia. Estou a gritar com os gajos da Gustafson. Querem o dinheiro das duas últimas facturas. Logo que vier o subsídio pago, não sou caloteiro. Estou à espero do Ministério ou do Governo, ou sei lá de que porra.

Arlinda não se admirou muito com o mau humor do patrão, estava habituada e nos últimos tempos era cada vez mais evidente que as coisas não corriam nada bem. Rui de Melo saía cada vez menos de visita a clientes e desesperava, os ordenados dos dois colaboradores, a Arlinda e o Vicente, era pagos com atrasos. Não sabiam onde o empresário ia buscar dinheiro. Os fornecedores tinham deixado de vender seja o que for, queriam o pagamento adiantado. Tanto a Arlinda como o Vicente procuravam já novos empregos, respondiam a todos os anúncios dos jornais.

Os negócios de Rui de Melo há muito que andavam mal, o escritório importava de tudo um pouco e, por vezes, realizava exportações, mas sempre sem a consistência necessária e à custa de muitos descontos que lhe comiam os lucros. Quase sempre o negócio tinha a ver com matérias primas, nomeadamente químicas para a indústria transformadora de plásticos e outras indústrias. Mas, de vez em quando, o Rui de Melo tentava vender máquinas para diversas indústrias e, mesmo, alguns produtos acabados, mas quase sempre sem êxito ou com um sucesso muito relativo. Aquilo não tinha saída alguma, o Melo não era um habilidoso na arte do negócio ou talvez lutasse sempre com falta de capital.

Um dia, Melo estava só no escritório e recebeu um telefonema.

- Aqui fala da empresa Projectopedip, - disse uma voz feminina.

- Estou a falar com a Melo-Ideias e Realizações, Lda

- Sim, minha senhora, e com o gerente em pessoa.

- Pois nós conhecemos a sua empresa desde que recebeu a Estatueta X de Qualidade do Instituto de La Gran Calidad de Madrid. Pelo estudo que fizemos, a sua empresa está apta a ser aconselhada por nós num Projecto Pedip de desenvolvimento industrial. Seria bom termos uma longa conversa pessoal para estudarmos o V. Problema.

Aquilo da estatueta de qualidade foi uma espécie de embuste, Melo foi contactado por um grupo espanhol, preencheu uns formulários e recebeu a resposta que tinha sido qualificado para receber a estatueta de qualidade se pagasse uma verba apreciável para a cerimónia em Madrid e o jantar de recepção.

A reunião com a Projectopedip teve lugar passados uns dias. Melo que não chefiava propriamente uma empresa industrial trouxe à baila um seu velho projecto de fabricar escovas de plástico e agora pensava que seria óptimo conseguir um subsídio para isso. Já sabia onde encontrar máquinas de segunda mão, ou terceira ou quarta, e como arranjar propostas para máquinas novas, matérias-primas, etc. que dariam ao Projecto a consistência necessária e o valor pretendido. Sim, a sua empresa, Melo-Ideias e Realizações, Lda passaria a fábrica de escovas especiais segundo a patente alemã da Bürstenfabrik com as máquinas da Bürsten Maschinen GmbH.

Para a Projectopedip aquilo eraouro sobre azul; um projecto de raíz, como disse o doutor e lançaram-se todos ao trabalho, isto é, à redacção de um projecto de instalação e de viabilidade de uma pequena fábrica de escovas, uns cinquenta mil contos apenas de subsídio mais um crédito bancário de trinta mil para cobrir o plafond exigido.

Melo e a Projectopedip prepararam os orçamentos e o estudo económico de implantação bem como o estudo de impacto ambiental. O fabricante alemão de máquinas forneceu-lhe todas as propostas de máquinas novas com desenhos e esquemas de implantação bem como a listagem de matérias primas e semi-fabricados com nomes e endereços de fornecedores. Além disso, deu-lhe a conhecer o nome de um fabricante de Cáceres que poderia vender em segunda-mão a máquina S 20 destinada, no dizer de Melo, a ensaios de fabrico e iniciação do pessoal.

Sem perder tempo, Melo visitou o fabricante espanhol e reparou que este já tinha algumas máquinas para o ferro velho. Melo interessou-se e prontificou-se a aduirir uma velha S 10 por pouco mais de cem mil Pesetas. Imaginou a instalação de uma pseudo-fábrica com aquela máquina e uns tantos materiais e componentes semi-fabricados.

- Esta merda não me vai custar mais de que uns tezentos contos e saco aos gajos do governo uns cinquenta mil ou mais. È negócio! Claro, vou ter de dar uns dois ou três mil aos tipos do Projectocatano mais und juros ao banco. Disse Rui de Melo para consigo, acrescentando mentalmente: Compro uns lotes de escovas já feitas e se alguém for inspeccionar, vê tudo, matérias primas, semi-fabricados, máquina toda pintada e coberta de óleo e umas caixas do produto acabado. Não vê a funcionar porque, naturalmente, a máquina está avariada. Até posso comprar mais escovas aos gajos de Cáceres e vou vendê-las no mercado nacional como se tivesse sido eu a fabricá-las, apresento as facturas e até os Ivas. Sou um gajo bestial, só desta cabeça é que podia sair um projecto assim. E a propósito de Iva; saco dos gajos como se tivesse investido de novo e entrego só os valores das poucas escovas que vou vendendo. Formidável!

Efectivamente, Rui de Melo passou a andar entusiasmado com as suas ideias e o Mundo passou a sorrir-lhe todos os dias. Sentiu-se como o dr. Pangloss, o sol parecia brilhar mais e a chuva era como que azul. Depois de entregarem o projecto acabadinho e feito no computador com títulos a cores, azul, vermelho e amarelo, tudo encadernado numa bela capa plástica, Rui de Melo ficou exultante de alegria, estava a ver os cinquenta mil contos serem depositados na sua conta mais os trinta mil de empréstimo do banco. Oitenta mil! Nunca tinha sonhado vir a ter tanto dinheiro de uma só vez. Toda a sua vida foi ganhar, receber e pagar logo no dia seguinte. Raramente ficava com mais de dez por cento e, mesmo assim, era para pagar mais e mais contas, ordenados e impostos. Conseguia mandar vir mercadoria a crédito de sessenta ou noventa dias, para a vender também a crédito. O dinheiro era a água numa torneira aberta, passava sem parar.

Antes mesmo de receber o chamado cacau do Ministério, resolveu mandar vir a tal máquina em sucata de Cáceres e, no último momento, adquiriu as duas S 10 aos hispânicos e uma série de materiais e escovas já feitas. Negociou um prazo de noventa dias, pois o doutor tinha-lhe garantido que nesse intervalo de tempo teria o dinheiro. Os espanhóis não se importaram pois estavam a vender sucata.

Dito e feito, Rui de Melo alugou um espaço num vasto armazém de um fabricante de detergentes em Odivelas. Aí colocou o seu material e mandou cobrir tudo com folha plástica depois de besuntar as máquinas com massas lubrificantes para dar um ar de reparação e manutenção. Um amigo, especialista em edição computorizada, prontificou-se a elaborar impressos falsos de facturas de um fabricante de máquinas do Lichtenstein para dar a impressão que as tinha comprado por grossa maquia no exterior.

Tudo parecia de vento em popa para o empresário. O seu maior prazer era folhear a sua cópia do projecto, acariciar-lhe as folhas, ler vezes sem conta a memória descritiva e os estudos técnicos de implantação industrial, económica e ambiental. Uma perfeição, no seu entender. Bem-ditos os quinhentos contos que pagou à cabeça à Projectopedip e mereciam mais, costumava pensar. Aquilo tinhas mesmo de dar resultado, ou não precisava o país de escovas. Sim, milhões de portugueses têm cabelo, além de roupa, etc. Escovar é uma necessidade diária, pelo que não há motivo para que o Ministério da Indústria não aprove mais uma fábrica de escovas, tanto mais que aí nas lojas está tudo cheio de escovas importadas, sim, da China, Alemanha, Espanha e sabe-se lá que países mais.

Começou assim a lenta agonia da espera. Semanas e mais semanas, depois meses. Veio o mês de Julho e dissera-lhe para esperar por Outubro, já que o pessoal do Ministério entrou de férias.

- Bem, - disse-lhe o doutor Santos, isto não é como nos tribunais com as férias judiciais, em que tudo o que não é feito até Junho passa para Janeiro e Fevereiro do ano seguinte. Não, na Indústria trabalha-se, mas enfim, entre Julho e Setembro há muita gente de férias, o expediente não funciona. Por vezes, falta só o contínuo para levar o processo de uma secretária para outra, ou levá-lo lá acima a despacho final. Outras vezes, falta a secretária para redigir os termos do despacho, ou mesmo um ajudante de tesouraria, enfim, sabe como é a Administração. Não é como o Castelo do Kafka, mas olhe que acaba por haver algumas semelhanças.

Faria dos Santos não lhe falou na possibilidade de as verbas previstas no Quadro Comunitário poderem estar esgotadas já e, como tal, o seu projecto ficar adiado para a vigência do Quadro seguinte, o que poderia levar mais de um ano a ser concretizado. Melo ia pedindo pequenos empréstimos, primeiro a um banco depois a outro para pagar os tais quinenhtos contos mais alguns ordenados do seu pessoal e outras despesas do escritório. Aquilo não estava mesmo a dar, não tinha dinheiro para comprar mercadoria, limitava-se a angariar algumas vendas à comissão, o que mal cobriam as despesas, mas o Rui de Melo não desesperava, esperava receber o dinheiro e pensava em fechar tudo, o escritório e despedir os dois a Arlinda e o Vicente. Depois, iria começar uma nova vida com um negócio novo e mandar passear os tipos do Pedip e da União Europeia;que se lixem todos, pensava para consigo.

O tempo quente chegou e com ele as férias. Claro, as férias do Ministério também. Melo ficou como que destroçado. Sem dinheiro, iria ter de passar o verão a pensar no Outono, ou mesmo no Inverno, à espera dos cinquenta mil contos. Ainda tentou junto do doutor Faria para ver se conseguia uma solução mais rápida, mas nada. Faria dos Santos disse-lhe que o pessoal do Ministério é incorruptível, quando se trate de acelerar o trabalho, despachar, principalmente no verão. Não, se não estiver toda a gente a trabalhar, não há nada que faça outros trabalharem mais, nenhum dinheiro mesmo.

O empresário foi também de férias; foi com a mulher para o pequeno apartamento que possui no Algarve, em Vila Nova. Triste e com pouco dinheiro, sem dizer que estava praticamente falido. Arranjou mais um empréstimo para pagar meio subsídio de férias à Arlinda e ao Vicente e foi para o Algarve alimentar-se de sandes no mês do Agosto. Reencaminhou as chamadas do escritório para o seu telemóvel e as do fax para um outro aparelho colocado na sua casa algarvia. Mas, nada, praticamente ninguém telefonou ou mandou faxes ao empresário Rui de Melo. Já quase não tem clientes e os fornecedores estrangeiros desistiram de o procurar. Melo entristecido contemplava todos os dias o fax inerte sem qualquer luzinha acesa. Mau presságio, costumava dizer para os seus botões.

Finalmente, as férias acabaram, regressou à capital e logo no primeiro dia de trabalho disse à Arlinda e ao Vicente que não esperassem muito da sua empresa, procurassem já emprego pois não tinha meios para os despedir com indemnização nem para os manter empregados até ao fim do ano, a não ser que venham os cinquenta mil contos, mas até lá não há dinheiro.

Ambos compreenderam a situação e até disseram que já estavam em campo para tal. A situação os uniu naquele momento e isso apagava um pouco as dificuldades que estavam a enfrentar. Afinal eram duas pessoas no mesmo barco a navegar nos mesmos mares e à procura de um porto de abrigo com o dobro da esperança. Vicente era vendedor, agora sem nada para vender, e enfrentava algumas dificuldades em arranjar novo emprego, pois era um negro de S. Sebastião da Pedreira, português de gema como gostava dizer, dado ter nascido numa freguesia onde só se pode ser português qualquer que seja a cor da pela ou o formato da cabeça. Arlinda não, era branca pálida como um toucinho e esperava arranjar emprego, já que o Vicente lhe ia ensinando a trabalhar com o computador para além do simples processador de texto. Ambos estudavam inglês para melhorarem as suas possibilidades. Rui de Melo desconfiava que havia caso entre os dois, mas ao certo nunca chegou a saber.

O Outono veio e com ele os primeiros chuviscos, bem tímidos por sinal, depois o bom tempo com o ar mais fresco até ao Natal e nada do Ministério. Rui de Melo esforçava-se junto da Projectopedip para esclarecer a sua situação. Santos e uma vez foi lá falar com um responsável. Nada lhe foi dito, os projectos eram muitos e ninguém sabia o que estava a acontecer com o seu.

Depois do Natal veio o Ano Novo e Janeiro. A situação de Rui de Melo continuava a piorar e o seu humor oscilava entre a euforia de uma esperança desejada e a depressão de admitir que nada viria. E quanto mais o tempo passava mais se prolongava a depressão de Rui de Melo. Ainda conseguiu vender o pequeno apartamento algarvio para se aguentar durante algum tempo e pagar algumas dívidas. Nisso esgotou o dinheiro quase todo, voltando a situação de penúria quando a Primavera se aproximava.

Um dia, Rui de Melo voltou a contactar a Projectopedip e foi informado que as verbas do Quadro Comunitário para o Pedip esgotaram-se. O doutor Santos garantiu-lhe que estava a ser negociado um segundo Quadro Comunitário e que o seu projecto passaria para o novo sistema de incentivos às empresas logo em primeiro lugar. O empresário disse que sim com uma cara triste e agradeceu os esforços do doutor.

Sem pensar em nada mais, Rui de Melo foi para casa, entrou sem descalçar os sapatos e fechou-se no seu escritório doméstico. Subiu a uma cadeira e foi buscar a caixa de cartão. Pouco tempo depois ouviu-se um disparo forte, a mulher foi ao escritório e viu Rui de Melo exangue sentado á secretária com a cabeça caída sobre o tampo.








publicado por DD às 21:58
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