Domingo, 10 de Fevereiro de 2019

Conto da Palma da Mão - A Sorte de Adolf

 

 

Na trincheira em ziguezague alemã entre as destruídas aldeias de Grenilly e Ormes, quatro soldados de um regimento bávaro jogavam às cartas. Os canhões pareciam já cansados frente a Verdun, só esporadicamente caía uma granada. Os últimos cadáveres da manhã foram retirados e não chovia. O Hans tinha como parceiro o Adolf, enquanto o Christoff jogava com o Albert que dava o baralho.
De repente, o primeiro cabo Adolf levanta-se e diz: - tenho de ir defecar, a comida aqui deve estar quase podre. – Qual podre, responde-lhe o Albert, estás com medo e borras-te todo. – Não, diz-lhe o Adolf, posso ter o medo que todos têm em certos momentos, mas sou um entusiasta, estou a combater para a vitória do nosso Reich. – Está bem, que seja isso e não a nossa morte, acrescentou o segundo cabo Hans.
Adolf contornou mais uma esquina da trincheira e meteu-se numa reentrância tapada, onde despiu as calças e começou a largar para um buraco já bastante cheio.
De repente, ouve o silvo bem conhecido da granada de 75 mm seguido do violento estrépido dos explosivos e uns gritos de segundos e depois o silêncio. Adolf acabou a tarefa e limpou-se a um jornal da propaganda militar do Reich e saiu para ver o que se tinha passado. Os seus companheiros jaziam mortos, feitos em pedaços. Hans tinha meio corpo, o resto a partir das ancas tinha desaparecido. Albert ficou sem um braço e o ombro, deixando um enorme buraco vazio. Adolf olhou e pensou, “somos assim tão vazios por dentro”. Christoff já não tinha cabeça, mas ficou o crucifixo de latão agarrado ao peito cheio de sangue. Frio e sem emoção, Adolf disse para si mesmo, tive sorte, fui defecar mesmo no tempo certo. Não há dúvida que o futuro está à minha espera e alisou o seu pequeno bigode por debaixo do nariz

 

 

publicado por DD às 00:37
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Sábado, 9 de Fevereiro de 2019

O Suicídio do Sósia

Naquela manhã primaveril, uma parte do pessoal do escritório da multinacional chorava, enquanto outros faziam as suas tarefas normais, rindo e gracejando, por vezes. Parece que não sentiam a tristeza que ia na alma de muitos dos seus colegas de trabalho.

Kurt Lang começara nessa manhã o seu terceiro dia de trabalho naquela empresa, ainda em instalação no país; o seu gabinete não tinha o telefone instalado, o que o obrigava a deslocar-se frequentemente ao espaço central daquela enorme mansarda moderna virada para o Tejo, que estava em vias de ser o escritório de uma poderosa multinacional do ramo farmacêutico. Como outros dos novos empregados da empresa, Lang perguntava-se a si mesmo o que teria acontecido, em que tipo de empresa se metera para ver pessoas a chorar, logo no seu terceiro dia de trabalho?

Acabou, enfim, por perguntar, afinal o que se passava ali? - Foi o doutor Leite que faleceu – responderam-lhe prontamente. “Quem? O Sósia”, perguntou mentalmente Lang. Efectivamente, o doutor Leite, para Kurt Lang, era principalmente o sósia do então presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano. Talvez a miopia de Lang o enganasse um pouco e só o tinha visto poucas vezes, mas a verdade é que para Lang e outros colegas, como veio depois a saber, o doutor Leite era a cara chapada do político, até na saliva que de vez em quando escorria do canto da boca. Os próprios óculos eram iguais, o doutor Leite cultivava essa semelhança, não só no vestir como no porte e modo de falar e andar.

Kurt Lang conheceu o doutor Leite quando foi apresentado a todos os colegas, sem perceber bem o que fazia ali o Sósia, sucedendo o mesmo ao doutor Leite que não estava inteirado de qual a função do neófito. A meio da manhã, o doutor Leite foi informado que Lang deveria dirigir uma nova secção de compras e planeamento de materiais, pelo que se lhe dirigiu para perguntar se poderia mandar fazer uns formulários e umas fichas para o seu departamento de consultadoria.

“Deve ser este apátrida, ou sei lá o quê, a autorizar ou vai mandar fazer os formulários”, pensou o doutor Leite, “não vou por causa disto perturbar o novo gerente, o senhor Osgar, nem o senhor Olbrich, o administrador, até porque falam tão mal português e de francês nem uma palavra, são alemães pa...burro com a mania que são americanos por trabalharem para uma empresa norte-americana; não, o Osgar é norueguês ou qualquer coisa do género. Ao menos este Longo ou Lang fala correctamente português”. O doutor perguntou pois a Kurt Lang se podia mandar fazer os formulários na tipografia habitual, de acordo com o esboço que tinha gizado, ao que Lang disse lgo que sim. “Quem sou eu”, pensou Lang, “para logo no primeiro dia de trabalho dizer quais os formulários que o doutor Leite deverá utilizar, mas é triste a cara do homem, e a sua aparente timidez também”.

A função de chefe de compras e mais sei lá o quê não tinham ainda entrado na pele de Lang. Mas, logo naquele dia, uma empregada disse que o doutor Leite era amigo de Marcelo Caetano e, talvez, viesse a ocupar muito em breve um alto cargo político.

- Ah! Sim, mas ele é o Sósia. - Não, não é por isso que ele vai ocupar um alto cargo, é pela amizade que o Marcelo tem para com ele; sim, isso vale muito nos nossos dias.

- Acho que sim, - respondeu Lang. Nessa altura, o doutor Leite não lhe inspirava qualquer simpatia ou antipatia, só depois da sua morte é que o entendeu, ficando gravado na sua mente como um fenómeno humano pleno de significado. Só uns dias depois do enterro do doutor Leite é que lhe disseram quem era o personagem que de forma tão violenta acabaria por fustigar a imaginação de Lang e como faleceu.

- O doutor Leite suicidou-se, - disse, por fim, aquela empregada loura e um pouco “vamp”, mas já um tanto entrada na idade madura.

- Deu um tiro na cabeça. Kurt Lang ficou assombrado, algo muito grave passara pela mente do doutor Leite para o levar a cometer um acto tão dramático e, simultâneamente, tão heróico. Para Lang, o suicídio seria talvez o acto mais corajoso que alguém pode praticar. Recordou logo uma frase de Albert Camus num dos seus ensaios; “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério; é o suicídio: Saber se a vida vale ou não ser vivida, é responder à questão fundamental da filosofia”.

Apesar de não acreditar em almas do outro mundo, pensou logo que a sua alma, ou o seu espírito, ficaria ali para explicar a razão do suicídio corporal, apontando, acusando, mostrando mesmo a profunda tristeza que pode rodear um corpo, mesmo bem vestido de fato assertoado, gravata discreta e sapatos altamente polidos. Efectivamente, a alma do doutor Leite penetrou o espírito de Kurt Lang, explicando-lhe claramente a razão do seu suicídio e ficou ali no escritório da multinacional a incomodar toda a gente. Terá sido por isso que o senhor Olbrich tomou a decisão de mudar os escritórios da empresa para um edifício fabril construído expressamente para a albergar. Ao certo ninguém sabe, mas é natural que tenha havido uma tentativa de fugir ou mesmo enganar a alma-espírito do doutor Leite que teimava em não sair daquele local. Provavelmente ainda lá estará, desgostosa de não se encontrar com a alma amiga do seu sósia de corpo, a vaguear pelo Brasil e pernoitando no cemitério, onde o corpo de Marcelo repousa, bem ao lado daquele célebre jornalista imoral, como diziam.

Mas antes de ser só espírito, ou alma, tanto faz, quem era o doutor Leite? Doutor? Não por grau académico, mas simplesmente porque era o anterior proprietário do pequeno laboratório de especialidades farmacêuticas, quase falido, que a multinacional norte-americana adquiriu. Fora durante muitos anos o patrão do pessoal que transitou da sua empresa para a multinacional, já que esta comprou tudo, incluindo o pessoal e o doutor Leite que ficou como consultor para resolver os assuntos de gestão e de relacionamento com as autoridades. Principalmente com o terrível doutor Godinho que mandava naquele ramo industrial e não tolerava novas empresas ou, mesmo, modificações significativas. Governava aquela porção do Condicionamento Industrial com o máximo rigor. Por isso, a nova multinacional esperava enganar o doutor Godinho, mantendo o doutor Leite na sua empresa para dar a impressão que o pequeno laboratório estava só a manipular especialidades estrangeiras por contrato. Assim, o doutor Godinho não terá motivos para se alertar, o seu universo manteria a estabilidade de sempre.

Mas o doutor Leite ainda acreditou que seria o consultor, que diria aos senhores Olbrich e Osgar o que deveriam fazer, quais as pessoas a empregar, onde comprar matérias primas, máquinas, etc. Logo no dia seguinte ao da assinatura da escritura notarial de venda do seu laboratório, o doutor Leite dirigiu-se aos novos escritórios da multinacional, onde lhe foi reservdo um gabinete. Assustou-se quando viu uma pequena secretária metálica de tampo preto e perguntou porque não lhe mandaram do laboratório aquela linda secretária, toda cheia de relevos em madeira negra e com um imenso tampo de vidro. Estava reduzido a uma vulgar Nacital, como um simples escriturário de ficheiros ou contabilidade. Agora era a doutora Casaca, a directora técnica do seu antigo laboratório, a sentar-se de bata branca no seu antigo cadeirão e debruçar-se naquele tampo de vidro de dimensão invulgar.

Mesmo assim, no primeiro dia do começo da sua morte, o doutor Leite não se compenetrou de que já não mandava ali, apesar de continuar a ser o sósia de Marcelo Caetano. O espírito do doutor Leite disse a Lang, tempos depois da morte do seu corpo, que os “sem-pátria” haveriam de reconhecer o seu valor e comprar uma secretária nova e grande, muito grande, mesmo que fosse a imitar madeira, bem como um cadeirão de napa negra e costas altas até ao pescoço. Claro, o doutor Leite nunca acalentou a ideia de que iria continuar a ter poder, afinal isso está ligado à propriedade. Não daria ordens, mas conselhos, tendo mesmo pensado em fazer um ficheiro de conselhos que iria dando e escrever semanalmente relatórios de gestão para que os “estranjas” soubessem bem como dirigir a empresa que, por tão pouco lhes vendeu, com dívidas e tudo.

Ele, o doutor Leite, o amigo de Marcelo, seria um estratega-sombra do grupo empresarial norte-americano. Um grupo importante, mas que escondia no seu seio a raiva e a inveja de ver a antiga empresa alemã, a que estivera ligado antes da guerra, singrar mais do que a empresa dos homens do dólar. Simplesmente, porque os “puritanos” yankees que foram dirigir a ex-filial norte-americana se esqueceram, ou não quiseram, registar a patente da pílula anti-concepcional, inventada pelo grupo nos anos trinta. Esquecimento que a empresa alemã não teve, tornando-a num dos grupos farmacêuticos mais ricos do mercado mundial, apesar de as suas instalações terem sido literalmente destruídos durante a guerra.

No primeiro dia, para além do choque sofrido com a pequena secretária, nada sucedera. O doutor Leite passou-o a imaginar os seus formulários e fichas, pensando que a qualquer momento seria chamado para dar um conselho. Arrumou uns dicionários numa pequena estante, bem como a Farmacopeia Portuguesa e uma pasta com a legislação mais recente, em cuja lombada o doutor Leite escreveu a letras grandes “Leis”. Precisava de um ficheiro metálico, mas não sabia como o adquirir, sim, já não podia mandar o senhor Matos fazer a compra. Tinha de pedir primeiro licença ao senhor Osgar, um norueguês corcunda que arranhava mal todas as línguas que falava, ninguém o compreendia; bem, bem, talvez só falasse o norueguês. O doutor Leite tinha de pedir em inglês, língua que quase não falava; ele pertencia à geração do francês e do seu pessoal barato ninguém falava qualquer língua estrangeira. Afinal, o seu laboratório tinha sido sempre bem nacional. Mesmo assim, explicou meio em português, meio num francês que o Osgar não entendeu que necessitava de um ficheiro. “Yes”, respondeu o escandinavo, sem perceber o que o doutor Leite queria, fingindo que ia tratar do assunto. O doutor Leite, habituado a dar ordens, ficou como que suspenso e percebeu que não seria atendido. Mesmo assim, ainda não se tinha compenetrado de que já não era nada ali. Por fim, lembrou-se que havia aí um novo chefe de compras, o Kurt Lang. Dirigiu-se-lhe com o pedido para mandar fazer os formulários.

No dia seguinte, o doutor Leite chegou cedo ao escritório, ali na Infante Santo, vinha convencido que começaria enfim a dar conselhos, participar em reuniões, fazer mesmo o “brain-storming”, coisa que os pseudo-américas da empresa estavam sempre a falar, mas que ele não percebeu bem o que era, “reuniões”, dizia para os seus botões. Mas nada, nem o Osgar, nem o Olbrich lhe perguntaram seja o que for, o melhor que conseguiu foi um arranhado bom-dia do senhor Olbrich; o arrogante Osgar nem se mostrou. Aparentemente imperturbado, continuou com o trabalho da véspera, esboçando impressos, formulários, classificando a legislação em vigor e consultando um livro sobre organização de empresas.

No terceiro dia, pós-escritura, o doutor Leite chegou à mansarda com uma sensação estranha na mente. Tinha tido sonhos reveladores. Sonhara que não o deixariam entrar. As mulheres da limpeza apareciam com vassouras e pás a empurrá-lo para fora, dizendo que bicho horrível. Leite sonhara que era Gregor Samsa da novela de Kafka, “A Metamorfose”. Transformara-se num enorme insecto repugnante, enxotavam-no para fora do escritório mansárdico. Mas não, viu a sua antiga telefonista com um bom-dia rasgado nos lábios. Sentiu-se aliviado, entrou para o seu gabinete, no qual uns técnicos acabavam de instalar o telefone. Resolveu experimentá-lo e ligou para a secretária do senhor Olbrich. Queria mostrar que ele também, apesar de português, era capaz de chegar cedo, antes mesmo das nove horas, tal como o Olbrich. Perguntou se o doutor Olbrich já tinha chegado. A secretária começou logo por dizer que o senhor Olbrich não é doutor, nem nada que se pareça, mas já tinha chegado. Na verdade, Filipa, a jovem secretária do administrador germânico, não gostava nada dele, sempre que podia dizia mal dele e deleitava-se a dizer que o “patrão” não é doutor. - Ele não andou na universidade, começou a vida na empresa como delegado de propaganda médica, senhor doutor Leite. E já me avisou que não está para ninguém. - Mas diga-lhe que o doutor Leite chegou e está à sua disposição para o que for necessário e gostava de passar pelo seu gabinete para lhe dar os bons-dias. - “No”, respondeu o senhor Olbrich, - “I am busy”. - Está a ouvir, o seu doutor Olbrich está ocupado, não o pode receber. O doutor Leite ficou paralizado. Depois pensou, “ainda bem que aquela malcriada nunca fez parte do pessoal da minha ex-empresa, que vergonha, ver assim o seu patrão da há três dias atrás ser despachado como se fosse um vendedor das “páginas amarelas”.

Triste e mudo, o doutor Leite deixou-se ficar no gabinete, mas acalentou ainda a esperança de que o chamassem para dar algum conselho. Ficou parado a olhar para o telefone interno. Deveria tocar para ser chamado. Nem lhe apeteceu ler o “Diário de Notícias” e, menos ainda, o “Diário do Governo” para ver se foi publicado algum decreto de interesse para a indústria farmacêutica.

A meio da manhã, uma das suas antigas empregadas, entrou no seu gabinete e perguntou.

- O doutor Leite precisa de alguma coisa, um café e uma bolacha? Foi com um tremendo esforço que esboçou um pequeno sorriso e respondeu:

- Não, Paula, obrigado. Quando ela saiu apeteceu-lhe chorar, mas continuou hirto, incapaz de pensar ou mover a cabeça, sequer, como se tivesse levado uma pancada. “E se alguém entrasse para dar-me os bons-dias. Nem o Matos entra, o fiel contabilista, ou o Lopes que dirigia a propaganda médica”, pensou o doutor Leite naquela manhã quase acalorada com um lindo sol e uma bruma esbranquiçada sobre as águas do Tejo. Ninguém entrou durante a manhã. O doutor Leite não fez nada. “Fazer o quê, pensou, não querem os meus conselhos, sentem-se donos de tudo já; da empresa e, talvez, do País todo. Trabalhou o meu pai toda a vida e eu continuei durante mais de vinte anos até hoje. Para quê? Para entregar isto tudo de mão beijada aos multinacionais, cuja única pátria é o lucro”.

A manhã passou assim lentamente e com grande tristeza. Pouco depois do meio-dia, o doutor Leite telefonou para casa. Disse à mulher que não tinha tempo para ir almoçar a casa, estava entre duas reuniões importantes, comeria qualquer coisa num “snack”.

- Mas tens assim tanto trabalho? – perguntou-lhe a mulher quase desconfiada.

- Claro, Rosinha, praticamente ainda tenho de dirigir isto, eles não sabem nada, estou a ensinar-lhes tudo sobre a indústria farmacêutica em Portugal.

- Ainda bem que reconhecem o teu valor – respondeu-lhe a esposa.

Mais triste que um morto, o doutor Leite foi almoçar a um café na Rua Ferreira Borges. Só, ninguém o quis acompanhar na refeição, como sucedia antes, quando tinha almoços de negócios com fornecedores, colegas empresários, farmacêuticos, armazenistas, etc., e até com alguns médicos mais amigos. Na escada do prédio cruzou-se com o vendedor de vitaminas suíças que tinha ido apresentar a sua mercadoria a Kurt Lang, o novo chefe de compras. Saudou de longe o doutor Leite com um sorriso quase amarelo. “Parece que já conhece a minha história”, pensou o doutor Leite, “nem me convidou a almoçar, como fazia há umas semanas atrás; com certeza convidou o Longo, aquele apátrida que colocaram aqui. Só escolhem dessa gente e nem me perguntam nada. Não dão pela minha vasta experiência de selecção pessoal”. Depois do almoço, o doutor Leite não quis comprar o habitual charuto, já nada lhe apetecia. Seguiu a pé pela Ferreira Borges e meteu à Rua do Patrocínio para chegar à Infante Santo. Aquela zona da cidade não lhe dizia nada, não estava habituado a viver ou trabalhar aí. Regressou triste ao seu gabinete. Não sabia se devia ou não voltar a pôr aí os pés. “Talvez seja isso que eles querem”, pensou então, “mas se não apareço mais, não me pagam e, de qualquer modo, necessito do dinheiro, já que o produto da venda do laboratório quase só serviu para pagar algumas dívidas pessoais”.

Naquela tarde, o doutor Leite ainda quis falar de novo com o senhor Olbrich ou, pelo menos, com o Osgar. Queria discutir as suas funções, estabelecer um plano de trabalho, um calendário de reuniões ou de elaboração de relatórios de gestão, informações legais, etc., qualquer coisa que significasse trabalho. Mas não teve coragem, iam dizer outra vez “I am busy”. “Não sejas impaciente” disse para si mesmo o doutor Leite, “talvez eles venham ter contigo, pedir enfim um conselho ou que ajude a organizar um novo serviço, seja o que for, pois sei de tudo nesta indústria. Eles sabem que tenho uma vasta experiência, conheço quase todos os médicos importantes, bem como os armazenistas de todo o País e tantas farmácias que compravam as minhas especialidades, ou não inventei eu o “Anti-Gripe” e o “Xarope Laxante”.

Mas, a tarde passou com um único acontecimento; o café, servido pela sua antiga funcionária, como nos velhos tempos. “Esta, apesar da sua cara de estúpida”, pensou o doutor Leite, “ainda me vê como um patrão, trata-me com toda a deferência e eu, além de lhe ter pago sempre um ordenado miserável, tratava-a tão mal”. Depois do café, passaram mais umas horas sem que nada acontecesse. Eram seis da tarde, o doutor Leite levantou-se e saiu uns minutos depois, já quase toda a gente tinha abandonado as instalações. A porta do escandinavo estava fechada, não se atreveu a bater para se despedir. Lá no fundo, já não se via a secretária do Olbrich, a Filipa. “O alemão já deve ter saído”, pensou o doutor Leite.

Sem ninguém para lhe dizer “até amanhã”, o doutor Leite saiu. Estava disposto a não passar outro dia como este. Quando se meteu no carro pensou, “agora com os meus cinquenta e sete anos é que vou procurar emprego e pela primeira vez na vida? Não tenho coragem para colocar o problema aos meus antigos colegas na Associação, nem ao meu amigo doutor Paulo Coco. Não, não pode ser, antes a morte”.

O doutor Leite chegou a casa extenuado, a tristeza cansa mais que o trabalho duro. A esposa ainda lhe disse: - Vens mesmo com cara de trabalho, os américas ou sei lá quem não te deram um minuto de descanso, já nem a casa podes vir almoçar.

- Com efeito, Rosinha, foi um trabalhão, sempre em reuniões, umas atrás das outras, para organizar serviço por serviço, contratar pessoal, elaborar uma estratégia global de marketing e planeamento industrial, nem queiras saber o que aquilo foi. Ainda tenho que fazer umas coisas aqui no escritório. Quando o jantar estiver pronto, chama-me.

O doutor Leite meteu-se no seu escritório doméstico. Foi buscar a pistola que estava numa caixa escondida num dos seus arquivadores pessoais. Uma velha “Beretta” de 9 mm que guardava desde os tempos que pertencera à Legião Portuguesa. “Isto ainda deve funcionar”, pensou. Retirou o carregador e meteu-lhe duas balas. “Uma só chega”, encostou a arma ao osso frontal e disparou valentemente. Morte instantânea.

No dia seguinte, logo pela manhã, o seu espírito-alma estava já instalado no gabinete da secretária de tampo negro. Kurt Lang sentiu logo naquela manhã que algo pairava no ar, só dias depois é que percebeu que era o espírito do doutor Leite. Em pensamento passou a cumprimentá-lo respeitosamente todas as manhãs.

Copywright Dieter Dellinger

publicado por DD às 22:54
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Quinta-feira, 7 de Fevereiro de 2019

Inédito de Dieter Dellinger: O NAVIO

 

 

 

 

Paquete Fuerst Bismarck antes de se tornar no Moskwa da Frota Voluntária da Rússia ao largo de Libau em 1907

 

O Navio

 

            O “Moskva” aí estava, ancorado ao largo de Libau, a capital da então denominada Curlândia, província báltica do Império do Czar, hoje Letónia, naquele ano de 1907. Foi uma alegria para o “professor” Mossei, sua jovem mulher Katia, e para o casal Dmitri Yazov e Irina, verem naquele dia cinzento de Outubro o velho paquete da Frota Voluntária de Rússia que os iria levar a Nova Iorque, a porta da tão sonhada América, depois de uma longa e extenuante viagem de comboio desde Rostov-no-Don, em pleno sul da Rússia Imperial, até aquele porto da bem nórdica costa báltica das terras de Nicolau II.

            O ar elegante do velho paquete a vapor, mas ainda com mastros para velas redonda à vante e latinas à ré, encantou-os, saltou-lhes mais aos olhos as linhas da proa de veleiro com o pau de bujarona a lembrar um belo “Clipper” e a popa bem desenhada de paquete daquele ex-navio alemão, construído em 1891 em Stettin, com um casco negro terminado numa cintura branca que marcava o exterior da amurada. As três grandes chaminés não destoavam do conjunto, pintadas de amarelo claro terminado por uma pintura negra no topo

            Os dois casais, um judeu e outro cossaco, nada tinham em comum, mas encontraram-se acidentalmente numa carruagem verde da terceira classe dos caminhos-de-ferro imperiais. A simpatia e a amizade nasceu do reconhecimento de que ambos tinham o mesmo destino, a América, e do ar sofredor com que cada um dormia nas longas noites passados num comboio que nunca mais parecia chegar à estação final em S. Petersburgo

            Efectivamente, os bilhetes e a papelada final foi tratada na capital daquele imenso império russo, mas o navio não zarpava do porto no rio Neva, antes da baía de Libau, mais aberta e mais disponível para receber os emigrantes polacos, russos, judeus, lituanos, estónios e finlandeses que emigravam para a terra prometida da Liberdade e tolerância, no entender dos cidadãos europeus das grandes monarquias imperiais. O casal cossaco tinha comprado por um bom preço a autorização para emigrarem; o general-Ataman cossaco concedeu-lhes a licença sob o pretexto de Dmitri Yazov não servir para o serviço militar e não possuir terra para cultivar.

            O “professor”, evidentemente não possuía qualquer grau académico e nunca ensinou numa escola, mas foi alcunhado com esse título por Dmitri durante a viagem de comboio por ter começado a ensinar inglês aos seus dois companheiros de viagem. Moissei tinha uma cultura invulgar e falava inglês e muitas outras línguas europeias. Natural de Odessa, era oriundo de uma família tipicamente judaica de antigos camponeses de Kershan, uma das regiões russas em que aos judeus era consentida a actividade agrícola, mas a troco de uma enorme insegurança, pelo que os pais de Moissei acabaram por emigrar para Odessa onde esperavam estar livres dos contínuos ataques por parte das “centúrias negras” que naqueles tempos se entretinham a fazer sortidas contra as comunidades judaicas, matando sempre uns tantos cidadãos inocentes e pacíficos. Mesmo assim, a relativa prosperidade alcançada pela família Moissei com um negócio de sementes e alfaias agrícolas acabou por suscitar a ira dos anti-semitas e ser destruído num assalto nocturno. Logo após a morte do pai em 1907 e já sem mãe, Moissei vendeu o negócio e investiu na compra de um visto de saída do Império e dos bilhetes para a longa viagem para os Estados Unidos da América, um país livre de preconceitos anti-semitas no qual esperava fazer fortuna.

            Um sudoeste frio enchia aquele dia cinzento de Outubro, enquanto a corrente despejava na baía uma massa castanha de lamas e algas arrancadas às costas baixas e frágeis da Prússia Oriental. O piloto e o comandante olhavam com preocupação o tempo. Sabiam que aquele vento quase forte de proa iria dificultar a marcha do navio, pois os tubos das caldeiras da velha máquina de tríplice expansão estavam muito cheios de calcário e precisavam de ser substituídos, mas o navio tinha ainda de fazer uma viagem antes da chegada do Inverno gelado para aproveitar o que restava da quota de emigração para os Estados Unidos da América.

            Quando chegaram, passaram pelos escritórios dos serviços de emigração da Rússia Imperial e depois de regulada a papelada foram informados pelo agente do navio que só ao fim do dia é que poderiam embarcar. Sem mais que fazer, os dois casais deram à guarda a sua bagagem e foram dar uma volta pela cidade, mas como estava desagradável o tempo; ora chovia ora fazia frio resolveram passar um tempo no Café Bonitz e aí ler, à boa maneira europeia, os jornais do dia e algumas revistas da semana.

 

 

 

 

 

            Moissei já se tinha informado de quase toda a história do navio no Almanaque Russo da Marinha Mercante, pelo que começou a explicar aos seus companheiros que se tratava de um navio solidamente construído para a “Hamburg América Line” com o nome de “Fürst Bismarck”, tendo sido vendido à Rússia por volta de 1902. O Moskva deslocava 8.242 toneladas e podia transportar 400 passageiros na primeira classe, 120 na segunda e uns 600 na terceira. “Mais de mil passageiros num espaço tão reduzido é obra, quase tudo à custa do pessoal da terceira classe, aboletados como gado humano abaixo da linha de água em camaratas enormes cheias de beliches sobrepostos em torno de uma mesa sempre suja e escorregadia com restos de gordura e comida de muitas refeições.

            Quando o ajudante do comissário que estava no portaló a receber os passageiros verificou pelos bilhetes que os dois casais se destinavam à terceira classe, o seu semblante anteriormente risonho adquiriu uma faceta desdenhosa e altiva e, já sem boas maneiras, indicou a escada por onde devia descer até ao “inferno” do navio. Mesmo assim, Moissei com os seus óculos de aros metálicos a fingir ouro e o ar doutoral impressionou favoravelmente um dos criados de bordo que lhes arranjou sem problemas um “camarote” interior de quatro beliches e uma mesa quase limpa; um luxo reservado só a uns poucos privilegiados da terceira classe.

            Se Moissei fugia a um passado de perseguições ao povo judeu e a uma sociedade preconceituosa em excesso na sua irremediável divisão entre ricos, nobres por demais e pobres de uma miséria insusceptível de ser descrita, Dmitri e Irina fugiam quase de si mesmos. Num período de desavenças conjugais, Irina enamorou-se de outro quando o marido andava em exercícios militares. No momento da reconciliação, Dmitri não quis ficar na aldeia perto de Taganrok, onde o portentoso rio Don desagua no pequeno Mar de Azov, um lago, uma antecâmara de outro lado bem maior que dá pelo nome de Mar Negro. Não quis sentir o preconceito e aos maldosos murmúrios dos seus conterrâneos que chegavam a levar a mão à testa sempre que passavam por ele. Quatro espíritos divididos entre o receio do futuro e a esperança, a caminho da América, fazendo parte dos 80 milhões de cidadãos que de 1820 a 1920 trocaram a mediocridade social da velha Europa pela sociedade de todos os sonhos nem sempre concretizados.

            Em segredo, o “professor” tomara nota de tudo o que Dmitri e Irina lhe contaram para escrever mais um dos seus muitos contos que, tal como os anteriores, nunca seriam publicados. Moissei não tinha ideia da qualidade da sua escrita e sabia que não era um Tchekov, pelo que nunca teve a audácia de contactar uma editora. Por vezes, Moissei passava por ser um esbirro da polícia secreta do Czar devido à sua mania de indagar as pessoas, saber tudo o que lhes tinha acontecido e perguntar o porquê de tudo o que o rodeava. Dmitri chegou a pensar nisso e inquietava-se porque na sua qualidade Cossaco do Don estava ligado a um Regimento de Cavalaria do Czar, ao qual tinha de prestar anualmente umas semanas de serviço militar. A sua emigração podia ser considerada uma deserção, mesmo com os papéis em ordem e pagos com bom dinheiro, mas reconsiderou a questão e dizia para si mesmo que um judeu nunca podia ser um agente da Okrana.

 

 Ellis Island - O Centro de Recepção de Emigrantes

 

 

O “Moskva” na Guerra

 

            Depois de instalados ainda esperaram um dia inteiro até verem o navio levantar a âncora e iniciar a marcha sob o ruído estridente das suas buzinas de vapor. A azáfama do embarque de pessoas, bagagens, cargas e mantimentos tinha sido aparentemente interminável no meio da desordem tão característica de tudo o que se fazia no Império do Czar Nicolau II.

            Mas, o “professor” não perdeu o seu tempo, começou logo a fazer perguntas e foi à casa da máquina e das caldeiras ver como se trabalhava e falar com o mestre, os fogueiros e os serventes, enfim aquilo que nos navios da época era a escória, o carvão humano que fazia arder o carvão mineral. Depois falou com alguns marinheiros até encontrar um mais solicito e de momentos menos atarefado pois era um dos mestres de manobra das velas, as quais nem sempre são içadas, já que o navio era mais vapor que veleiro se bem que os seus construtores o fizeram com misto ou híbrido. Moissei pensou em escrever um conto com o título “Dmitri e Irina”, mas depois e enamorou-se pelo navio, o “Moskva”, e resolveu escrever um conto um título simples e despretensioso, apenas “O Navio”.

            Logo de início, Moissei foi informado que o navio recebera recentemente esse nome, pois fora antes o “Don”, pelo que foi informar os seus companheiros de viagem que o navio tivera o nome do seu rio, o Don, que sempre viram desde que nasceram, tranquilo, gelado, agitado e saltando para fora das suas tradicionais margens. No Rio Don, Dmitri iniciou os primeiros passos de navegação num pequeno escaler à vela, enfim o Don que para eles nunca foi mais que o rio, serviu quase de berço e é o que de mais grato levavam na memória.

            Com o nome de “Don”, o elegante vapor-veleiro esteve ao serviço da Esquadra da Marinha Imperial Russa que, dois anos antes, deu meia volta ao Mundo para chegar de S. Petersburgo no Estreito de Tsushima, ao largo do Japão, onde foi derrotada pelas forças navais nipónicas.

            - O “Don” – disse o mestre de velas Piotr – foi armado em cruzador auxiliar e zarpou de Libau depois do grosso da esquadra russa ter saído, pelo que não contornou o continente africano, mas rumou directamente ao Mediterrâneo e Canal de Suez para se encontrar com os navios sob o comando do almirante Rojestwenski ao largo de Madagáscar. Seguiu depois com a “Grande Armada Russa” em 1905 que deveria derrotar as esquadras japonesas e libertar o Port Arthur, a cidade portuário sob o domínio russo no Mar Amarelo, e parte da Coreia e Manchúria que os russos disputavam com os nipónicos como zonas de influência. Por alturas de Xangai, o “Don” foi enviado com outros navios auxiliares para aquele porto chinês, pois achava-se que esses navios não tinham condições para participar na batalha. Curiosamente – acrescentou Piotr que já estava no navio nessa altura – o iate “Almaraz”, ainda mais auxiliar que o “Don” e mais pequeno, acompanhou a esquadra e foi o único navio que alcançou o porto russo de Vladivostoque no Mar do Japão.

            Enquanto Piotr contava isso, Moissei anotava tudo, principalmente os nomes dos navios.

Moissei, esperto como era, instalou logo no seu “camarote” uma espécie de escola de inglês e dava lições a grupos de quatro a cinco alunos de cada vez. Muitas vezes, Dmitri deitado no seu beliche acompanhava as aulas e ia aprendendo umas tantas palavras de cada vez. Todos os emigrantes daquele barco queriam conhecer antecipadamente umas tantas palavras de inglês, pois sabiam que não teriam ninguém a recebê-los na língua russa. Mas, era difícil ensinar a língua inglesa porque muitos eram analfabetos e nem sabiam o que era um verbo. Os dotes de Moissei foram tornando-se conhecidos e Moissei foi chamado à primeira classe para dar aí aulas de inglês a pequenos burgueses que também emigravam para os EUA e que na maior parte eram judeus Kasans como Moissei, ou seja, cidadãos oriundos do antigo império caucasiano Kasan, cujo Imperador converteu-se a si e ao seu povo à religião judaica na sequência de algumas curas conseguidas na família imperial por médicos judeus no Século VIII. Mas, havia outros alunos. Um deles era um rico comerciante que abatera a tiro um seu rival e pagou bem à justiça para poder emigrar e não ter mais problemas. Nos momentos livres e sempre muito invejado pelos restantes passageiros, Moissei ia escrevendo a história do barco e das pessoas com que contactava. Moissei e a mulher partiram pobres, mas à chegada já tinham um pecúlio que dividiram em parte com os seus dois companheiros cossacos.

            O “Moskva” deveria fazer a viagem directa para Nova Iorque com uma única escala em Rotterdam. Quando novo era barco para cruzar os mares a dezoito nós, mas agora com os tubos das caldeiras gasto não ia além dos dez.

            Noutro momento de lazer, Piotr voltou como que a ditar para o caderno de Moissei a história do “Moskva”, enquanto cruzador auxiliar Don.

            - Efectivamente, foi a 90 milhas de Xangai que abandonámos a  nossa linha de formação na esquadra e, juntamente, com o cruzador auxiliar “Dniepr”, acompanhámos quatro navios de transporte que se abrigariam naquele porto chinês sob controle internacional enquanto nós voltaríamos ao mar largo para fazer guerra de corso contra a navegação nipónica.

            Quando largámos a esquadra, chovia às catadupas com visibilidade reduzida a uma milha ou talvez nem isso e mal se ouviram uns sinais de despedida. Sabíamos o que estava reservado àqueles nossos companheiros de armas. Uma esquadra imensa e fantasmagórica, extenuada por quase sete meses de navegação e paragens em mares tropicais sob um calor sufocante impróprio para os russos tão habituados aos longos períodos de intenso frio, gasta e atulhada de carvão com os convés a rasar a água e sem treino de tiro. Uma esquadra assim não podia levar a melhor a um inimigo que lutava quase em casa e nunca antes uma esquadra navegou tanto para enfrentar um inimigo nas antípodas da sua base de largada e sem quaisquer apoios por perto.

            Em Xangai, o “Don” e o “Dniepr” meteram rapidamente carvão e largaram as amarras para não serem internados, pois a condição de navios beligerantes só permitia estadias de 24 horas em portos neutros. Toda a costa da China estava dominada pelos ingleses, ainda aliados dos japoneses, mas não em guerra com a Rússia. Por isso, o rigor era toda contra nós; - continuou Piotr – saímos para o Mar Amarelo com a continuação do mau tempo. Pela rádio esperávamos ordens para actuar e procurávamos algum navio japonês para afundar, mas não se via quase nada.

            Navegámos dois dias entre o 25 e o 27 de Maio de 1905 e já ao cair da noite fomos informados pelo telégrafo sem fios que a batalha se desenrolou sem êxito e que deveríamos esperar pelo cruzadores da Divisão do Almirante Enquist, pois iam meter carvão em Xangai e tentar de novo a passagem para o porto de Vladivostock, contornando o arquipélago nipónico pelo Norte. Os cruzadores eram o “Aurora”, o Oleg” e o “Blejatsch”, além dos transportes “Anadir”, “Coreia” e “Swir”. Antes mesmo de aportar a Xangai, a divisão recebeu ordens do Czar para retirarem para o Sul, já que os navios do almirante Enquista necessitavam mais de 24 horas para meter carvão e reparar as avarias resultantes da batalha. O Czar não queria perder os últimos dos seus cruzadores protegidos ou blindados.

            Moissei continuava a anotar tudo o que Piotr dizia, o que tornava a conversa um pouco lenta, mas estava fascinado com o navio em viajavam e que já tinha feito uma viagem tão longa para de longe saber a poderosa esquadra do orgulho autocrata de todas as Rússias, o Czar Nicolau II, foi para o fundo depois de violentos combates de artilharia com os navios do almirante japonês Togo.

            Mas, Piotr, continuou o relato noutro dos momentos livres, e disse: “Assim foi, acompanhámos os navios do almirante Enquist até às Filipinas onde ficaram um ano internados, segundo as leis internacionais que regulamentam a presença de forças beligerantes em países neutros como eram então os EUA, a potência colonial das Filipinas. E nós seguimos para o Báltico num autêntica proeza de navegação pois estivemos mais de um ano no Mar, quase sempre a navegar e foi graças às velas que podemos poupar a máquina a vapor no regresso para evitar que as caldeiras rebentassem devido à usura.

            Entretanto, o “Moskva” navegava rumo a Rotterdam onde a escala foi breve; alguns passageiros saíram; outros entraram. Seguiu-se a rota habitual pela Mancha, Golfo da Gasconha e Atlântico Norte directamente aos cais de Mannhatan.  No Golfo, a borrasca foi violenta, toda a gente sofreu de enjoo, até o cossaco Dmitri, que julgava nunca vir a padecer desse mal, habituado como estava desde a mais tenra infância a navegar no Don. Dmitri foi um exímio pescador, enfrentando com frequência as águas revoltas do rio após os degelos da Primavera. Mas, aquilo no Golfo da Gasconha, não era a mesma coisa. Ali na ré do navio, a hélice fazia um ruído ensurdecedor sempre que as vagas a obrigavam a rodar no vazio, enquanto tabuado do chão não proporcionava um mínimo de descansos aos pés e ao corpo na sua vã tentativa para encontrar um equilíbrio adequado à nossa postura vertical. O chão enchia-se com os vómitos de todos aqueles polacos, finlandeses, estónios, ucranianos e russos que o Império expulsava do látego da pobreza. Mas, tudo era suportado pela esperança radiosa num futuro melhor depois de passarem pelos pavilhões Ellis Islands em Nova Iorque. Todos queriam estar e parecer de boa saúde, temendo ser-lhes recusada a entrada por uma doença qualquer que possa surgir durante a viagem. Alguns guardavam no fundo dos seus sacos uns dólares que deveriam servir para comprar o funcionário da imigração americana para os deixar passar sem se submeterem a um exame médico.

            A travessia outonal do Atlântico foi assaz tormentosa. Nos tempos áureos em que o “Moskva” se chamava “Fuerst Bismarck” viaja na Primavera e Verão para Nova Iorque via Sothampton e no Outono fazia cruzeiros no Mediterrâneo com ricos industriais e comerciantes alemães mais as suas famílias que assim passeavam pelas costas solarengas do Sul da Europa. O turismo marítimo tinha nascido recentemente para garantir um retorno comercial aos paquetes que deixavam de atravessar o Atlântico quando este se mostrava muito agitado e frio. Mas, não para os responsáveis da frota voluntária do Império Russo que queriam tirar o máximo proveito das travessias atlânticas quase até ao fim do ano. O “Moskva” tinha de chegar no dia 1 de Novembro a Nova Iorque para aproveitar a quota do mês e de preferência às 0 horas e 1 minuto por causa da concorrência de outros navios muito maiores.

            De resto, a vida a bordo do “Moskva” na terceira classe é quase insuportável. As refeições sempre iguais faziam lembrar a dos “mujoques” pobres e andrajosos: sopa de couves, papas de trigo mourisco e, por vezes, batatas e alguma carne salgada. Para beber, o chá do Samovar ou o sbiten, uma bebida à base de mel e o kwas fermentado. Muito pouco, pois, nada comparado com o que era servida nas outras classes.

            Depois da borrasca no Golfo, o mar amainou, enquanto o “Moskva” penetrava decididamente no Atlântic; saborearam-se alguns raios solares, mas a terceira classe na tinha no deck espaço suficiente para espairecer verdadeiramente as pernas. Moissei e Dmitri mais as esposas ainda subiram e tentaram marchar um pouco, mas estava tudo atravancado de bagagens, e muita gente, tanto adultos como crianças numa balbúrdia indescritível. Só depois, quando o barómetro começou a descer e a sentir-se um vento rijo borrifado de água do mar e chuviscos é que foi possível aos dois casais desentorpecerem as pernas no deck balaustrado da ré. Nesses passeios continuavam as conversas anteriores sobre as suas terras e trabalhos porque passaram e até sobre a situação dos judeus na Rússia. Dmitri tinha aprendido na família cossaca e no exército a desprezar os judeus, mas frente a frente, a sua opinião mudou completamente. Afinal eram gente como outros, talvez um pouco mais cultos e inteligentes.

            A viagem chegou ao fim quando ao longe se vislumbrou a Estátua da Liberdade envolta no nevoeiro outonal que não deixava ver com nitidez os seus contornos. O coração de todos aqueles emigrantes palpitava com força; ninguém tinha a certeza de passar no escrutínio dos funcionários de Ellis Island. Após as manobras de acostagem sobem a bordo os homens dos serviços de saúde para iniciarem a inspecção dos candidatos a residentes nos EUA; ver a boca e os dentes como se cavalos fossem; auscultar o peito e o coração e examinar outras partes do corpo. Moissei e Dmitri com as respectivas esposas passam rapidamente no exame. Podem desembarcar e seguir para os grandes hangares alpendroados da Ilha de Ellis, onde as autoridades de emigração dão os respectivos vistos de entrada na sonhada terra da “abundância” e “liberdade”. O inglês de Moissei impressiona vivamente os funcionários e menos o de Dmitri, mas que pouco falou. O funcionário perguntou logo se querem tornar-se cidadãos norte-americanos. Responderam prontamente que sim, nada os ligava à velha Europa cheia de preconceitos. Então têm de mudar de nome. Qual é o seu nome perguntou o funcionário ao judeu? Moissei. Então tem de passar a Moses; Katia passou a Katherine, Dmitri a Donald e Irina a Irena, na falta de melhor e sem darem tempo para pensarem. Convencidos não estavam, mas o que poderiam ter feito, o funcionário não queria perder muito tempo e havia uma enorme fila atrás.

            Não foi a última viagem do elegante paquete “Moskva” que continuou a ir a Nova Iorque até 1913. Então, já bastante envelhecido, foi comprado pela Marinha Austríaca que o utilizou no Adriátio como o navio depósito “Gaea”. Em 1918, o ex-“Moskwa” foi capturado pelos italianos e vendido à “Casulic Line” que o reconstruiu quase todo para ser o “San Giusto” e voltar a fazer a linha de Nova Iorque. Só fez uma viagem de ida e volta pois avariou-se tanto que ficou paralisado até 1924 quando foi finalmente para as mãos dos sucateiros.

           

                       

 

 

 

publicado por DD às 22:32
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Ali Aziz, O Vergastado

 

 

 

Casa de Ali Aziz

 

 

            Ali Aziz vivia em Carachi, antes de emigrar para a Arábia Saudita, onde foi à procura de fortuna no comércio do país que era para ele o paraíso dos petrodólares.

           

           Na capital industrial e comercial do seu país, Aziz era um Sahab, um senhor, pois apresentava alguns sinais exteriores de riqueza como sandálias, uma camisa quase sempre lavada e umas calças de tecido leve e fresco à europeia, tudo engomado, e gostava de andar de cabelo curto e barbeado, mas com um bigode negro. Por vezes, principalmente quando punha uma gravata na camisa, era criticado por isso, diziam, que se que queria dar ares de europeu ou pior, indiano, outras vezes julgavam-no um militar em gozo de férias, já que não lhe faltava um ar um pouco marcial e jovem.

 

            Não! Aziz era um pequeno contabilista muçulmano com dois empregos. Era aquilo que na sua terra de nascimento, Carachi, designavam por moonlighthers, os que trabalham de lua a lua. Saia de casa quando o sol ainda não tinha nascido e a lua iluminava um pouco do seu pobre bairro e chegava quando já o satélite despontava no alto. Com 38 anos de idade, uma esposa purdah dedicada ao costumeiro trabalho doméstico e três filhas, tinha mesmo de trabalhar muito para conseguir as quase mil rupias mensais para sustentar a família e dar um mínimo de estudos às filhas pois envergonhava-se se ficassem analfabetas. Também tinha de manter um aspecto decente e civilizado. Antes de chegar a casa ainda passava pelo mercado para fazer as compras diárias, já que uma purdah muito muçulmana não saia de casa sem acompanhamento.

 

A família de Aziz pertencia pois à pequeníssima classe média paquistanesa; estava muito acima dos miseráveis que viviam nas barracas de bambu em torno da cidade e muito, muito abaixo das poucas famílias riquíssimas do Paquistão que dominavam tudo; desde a política à indústria, passando pelas Forças Armadas e, principalmente, possuíam as melhores terras do país.

 

O emprego diurno de Ali Aziz era no escritório de contabilidade e sede da Industrial Sports Mirza & Company, Inc. , uma empresa com várias fábricas nos arredores e bastante fora de Carachi

 

 

 Aziz raramente ia às fábricas, onde trabalhavam centenas de crianças e adolescentes dos 12 aos 18 anos. Aziz não pagava salários a cada uma das crianças que nas fábricas Mirza confeccionavam bolas de futebol para as multinacionais dos artigos desportivos que as vendiam a toda a gente, sendo mesmo jogadas pelos craques europeus. Além disso, fabricavam raquetes de ténis e outros artigos desportivos para exportação.

Todos os meses, o sahab Wazir ia ao escritório levantar um cheque que se destinava oficialmente a pagar os salários. Na verdade, toda a gente sabia, mas ninguém dizia, os petizes não passavam de escravos raptados pelo bando de Wazir às famílias dos habitantes dos imensos bairros de barracas de Carachi e outras cidades e postos a trabalhar nas mais diversas fábricas a troco de uma alimentação frugal e aboletados em imundos barracões.

As autoridades sabiam disso, mas, como toda gente, fingiam que era tudo mentira pois interessava a exportação de artigos de desporto a preços competitivos e nisto de economias modernas de mercado, há que ser competitivo, custe o que custar. Eram guardados à vista por dois patanes ao serviço de Wazir e aos 18 anos de idade ou pouco mais eram libertados ou entravam no serviço do Wazir.

 

Para evitar problemas com as autoridades e denúncias, Wazir costumava mandar matar um dos que deveriam ser libertados para os outros saberem a sorte que lhes espera se forem queixar-se à polícia, apesar de que em princípio daí não viria mal a Wazir, mas nunca se sabe.

 

 

 

 

 

Depois de sair do escritório da Mirza, Ali Aziz ia ainda trabalhar no jornal em língua inglesa Daily People num extenuante trabalho de correcção de provas e, claro, nunca se atreveu a propor um artigo sobre a escravatura infantil no Paquistão apesar de escrever de vez em quando um artigo em inglês.

 

 

Já tarde, Aziz regressava à sua pequena casa, quase infecta, abandonada por um hindu quando da divisão do Hindustão em duas nações. A mulher andava neurasténica por causa da miserável casa  que habitavam. Por isso, Aziz trabalhava para juntar umas rupias para conseguir uma habitação mais condigna, mas pensava sempre que não era possível no Paquistão; ainda não tinha mais que umas 28 mil numa conta bancária que não dava para nada.

 

A pequena casa tinha duas divisões, o que valia a Aziz era ter três raparigas apenas que podiam dormir num só quarto; ele dormia com a esposa noutro e a cozinha fazia de sala de estar, de refeições e cozinha propriamente dita. Praticamente não tinham móveis. Na varando estava o escritório em que por vezes Ali escrevia algo.

A família era pobre, mas pertencia aquilo que no Paquistão, Índia e China chamam de classes médias pela instrução e comportamento, mas estava a uma distância gigantesca dos verdadeiros ricos asiáticos e viviam com muito trabalho melhor que os miseráveis das barracas.

 

As roupas eram arrumadas em malas ou caixotes ou penduradas nuns cabides muito simples e na cozinha não havia mesa, já que se comia no chão sempre muito bem limpo com uma lâmpada de 40 watts pendurada do tecto.

 

 

 

                           

A casa tinha uma pequena varanda coberta e fechada por uma balaustrada sobre a qual assentava um rendilhado de madeira que permitia à mulher ver a rua sem ser vista. De manhã punham-se os colchões e edredões a arejar e depois eram enrolados ao canto, pois não havia camas.

 

As janelas da varanda costumavam estar tapadas por uma espécie de cortinados de verga que protegiam um pouco dos calores tórridos da época mais quente do ano e algum frio no inverno.

 

As filhas estudavam no chão de pernas cruzadas, à boa maneira de todos os habitantes daquele grande subcontinente. A cozinha não tinha água corrente e não havia casa de banho na casa. Esta estava no exterior, nas traseiras da casa, onde havia um casinhoto para o duche e outros para as necessidades fisiológicas. A água era trazida para a cozinha e aí com um fogareiro a petróleo era confeccionada a comida. Para além do fogareiro e do ferro de engomar, a única máquina moderna da casa era o rádio, pelo qual Aziz ouvia sempre o noticiário pois interessava-se por tudo o que acontecia no seu País e no Mundo, mas nunca se inscreveu num partido político pois achava que isso seria só para os poderosos e ricos que durante os muitos períodos de ditadura podiam refugiar-se no estrangeiro.

 

Enfim, era uma habitação de primeiro andar com uma escadinha interior muito estreita que dava para uns degraus muito altos e sem porta. De algum modo, aquilo era quase um apartamento de luxo, pois estava ao abrigo das grandes chuvadas das monções que frequentemente provocavam inundações de um a três metros de altura naquela rua sempre nauseabunda por causa dos restos de comida lançados à rua e nem sempre tragados pelos cães famélicos que passavam por ali.

 

A casa pertencia ao Estado, já que fazia parte dos bens abandonados e foi alugado por uma módica quantia a Aziz, graças à influência do patrão sahab Mirza junto das autoridades locais. Foi na época do ditador Ahyub Kahn e este militar dava-se muito bem com os industriais e ricos em geral e Mirza tinha um prestígio muito especial em Carachi,  talvez porque tivesse o mesmo apelido que o ex-presidente general Iskander Mirza que nomeou Ahyub Kahn administrador-geral do Paquistão, antes de ceder o seu lugar ao próprio Ahyub e partir para os estrangeiros, mas, na verdade, o industrial não era familiar do militar político. 

 

O sonho de Aziz era comprar um terreno e construir aí a sua casa, mas cada vez sentia que não podia, as suas mil rupias não davam para isso. Pensava em emigrar para a Arábia Saudita e instalar lá um pequeno comércio, tanto mais que o avô, um professor de uma Madrassa, lhe ensinara algum árabe e agora Aziz voltava a estudar o árabe por sua conta. Conseguiu do pai ainda vivo, que foi guarda de um banco e depois empregado num escritório comercial, a cedência de vários livros de árabe, incluindo uma gramática, um dicionário e o Alcorão. Mas, para o conseguir necessitava de ter alguém na Arábia que lhe abrisse a porta e facilitasse um visto. Eles só queriam uma mão-de-obra muito barata asiática para fazer os trabalhos mais sujos e alguns europeus e americanos para manter os serviços técnicos civis e militares a funcionar.

 

A sorte bateu à porta de Aziz; o capitão Balmik, um seu primo, partiu para a Arábia Saudita com um regimento que ia defender aquele país, ou antes, a monarquia saudita de qualquer tentativa de sublevação do seu próprio exército. Claro, um militar naquele país, mesmo capitão, é uma chave para todas as portas e de imediato Ali Aziz arranjou o visto e com o seu pequeno capital e algumas cunhas do primo esperava abrir o seu comércio no sonhado eldorado do Mundo Muçulmano, no país das mesquitas de mármore e ouro e dos palácios encantados dos seus milhares de príncipes que chegam a andar em carros com carroçarias todas feitas de prata.

           

             Em criança, Ali Aziz conheceu muita pobreza misérias e o pai chegou a Carachi na maior das misérias e contavam-lhe como tinham escapado da sua terra de origem, Ahmedabad no Estado de Gujarat. Apanharam um comboio apinhado de pessoas até ao tecto. Na passagem pela fronteira, o comboio foi obrigado a parar e aí uns guardas indianos começaram a chacinar os passageiros das primeiras carruagens; umas vezes a tiro e outras com baionetas espetadas nas gargantas ou nos corações. Não chegaram às carruagens do meio e do fim porque se cansaram e o comboio pôs-se subitamente em movimento e chegou a Carachi envolto no cheiro nauseabundo dos cadáveres e do sangue que tingiu de vermelho escuro as primeiras carruagens. Foi uma viagem de horror que só a política e a ânsia de poder aliada ao fanatismo religioso podem provocar.

 

            O avô de Aziz chorou, durante toda a vida, a sua Índia perdida, pois nunca se considerou mais que um indiano de confissão muçulmana; o pai tornou-se rapidamente paquistanês pois chegou a Carachi ainda criança e Ali Aziz nunca viu na Índia mais que o inimigo de sempre dos muçulmanos e dos paquistaneses em particular.

 

            Aziz costumava dizer aos europeus que iam ao escritório da Mirza & Co., que ser muçulmano não é o mesmo que pertencer a uma religião, é uma maneira de estar na vida e, por isso, nunca poderia haver co-habitação com a maioria hindu nem com qualquer outra etnia ou povo que professe outra religião, a não ser que sejam os islâmicos a mandarem.

            - No fundo – disse um dia Aziz – ser muçulmano é como ser europeu, é ter um estilo particular de viver, pois o Islão não é uma religião, não tem um papa e bispos, é uma nação de províncias independentes, tal como a Europa que tende cada vez mais a ser a Nação Unida que nunca deveria ter deixado de ser.

 

            Antes de obter o visto, Aziz teve de assinar no Consulado da Arábia Saudita a Carta da Morte, um documento em que declara saber e ter a consciência que o tráfego e posse de droga, bebidas alcoólicas e material pornográfico é passível de condenação à pena de morte. Aziz assinou, pois não tencionava dedicar-se a nenhuma dessas actividades e, mesmo bebidas alcoólicas era algo que dispensava, apesar de nunca ter recusado uma cerveja ou um gim tónico, mas apenas em ocasiões especiais e por convite, nunca por iniciativa própria.

 

            Com o visto no passaporte, Ali Aziz conseguiu trocar as suas economias por dólares com militares vindos da Arábia Saudita, às quais juntou a venda da chave da sua casa a um casal conhecido que assim passaria a ocupar aquele espaço em seu nome e se viesse um inspector camarário, facilmente o problema se resolveria com algumas centenas de rupias. Depois apanhou um avião da PIA para Riad e foi ter com uns paquistaneses amigos do primo que lhe indicaram um pequeno apartamento para viver.

 

            Ainda sob a influência do capitão Balmik, Aziz entabulou conversações com o saudita Ahmed Walid que não exigiu muito para ser sócio de Aziz, já que na Arábia Saudita toda e qualquer empresa tem de ter um sócio local que, mais não faz, que receber uns dinheiros pela sua condição de saudita de origem, descendente directo das tribos nómadas do deserto. Walid dava muita importância às relações com militares, mesmo que fossem paquistaneses.

 

   

            Riyadh é a capital do Reino. Aí quase não vivem os infiéis europeus, apenas sauditas, estrangeiros muçulmanos e pessoal de serventia como criadas filipinas. Aziz conseguiu alugar uma loja num novo outlet para artigos baratos que não o eram pelos padrões paquistaneses. Pensara primeiro instalar-se no Balad, o centro comercial de Riad, mas aí qualquer espaço custava uma fortuna, pelo que foi para fora, para um outlet à europeia, já quase no deserto, mas muito frequentado.

 

            Os sauditas adoram o deserto e o seu passatempo preferido é ir de carro pelo deserto fora, o mais longe possível e fazer um piquenique como se fossem ainda beduínos. Talvez pensem que um dia o petróleo acaba e voltarão a ser o que foram os pais e avós, nómadas beduínos.

As margens de lucro praticadas naquele comércio eram elevadas e nem nos períodos festivos se faziam descontos e, menos ainda, saldos. Aziz já tinha contactado fornecedores paquistaneses de roupas femininas, pois tencionava colocar as duas filhas mais velhas a vender roupa e ele iria trabalhar como contabilista, além de gerir o negócio. Importar a mercadoria do Paquistão depois de previamente seleccionados modelos, tamanhos, etc. e, talvez, vender também a outros retalhistas.

 

               Enfim, tudo parecia a caminhar no bom sentido. As roupas paquistanesas acabaram por chegar e também uns manequins de plástico para serem vestidos e colocados na montra para atrair a clientela feminina. Aí só expunha hijabs (véus para cobrir a cabeça) e os niqbas, vestes que cobriam as senhoras da cabeça aos pés, quase sempre de cor preta e as indispensáveis abayas brancas ou negras que todas as mulheres tinham de envergar quando saíam à rua. Nada disso era confeccionado no país, dado não haver mão-de-obra para tal. À sua loja deu-lhe o nome de Hum-Bint-Akht que quer dizer mãe, filha e irmã. Com o seu faro comercial pretendia dizer que loja servia para as pessoas do sexo feminino de todas as idades. No interior e na cave, eram vendidas roupas mais charmosas para trazer por casa, portanto Haram, proibidas pelo Islão. Também vendia sandálias enfeitadas igualmente vindas do Paquistão.

           

              Em Riad, Ali Aziz tornou-se mesmo muito piedoso e frequentador da mesquita próxima da sua casa e nunca se esquecia de dizer Alaihi Salaam , a Paz esteja com ele, quando se referia aos profetas e personagens do Alcorão que vão de Adão a Maomé, passando por Abraão, Jesus, Eva, Hajar, mulher de Abraão, Asiya, uma das mulheres do Faraó que acompanhou Moisés, Maria, mãe de Jesus, Khadija, mulher de Maomé e Fátima, a filha mais nova do profeta. Aziz habituara-se no Paquistão a dizer aos europeus que o Islão é também a religião de todas as religiões monoteístas, pelo que haveria sempre toda a conveniência em que os europeus tivessem negócios com os paquistaneses. Mas, na Arábia Saudita percebeu que essas partes do alcorão, ou Suras que referem outros profetas não eram tidas muito em conta e não seria muito aconselhável discutir isso seja com quem for. De resto, os árabes não discutem religião, ao contrário de alguns paquistaneses, limitam-se a praticá-la. As cinco orações diárias eram praticadas com fervor e faziam-nos interromper qualquer tarefa que tivesse em mãos, mesmo quando circulavam na rua.

 

            O negócio até começou a prosperar, pois Aziz instruiu bem as duas filhas mais velhas, uma de dezassete e outra de dezoito anos, a tratarem bem os clientes e dizerem sempre as frases mais recomendáveis, todas de cariz religioso

 

             A esposa de Ali Aziz também costumava ir para a loja vender, o que lhe agradava tanto que se curou da profunda neurastenia que sofria no lúgubre apartamento de Carachi. Elas aprenderam a vender bem as Hijabs, roupa de acordo com o código islâmico e a tal outra dos fundos e da cave. Mas, toda e qualquer venda só podia ser feita se não estivesse um homem na loja. Aziz já tinha uma filipina a ser treinada na loja, pois a comunidade paquistanesa alvoroçava-se por haver aí um dos seus com três jovens filhas ainda não casadas. Muitos pais e tios contactavam Aziz para casarem os seus filhos com três jovens chegadas da Pátria muito amada, o Paquistão, e que nunca estiveram no Ocidente ou noutro país qualquer, excepto agora a Arábia Saudita, o que era valorizado excepcionalmente.

 

            A família de Aziz foi considerada por todos os compatriotas que conheceu como uma família às direitas, pois a mulher e as filhas nunca eram vistas sem as longas Abayas, mas pelos olhos e pelo encanto dos pés exibidos em vistosas sandálias adivinhavam que as filhas seriam bastante bonitas e eram de facto, mas ali só Aziz e a esposa é que sabiam.

 

            Em Riad viviam num pequeno apartamento com um soalho envernizado e muito brilhante e uma bela casa de banho e uma excelente cozinha. Um encanto para a esposa.

  

            Ali Aziz só ia à loja no fim do dia, já quase noite, para contar o dinheiro, ver qual a mercadoria mais vendida e, eventualmente, preparar novas encomendas ou traze-las da alfândega. Durante o dia, contactava outros comerciantes para vender a roupa que importava ou angariava mesmo encomendas directas das fábricas paquistanesas para os maiores comerciantes. Mas, tinha dificuldades por causa da concorrência chinesa. Aziz tentava então explicar que a China não é muçulmana e que as esposas e filhas dos sauditas não devem andar com roupa confeccionada por Kafires, infiéis que, ainda por cima, são simultaneamente capitalistas e comunistas. Algumas vezes, essa argumentação produzia algum efeito, mas nem sempre.

 

           Um dia, surgiu a desgraça; acabou-se a felicidade.

 

            Ali Aziz foi à Alfândega do Aeroporto buscar um contentor de avião com um carregamento de roupas vindas de Carachi.

            Ainda dia, chegou à loja e começou a descarregar as caixas do contentor para o interior. Com a azáfama, as poucas clientes que estavam na loja saíram discretamente e Aziz levou tudo para a cave e disse às filhas para tirarem as alabayas, niqabs e hijabs dos manequins para levar para cima novas roupas. Os manequins ficaram assim nus no seu plástico rosado.

 

            Quanta Aziz e filhas tiravam dos sacos de plásticos as novas alabayas e niqabs que queriam expor, começaram a ouvir ruídos de fortes batidas na montra, subiram para acima e assustaram-se. Viram uma pequena multidão em frente à loja, quase só homens, furibundos a tentar quebrar o vidro da montra, vociferando com fúria. Partiram por fim a montra e começaram a retirar os manequins. Aziz subiu rapidamente as escadas, abriu a porta da loja e começou a perguntar o que estavam a fazer. Choveram logo muitos impropérios; Haram, proibido, ouviu Aziz, e Iblis, desleal a Alah e iníquo, Jinn, Jinn, gritou a turbamulta, o que queria dizer demónio, e Aaamar, pessoa demoníaca, e Shaitan, inimigo dos humanos porque traz objectos impróprios.

 

            Por fim surgiu a polícia e entrou logo na loja, apontando para Aziz a perguntar: - És o dono da loja? – Sou sim, respondeu Aziz. Então estás preso e agarraram-no pelo braço para o levarem para o carro. Cá fora, Aziz ainda viu os seus manequins de plástico a arder e a multidão a aplaudir.

 

            Passou a noite num calaboiço da Qism alShurtah, esquadra de polícia. Na manhã seguinte foi levado a um juiz que devia aplicar a Sharia.

            O juiz disse-lhe logo que podia ser condenado à morte por exibir objectos pornográficos na sua loja e, principalmente, na montra.

 

            - Não sabe o que diz o Sagrado Alcorão, escrito pelo profeta Maomé, que a Paz e a Bênção de Alá estejam sobre ele.

 

            - Mas, não eram objectos pornográficos, retorquiu Aziz, eram apenas manequins de montra, uma espécie de cabides para ser vestidos e exibir a roupa e nenhum apresentava qualquer reprodução ou imagem de órgãos genitais.

 

            - Para já, aplico-te a sentença de dez vergastadas por negares a própria evidência. Tenho o relatório dos polícias e os restos meio ardidos daquilo que dizes serem manequins.

 

            De seguida o juiz ordenou que trouxessem os objectos à sua presença, enquanto Aziz pensava se não deveria pedir a presença de um advogado, contactar a embaixada do Paquistão ou seu primo capitão Barik. Aquilo desenrolava-se à porta fechada com um juiz, um escrivão e dois guardas. Aziz não compreendia um tribunal assim para julgar algo que não lhe pareceu merecedor da mais pequena importância. Mas, cogitando bem e olhando de frente para o juiz, pensou que talvez o enfurecesse ainda mais se pedisse um advogado de defesa e já sabia que não abundava esses profissionais na Arábia Saudita. Resolveu mudar de táctica.

 

            - Assalamu alaikum, a Paz esteja consigo. Peço mil vezes perdão, acredite-me sinceramente, nunca julguei que isso tinha um carácter pornográfico e estava a escolher as Alabayas que vieram de Carachi para as minhas filhas cobrirem os manequins. Tinha-as trazido naquele momento da alfândega. Sabe, as minhas filhas não podiam ir lá levantar a mercadoria e eu nunca vou à loja, só a minha esposa e as nossas filhas é que lá trabalham com uma empregada filipina. De resto tinha trazido a mercadoria num carro guiado por mim. Du a, suplico-lhe que me entenda e não me veja como um bandido. Sou um pai de família com mulher e três filhas, primo do capitão Balmik que está no batalhão de blindados.

 

            O juiz acalmou-se; tirou um cigarro, acendeu-o e começou a falar baixo com o escrivão. Subitamente olhou para o relógio e mostrou-se apreensivo.

 

            - Bem, eu devia condenar-te à morte, mas nós aqui na Arábia Saudita não condenamos à morte pelo primeiro crime, apenas pela reincidência e sendo tu um pai de família não te vou condenar a uma pena de prisão pois as tuas filhas e esposa ficavam sem apoio. Condeno-te a levares 70 vergastadas pelo crime de exibição de objectos quase pornográficos mais as dez que já te condenei por não seres respeitoso. O que te salvou foi assumires o teu erro e pedires desculpa com respeito.

 

 

 

 

 

publicado por DD às 22:30
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Sábado, 2 de Fevereiro de 2019

As Memórias de Kant

 

 

 

                    

 

 

 

           Queres ler as memórias de Kant, um grande “compañero” anarquista da Brigada Thaelman – perguntou-me Josep Herrera, ainda no meio dos girassóis da Andaluzia Ocidental, depois de contar a sua movimentada história de anarquista na Guerra Civil, da qual se salvou por ter vestido uma camisa da Falange, passando no final da guerra por um vitorioso “falangista”.

            Como? Perguntei admirado, então o filósofo alemão do Século XVIII, o autor da “Paz Perpétua” ressuscitou e andou contigo aos tiros?

            -Sim, sim, era um filósofo, também o chamávamos assim por causa dos seus óculos redondos sem aros e do ar distraído. Kant era a sua alcunha e Kurt o nome de guerra oficial.

            - Mas onde o conheceste?

            - Foi num domingo, precisamente a 20 de Julho de 1936; um dia que não me esqueço, mesmo que viva mais de cem anos. Ele apareceu junto ao nosso grupo quando tentávamos desalojar os artilheiros revoltados do coronel López Amor, postado na Praça da Catalunha, no centro de Barcelona. Com um caderninho não mão, Kant balbuciou num mau espanhol o seu desejo de integrar a milícia “roja y negra” dos anarquistas da FAI/CNT. Não tínhamos armas suficientes, mas Kant ou Kurt ficou connosco até lhe passarmos uma velha “Tercerola Mauser” de um dos companheiros caído em combate. Assustado, parecia não saber manejar a arma; num vão de escada ainda lhe demos algumas explicações. Depois, deixou-se contagiar pela valentia das massas proletárias ligadas ao anarco-sindicalismo e portou-se tão bem como cada um de nós.

            Ainda passou algum tempo com as nossas milícias na frente do Aragão; posteriormente foi integrado na centúria Thaelman, organizada em Barcelona com os primeiros voluntários alemães, ingleses e nórdicos. Não sei o que lhe aconteceu no fim da guerra civil; deixou-me um caderno de apontamentos escrito em alemão que nunca cheguei a perceber, mas que empresto para fotocopiares e, eventualmente, traduzires, nem que seja para português.

            Fui assim à casa de Herrera, ali perto do campo experimental dos girassóis híbridos. Uma pequena casa branca encimada por uma platibanda que não deixava reconhecer a natureza do remate: terraço ou telhado; uma casa típica de jornaleiro agrícola andaluz, apenas um pouco melhor que as que se construíam nos caminhos do gado, as “cañadas”, para evitar a expulsão por parte dos grandes latifundiários da região. Casa térrea, caiada e protegida com os típicos mosquiteiros nas portas e janelas, envolvida por aquela quente atmosfera bucólica do Sul da Península. No meio de gatos e outros animais porcelânicos, Herrera encontrou os cadernos Kurt ou Kant.

            - Ele deve falar de mim, estes papéis são os únicos que comprovam a minha presença nas milícias anarquistas, primeiro, e na 26ª Divisão do Exército Republicano, depois. Toda a minha documentação oficial foi destruída e desapareceu na cadeia de Montjuich. Por isso, guardei durante todos estes anos os papéis do Kurt.

            Herrera contou-me que esteve com Kurt na frente de Aragão, mais propriamente na tentativa da tomada de Saragoça. Tal como Herrera, o alemão integrou uma das primeiras “colunas infernales” que, pelas 10 da manhã de 24 de Agosto de 1936, se concentraram no Passeo de Garcia em Barcelona.

            - Com a sua “tercerola”, o já apelidado de Kant estava lá. Ele mostrava um falso ar marcial num “mono” azul; até arranjou um pequeno bivaque militar que lhe conferia o aspecto quase ridículo de um pacifista armado. Sim, ele mais um pacifista que um belicoso guerreiro ou soldado, mas sempre disposto a sacrificar-se por uma causa que considerava justa.

            Sob o comando de Durruti e Perez Farras, partimos em direcção a Saragoça nos camiões que o “Comité de Milícias” organizou quase por milagre; sempre julgámos ter de ir a pé, tal era a falta de meios ao nosso dispor. Fomos até Tardienta, onde, pela primeira vez, enfrentámos o fogo inimigo em campo aberto, sem para tal estarmos minimamente preparados. Mesmo assim aguentámos bem as balas do exército franquista.

            Poucos dias depois, surgiu ali a Centúria Thaelman, a primeira unidade internacionalista formada com anti-fascistas alemães e comandada por Hans Beimler, ex-deputado ao “Reichstag”.

            - Claro que o camarada Kurt, como bom anarquista que era, não se integrou imediatamente naquela unidade dos seus conterrâneos comunistas, - acrescentei ainda.

            - Nessa altura, – disse ainda Herrera – o Kurt já falava um espanhol que se entendia, não muito bem, mas quase, ou antes, um misto do castelhano e do catalão que lhe tínhamos ensinado. Era o que mais faltava à unidade alemã, eles não falavam uma palavra das nossas línguas. Kurt foi um achado precioso e logo o convidaram a ir para lá. Muito a contragosto, o rapaz despediu-se de nós, pois, efectivamente, não nutria uma grande simpatia pelos comunistas alemães, já que os seus ideais se orientavam mais para o anti-autoritarismo.

            - E voltaste a ver o Kurt, depois de ele se integrar na unidade que veio a tornar-se na XI Brigada Internacional?

            - Tempos passados, encontrei Kurt em Barcelona. Contou-me então que tinha ficado fascinado pela personalidade irradiante de Hans Beimler, o ex-espartaquista da Baviera e seguidor da linha comunista de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht que se entrou depois no Partido Comunista Alemão, seguidor da linha mais ortodoxa do marxismo-leninismo. Mas, naqueles tempos, nada disso interessava para nós, o importante era evitar a vitória do fascismo em Espanha. O melhor é leres o seu diário, até porque pouco mais sei de Kurt. E foi então que me deu a guardar os seus cadernos e mais uns livros que tinha deixado numa pensão e que preferia que estivessem em mãos amigas como me disse. Acrescente-se que eu tinha casa em Vich, perto de Barcelona, pois tinha emigrado há muito da minha Andaluzia natal e estava casado.

 

 

 

                            

Aprender Espanhol com os Poetas Andaluzes

 

            Levei as fotocópias dos diários de Kurt e cuidadosamente comecei a ler a sua difícil letra manuscrita a mostrar as condições adversas em que teria sido escrita.

            Kurt escreve pouco sobre a sua pessoa, não divulgando em parte alguma o seu verdadeiro nome, dado que o Kurt não deveria ser mais que um nome de guerra, pois toda a gente então disfarçava a sua verdadeira identidade. Fica assim como um soldado desconhecido da guerra civil espanhola, eventualmente caído e sepultado num qualquer recanto queimado ou destruído pela fúria de homens à conquista do Poder, quem sabe?

            Num dos primeiros papéis, Kurt revela os seus ideais anarquistas, escrevendo que aderiu muito novo, aos quinze anos de idade, a uma organização juvenil da “Freier Arbeiter Union”

(União dos Trabalhadores Livres), inspirada nas tendências anarquistas de Landau, Stirner e John Henry Mckay, mas muito próxima da ala esquerda do SPD dos anos vinte e trinta até à instalação da ditadura hitleriana na Alemanha.

            O anarquismo de Landau era fundamentalmente pacifista e romântico. Com a subida de Hitler ao poder absoluto, a FAU foi logo dissolvida e os seus activistas principais metidos nos primeiros campos de concentração. Kurt ainda foi obrigado a participar numa brigada juvenil de trabalho, devendo posteriormente passar pelo exército nazi. Preferiu fugir para França, escrevendo que trabalhou em quintas como trabalhador auxiliar. O seu maior desejo foi sempre a aprendizagem de línguas estrangeiras, pelo que estudava sempre a gramática da língua do respectivo país e com dicionários e pessoas que contactava procurava aprender o máximo da língua respectiva. Kurt escreveu que o conhecimento de várias línguas estrangeiras podia permitir encontrar bons empregos na Alemanha ou noutro país qualquer, principalmente no âmbito dos negócios internacionais. Kurt quis entrar como aprendiz num escritório de comércio com o estrangeiro, mas a sua saída precipitada para França levou-o a não conseguir o seu objectivo, até porque quando se candidatava perguntavam-lhe logo que línguas estrangeiras falava e escrevia. Na verdade Kurt aprendeu na escola apenas um pouco de inglês e de francês.

            A França, contudo, não o atraiu muito, como nos revela nas opiniões algo malévolas sobre o nacionalismo cultural e político dos franceses. Por isso, pouco depois da vitória eleitoral da Frente Popular espanhola, em 1936, decide ir para Espanha. O seu grande objectivo passou a ser a aprendizagem do castelhano para, eventualmente, emigrar para a América Latina.

            Kurt escreve que desenvolveu uma técnica de aprendizagem de línguas na base do estudo e decoração de poemas, além da leitura de novelas ou pequenos romances com muitos diálogos. Ele escreveu que a rima facilita a memorização, principalmente, quando acompanhada do respectivo significado. Daí que muitos dos seus papéis estejam repletos de poemas espanhóis com particular incidência nas rimas do grande poeta andaluz Gustavo Adolfo Becquer, sem esquecer outros sevilhanos ilustres como os dois irmãos poetas António e Manuel Machado.

            Não posso pois deixar de reproduzir uma das estrofes de Becquer que Kurt tão gostosamente copia para os seus diários sem lhes acrescentar qualquer tradução:

 

           Asomada a sus ojos una lágrima

           y a mi labio una frase de perdón:

          habló el orgullo y se enjugó su llanto

          y la frase en mis labios expiró.

         Yo voy por un camino, ella por otro,

         Pero al pensar en nuestro mutuo amor,

         Yo digo aún: Porque callé aquel día ?

         Y ella dirá; porque no lloré yo?

           

Kart traduz a trigésima rima de Becquer, acrescentando que desejaria traduzir todos os seus poemas para alemão e escrever uma biografia do infeliz poeta andaluz do século dezanove, falecido ainda em plena juventude. Para ele, não obstante a ascendência germano-flamenga de Becquer, trata-se de um poeta que soube revelar como ninguém o arrebatamento romântico da alma andaluza que tanto fascinou Kurt. Até porque o anarquismo ibérico foi acima de tudo andaluz.

Para além da sua admiração por Becquer, Kurt apaixonou-se pela poesia de Manuel Machado, tendo transcrito para algumas páginas dos seus diários uma parte do “El mal poema”:

 

Yo poeta decadente

español del siglo veinte

que los toros he elogiado

y cantado

Las golfas y el aguardiente

y la noche de Madrid,

y los rincones más oscuros

de estos bisnietos del Cid.

 

Kart descreve as ruas hispânicas ao fim da tarde, sobre as quais jorra um mar de gente em permanente romaria, inundando bares, tabernas e esplanadas: - A alegria transbordante dos povos ibéricos eram em si mesmo uma série encadeada de poemas, - escreveu num dos seus cadernos diários.

O seu périplo hispânico foi curto, já que do porto francês de Le Havre seguiu para Cádis de barco, passando para Sevilha, onde permaneceu alguns semanas. Pretendia escutar a alma andaluza nos seus cantares e poemas e escrever sobre o seu espírito anarquista. Kurt escreve num dos seus diários que lhe interessava conhecer as organizações secretas anarquistas da Península, nomeadamente a FAI, cujo carácter secreto poderia ser uma primeira pedra para a construção de uma maçonaria anarquista universal capaz de minar de uma forma decisiva os autoritarismos ditatoriais de direita e esquerda.

Mais de duas horas levou o comboio a percorrer a planície andaluza no trajecto que vai de Cádis a Sevilha. Kurt contemplou admirado a paisagem que começou com a geometria perfeita das pirâmides de sal logo à saída de Cádis.

Ao chegar a Sevilha, à cidade-jardim como a denominou e de se instalar numa pensão barata que lhe tinham indicado no comboio, Kurt transcreveu para o seu diário mais uma estrofe de Becquer que tinha decorado:

 

Hojas de los azahares

Van alfombrando el jardín;

Quieren que las pises tú

Y se desprenden por ti.

 

Nas suas notas sobre a poesia de Bécquer, Kurt insurge-se contra o pseudo-utilitarismo revolucionário que conheceu na Alemanha e França entre muitos homens de esquerda, afirmando que a qualidade, seja na arte ou em qualquer outra actividade, nunca é contra-revolucionária.

“Inimigos do progresso,” escreve Kurt, “são aqueles que recusam as melhores obras do espírito humano, substituindo-as, por vezes, por uma vulgar propaganda desprovida da mais elementar qualidade, pois nada há mais contra-revolucionário que a ignorância e a incompetência anti-cultural”.

Em Sevilha, o jovem alemão queria investigar algo sobre a história do movimento anarquista andaluz, nomeadamente a partir do Congresso dos Trabalhadores da Região Espanhola que teve lugar em Sevilha no ano de 1882, do qual saiu o primeiro grupo anarco-terrorista, “Los Desherdados”, de carácter tão secreto que levou a guarda civil a inventar um nome para a organização secreta, “La Mano Negra”, para catalogar as acções dos “Los Desherdados”, chegando a apontar crimes que nunca tinham cometido. Foram agentes provocadores de organizações da burguesia espanhola que cometeram a maior parte dos crimes atribuídos aos homens de “La Mano Negra”, organização que, afinal, nunca existiu.

Mas, as dificuldades foram muitas para Kurt que pensava encontrar trabalho para se manter durante o período das suas investigações; os empregos eram escassos e os salários de autêntica miséria. Num bar, Kurt conheceu Ramón, sobrinho do proprietário de uma fábrica de rolhas de cortiça situada entre a “Puerta de Córdoba” e a “Puerta de Macarena”, a nordeste de Sevilha. A troco de algumas pesetas diárias foi trabalhar na escolha de rolas.

“Sentados em cadeiras de vime, junto a umas mesas baixas, escolhíamos as rolhas, enchendo uns grandes recipientes de vime conforme as respectivas qualidades”.

“De um lado trabalhavam os homens, essencialmente velhos e adolescentes; do outro, separado por um forte reposteiro de serapilheira, trabalhavam as mulheres, quase todas lindas operárias sevilhanas. Ouvíamos os seus risos e dichotes, mas estávamos proibidos de entrar em comunicação com elas. Nem depois do trabalho, pois eram sempre esperadas à porta da fábrica pelas gordíssimas matronas, suas mães ou tias.”

“Mesmo assim,” continua Kurt, “quando a atenção do contramestre era menor, choviam os dichotes através do reposteiro, frequentemente dirigido a uma ou outra pois sabíamos bem os seus nomes, principalmente das mais bonitas, outras vezes em no geral:

“Mujer hermosa, loca y presuntosa”, diziam os homens de um lado, “me descalzo de riso”, respondiam do outro lado. “Moza galana, calabaza vana”, continuávamos; “cuidado que está el toro en el tendido”, respondían ellas, acrescentando: “qué botarate? quê tio más fresco? Dale ajo, ajo. Pides peras al olmo”, respondia um dos colegas mais engraçado, enquanto o outro cantava:

“Yo quisiera ser el Aire

para mezclarme en tu aliento

y hacer mi nido en tus labios,

y dormir con mis besos”.

 

A cantar em coro, as moças respondiam:

 

“Al garrotín al garrotán,

A la vera, vera, verita van.

Me ha dicho que no me quieres.

Me importa tres caracoles,

Más arriba, más abajo,

Me están queriendo a montones,

Al garrotín, al garrotán,

A la vera, vera, verita van.

 

Olé, olé, olé! Graciosa, oléee! Viva tu madre! Terminávamos em uníssono.”

 

Escrupulosamente, Kurt reproduz nos seus cadernos as chufas mais jocosas da Sevilha daqueles anos, não tão distantes dos actuais, mas muito diferentes quanto ao modo de vida das sociedades, acentuando que o proletariado andaluz, mesmo quando sujeito à mais miserável exploração, nunca perde a alegria e a sua prodigiosa imaginação poética.

As escassas pesetas diárias não davam para o sustento de Kurt, mesmo morando num pequeníssimo quarto numa casa proletária do bairro La Macarena. Daí não ter permanecido muito tempo em Sevilha, tanto mais que o acesso a arquivos antigos era difícil. As diversas fases de repressão do anarquismo andaluz conduzira à destruição de muito do seu historial.

“Em 1936”, escreveu Kurt, “a CNT de Sevilha era muito reduzida pois preponderava aí a UGT. Era nas pequenas aldeias perdidas dos campos andaluzes que dominava a federação anarco-sindicalista CNT. Desprovida de funcionários ou verbas de apoio a grevistas, as suas acções eram combatidas por excelência; na memória de todos, permaneciam as cenas dos duros combates travados anos antes contra os sicários dos latifundiários e a guarda civil nos tempos da ditadura do general Primo de Rivera. O trágico episódio de “Casas Viejas” estava ainda muito vivo na memória colectiva dos anarquistas andaluzes. Mas, em 1936, depois da vitória da Frente Popular, os anarquistas estavam altamente empenhados em ocupar as terras dos grandes proprietários de terras.

Por falta de meios, Kurt não conseguiu acompanhar o processo, partindo para Barcelona, onde esperava encontrar trabalho mais remunerado que permitisse a sobrevivência e regressar depois à Andaluzia para continuar os seus estudos sobre o anarquismo rural.

 

As Primeiras Batalhas

 

Utilizando o comboio e vários autocarros de carreira, Kurt viajou para Barcelona e descreveu muito do que viu e as conversas que teve em numerosas páginas dos seus diários, cuja transcrição só teria cabimento num volumoso livro, não num texto assaz longo para um blog.

Em Barcelona, arranjou emprego numa empresa de comércio internacional como correspondente, mas a sua permanência aí foi curta. Passadas poucas semanas, Kurt lutava voluntariamente nas milícias “roja y negra”

No seu diário escreveu: “A confusão foi total naquele domingo, fui levado pelo contágio, ao ver aquele proletariado fazer frente às armas pesadas do exército em rebelião contra o poder democrático. Ainda cheguei a pegar numa arma e dar os últimos tiros da vitória anarquista de Barcelona.

Não fui valente nem cobarde. Tive medo, mas os camaradas ajudaram-me muito. Conheci pela primeira vez aquele espírito solidário e amigo do proletariado espanhol. Não estava só, éramos irmãos na luta, no sofrimento e depois na vitória.

Como miliciano, passei a receber as 10 pesetas diárias e fui aboletado no quartel Karl Marx, junto ao jardim zoológico da capital catalã onde recebi uma sumária instrução militar e parti para Tardienta.

Aí, acabei por ser incorporado na primeira unidade, centúria, daquilo que foi depois o Batalhão Thaelman, composto por anti-fascistas alemães e de outras nacionalidades norte-europeias. O comandante era Hans Beimler, um notável militante comunista que esteve preso no campo de Dachau, de onde conseguiu fugir, depois de estrangular um guarda SS e vestir o seu uniforme.

Ainda no tempo da República de Weimar, Beimler foi condenado a dois anos de prisão por ter feito parte do governo revolucionário soviético da Baviera em 1919. Durante a I. Guerra Mundial, fez parte da Marinha Imperial Alemã e participou activamente no levantamento revolucionário dos marinheiros contra a guerra e o poder do Kaiser.

“Hans Beimler fez-me ver a necessidade da união de todas as forças anti-fascistas para evitar o avanço do fascismo em Espanha e para levar ao derrube do nazismo na Alemanha.

Assim, das milícias revolucionárias anarquistas, eu, que sou um pacifista anarquista, passei a incorporar uma unidade mais disciplinada, mas não desprovida de ardor militante. Troquei o fato-macaco azul por uma nova farda, bem pouco militar, por sinal. Deram-me umas imensas calças de  bombazina preta que tive de cortar e uns plainitos minúsculos, além de duas camisas quase  militares; depois com a reorganização da unidade e formação das divisões internacionais é que vieram fardas a sério.

O nosso armamento era confuso ainda; continuei a usar a velha “tercerola” sem baioneta. Era a “Mauser” mais curta e, por isso, a mais leve e manejável, se bem que de menor alcance. De resto, com a minha miopia não interessavam os grandes alcances.

Entrámos pela primeira vez em acção junto ao canal de Tardienta com o nosso blindado à frente, um camião protegido por umas chapas de aço que Franz Raab comandava a preceito. O condutor não via nada; do lado de fora ia sempre alguém a dizer por onde deveria guiar aquela barulhenta máquina. O nome da jovem Lina Ordena estava pintado no flanco do nosso “blindado”, em homenagem à dirigente das Juventudes tombada frente a Huesca.

A missão era dinamitar o canal daquela cidade para inundar as linhas fascistas. Durante dias travámos uma furiosa batalha; sempre que nos aproximávamos do canal, os fascistas disparavam a torto e a direito, pelo que nunca chegámos a abrir uma brecha suficientemente ampla nos respectivos diques. O que conseguíamos era molharmo-nos constantemente, até porque os fascistas fecharam as comportas do canal e a nossa frente ficou extremamente cheio de água. Depois lutámos para conquistar uma pequena porção de terreno com algumas casas, denominado “La Ermitã”. A luta foi violenta, muitos dos nossos camaradas caíram ali mesmo.

Beimler era um militante notável e valente, mas conhecia pouco as tácticas militares; juntava-nos sempre em grupos cerrados, o que provocava muitas baixas, pois quando os fascistas disparavam mesmo a mais de quinhentos metros acertavam sempre em alguém, até que o escritor pacifista alemão Ludwig Renn lhe deu umas indicações sobre a dispersão dos homens na linha de fogo e sobre a manutenção de uma linha de reserva um pouco mais atrás. As nossas operações passaram a ter mais êxito e já no fim de Outubro regressámos a Barcelona, esgotados e a carregar numerosos feridos e deixando numerosas campas com os corpos dos nossos camaradas.

 Eu sobrevivi àqueles dois meses de combate,” continuou Kurt, de alcunha o Kant, a escrever nos diários que li com uma imensa curiosidade.

“Em Barcelona”, escreve Kurt, "assisti à entrega da bandeira de honra da unidade pelos membros do governo catalão, a Generalitat. Receberam-na os três irmãos Nielsen, os valorosos dinamarqueses que tanto se distinguiram nas primeiras lutas”.

 

 

 

 

“No Passarán” em Madrid e Morte de Beimler

 

“Tivemos um período de descanso e recomposição, partindo depois para Madrid. Já não éramos uma simples centúria, mas uma brigada com vários batalhões, entre os quais o batalhão Edgar André, nome de um comunista germânico mandado fuzilar por Hitler, e o batalhão Thalman, ao qual eu continuava a pertencer no 2º Zug (Companhia). Passámos a ser a XII Brigada Internacional, comandada pelo general húngaro Lukacz. A 7 de Novembro de 1936 entrámos em acção na defea de Madrid, em plena batalha pela “Casa del Campo”. O nosso grito de guerra era “no passarán”. Além das metralhadoras e da canhonada fascista acompanhada pela tanquetas italianas que arrumávamos com granadas de mão lançadas por cima, enfrentámos a aviação nazi que reduziu grande número de quarteirões de Madrid a cinzas, mas que não frente de batalha pouco incomodava, já que não acertava em nada que estivesse camuflado e tinham medo das nossas poucas metralhadoras anti-aéreas.

A “Casa del Campo” que era um grande jardim no limite da cidade, onde os madrilenos iam fazer picnics aos domingos. Depois de derrotarmos o avanço dos fascistas e de termos deixados muitos deles no terreno, fomos em socorro da Cidade Universitária, na qual travámos combates sem fim. A minha companhia entrincheirou-se numa das faculdades. Chegámos a expulsar com granadas de mão a tropa fascista que entrara pela porta principal da faculdade. Depois fomos cavar uma linha defensiva de trincheiras que fomos guarnecendo ao mesmo tempo que trocávamos um intenso tiroteio com o inimigo.

No dia 1 de Dezembro, Beimler que comandava ainda a minha companhia, apesar de estar destinado ao comando de um batalhão, ouviu os gritos de um ferido na terra de ninguém, gritava em alemão. Hans Beimler saltou imediatamente da trincheira para ir socorrer o camarada e foi acompanhado por Ludwig Fischer e Richard; eu ainda o quis acompanhar, mas ele ordenou que ficasse na trincheira e o procurasse cobrir com o meu fogo e dos restantes camaradas, enquanto procurava trazer o ferido para a nossa linha. Quando Beimler já tinha colocado o ferido na maca e tinha-se levantado, o inimigo abriu fogo e acertou em cheio no valoroso militante. Hans Beimler tombava com a mão no coração, dizendo; vão para a frente.

Foi um choque terrível para todos nós. Acompanhei-o no enterro e vi homens endurecidos por dezenas de combates a chorarem compulsivamente quando o caixão desceu à terra, ao mesmo tempo que o poeta espanhol Emílio Prados declamava:

 

“Nasciste lejos, Hermano,

pêro la muerte, en España,

te hizo nacer en su tierra

para ganarte a su patria ….”

 

Antes de ir para o cemitério, o caixão esteve exposto no cinema Royalty. Na homenagem que então lhe prestámos, o general Miaja fez um discurso emotivo, terminando com a frase, “os vossos mortos são também os nossos mortos”.

“Na verdade,” escreveu ainda Kurt, “desde que em Agosto integrei a centúria Thaelman, mais de metade dos voluntários de então caíram em combate. Estávamos a pagar um preço excessivamente elevado pelos nossos ideais, mas continuávamos.”

 

Termina aqui um dos cadernos de Kurt, o Kant. Obviamente que aproveitou o funeral de Hans Beimler para verter para o papel as emoções que acabava de viver. A exiguidade do espaço da revista “Seara Nova” não permite ir mais além, obrigando-me a deixar para outros números a continuação das memórias do anónimo Kurt, o Kant de alcunha.

 

 

 

 

Publicado por DieterDellinger na Revista Seara Nova.   

 

 

                               

publicado por DD às 19:40
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Conto da Palma da Mão: Ela

 

 

 

António entrou no Senhor Roubado, já vinha um pouco atrasado e o Metro perto das nove enche-se logo ali. Na Ameixoeira entrou mais gente e muito mais no Lumiar. António ficou de pé numa plataforma de porta e, de repente, ficou espantado, viu-a na outra plataforma. Não podia deixar de a reconhecer imediatamente e olhou com os olhos muito abertos para ela que se colocou de pé virada para ele. Não desviou a cara e fitou-o com interesse; António fez um aceno com a cabeça e queria sorrir, mas não conseguiu, a tristeza apoderou-se dele. Ela acenou timidamente e não desprendeu os olhos dele.

António pensou para consigo: a Armanda está na mesma, bonita como sempre, não engordou e mantém aquela saia negra. Ela parecia compreender o que ele pensava e soergueu as sobrancelhas como que para ver melhor. O semblante de António deveria mostrar uma profunda tristeza e dizia-lhe em pensamento: que pena ter-te perdido por tão pouco. Fomos casados cinco anos e por quase nada separámo-nos e divorciámo-nos, não deixámos nada um para o outro, nem uma criança. Será que ela tem alguém? É muito possível, a Armanda é demasiado mulher para não ter homem. Eu é que nunca mais arranjei alguém como ela. Vou tentar falar-lhe, mas isto está mais que cheio. Talvez no Campo Grande saia muita gente e então aproximo-me; ela quer falar comigo pois não desviou por um segundo a cara de mim. Podíamos reatar a nossa ligação; passaram-se anos, mas como? Estou prestes a perder o emprego, a direção da Companhia Marítima já disse que ia dispensar metade do pessoal, logo que fosse publicada a nova legislação do trabalho. E para que serve um desempregado a uma mulher como a Armanda, ela vem bem vestida, mas não mudou de hábitos desde há mais de cinco anos, traz um belo anorak vermelho.

No Campo Grande saiu muita gente e a Armanda também. António viu-a atravessar o cais e dirigir-se para a outra linha do Metro. Para onde irá? Perguntou a si mesmo e porque razão nunca a vi nesta linha em que viajo há tanto tempo duas vezes por dia.

 

publicado por DD às 19:29
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Sexta-feira, 1 de Fevereiro de 2019

Conto Inédito de Dieter Dellinger: A Ida ao Cinema

   

     

         O jovem de 15 anos Joseph Engel sempre teve uma predilecção pelo livro “As Aventuras do Barão de Münchhausen”. As histórias aí relatadas faziam-no sonhar e sentir-se outro e não um petiz magro, franzino e louro com um ar sempre distante, talvez um pouco desconfiado, como quem não acredita na sinceridade dos colegas da escola, dos professores e dos vizinhos. Tinha muito do seu nome, Engel, anjo. Sim era quase que um pequeno anjo naquele mundo sórdido dos arredores de Hamburgo em pleno ano crítico de guerra, 1943.

 

        A cidade devastada exalava um permanente cheiro a queimado que não se sabia se era dos prédios, dos interiores ou dos milhares de cadáveres meio ardidos que os Aliados inexoravelmente deixavam após cada bombardeamento com as bombas explosivas seguidas das tenebrosas borboletas de fósforo ardente, pegajoso e terrivelmente mortal. Mesmo assim, as autoridades pretendiam que a vida continuava na normalidade e o cinema das proximidades ainda mantinha as sessões habituais, agora com “As Aventuras do Barão” no cartaz. E ninguém se atrevia a dizer, ou mesmo a pensar, que em cada bombardeamento dos aliados dezenas de milhares de pessoas eram queimadas literalmente vivas por esse monstro, o fogo do fósforo. Ninguém punha luto e as coisas passavam-se quase como se não tivessem passado. Os jornais falavam, mas poupavam nos pormenores e às bombas incendiárias e às borboletas de fósforo ninguém se referia.

 

A mãe do “pequeno anjo”, Bertha Böhm, judia de ascendência, mas evangélica de confissão e casada em segunda núpcias com um cidadão ariano, não era obrigada a seguir certas normas impostas aos judeus pelo regime nazi como a proibição de frequentar salas de cinema e teatro, adquirir jornais e livros, etc. Normas que faziam lembrar as “Leis de Manu” do Hinduísmo no que respeita à casta dos impuros e intocáveis Chandala e Svapaka na eterna Índia.

 

         Foi pois sem qualquer receio que naquele Domingo de Janeiro de 1943, Bertha e o filho Joseph Engel foram ao cinema e regressaram felizes pelas oito horas da noite à sua pequeníssima vivenda na esquina de uma estreita travessa, já quase nos arrabaldes de Hamburgo. Ao lado, a senhora Henkel vigiava através das cortinas e perguntava a si mesmo o que mãe e filho foram fazer na rua para regressar só aquela hora. “Tenho de saber, se não for hoje, pelo menos amanhã, a segurança do nosso Reich pode ter sido posta em causa,” disse para consigo. Depois de entrarem, a Frau Henkel continuou a olhar para a porta, desde a sua casa, e a espreitar o que faziam em casa.

 

         Bertha tinha ido para a cozinha, enquanto Joseph começava a fazer uns trabalhos escolares ali mesmo ao pé, na mesa da cozinha. A senhora Henkel, raivosa, espiava sem parar. Ainda os viu a comer com o marido e padrasto de Joseph Engel até ver que as luzes se apagavam. “Deverão ter ido deitar-se”, pensou.

 

         No dia seguinte, pela manhã, a senhora Henkel saiu para a travessa com a saca das compras como se quisesse adquirir algo. Passou vezes sem conta pela casa de Bertha Böhm até dar de frente com outra vizinha, a jovem Gabrielle que mantinha algumas relações de amizade com Bertha, apesar da diferença de idade. Depois de um cumprimento ligeiro: - Olá como tem passado – perguntou repentinamente.

 

- Então não saiu ontem com os Böhm?

- Não, eles foram ao cinema, - respondeu naturalmente a jovem, sem pensar em nada de especial.

- Ah sim! E foram ver o quê?

- Provavelmente foram ao Kino Pallas ver as Aventuras do Barão.

- Não é onde toda a gente vai agora?

- Claro que é, mas como é que você tão jovem e bonita fala com uma judia

- Não, nunca falo, só ouvi qualquer coisa por acaso, - respondeu temerosa a Gaby, como era conhecida entre os familiares e amigos.

-         Então está bem, até à vista (“auf Wiedersehen”).

 

Sem perder tempo, a maldosa foi à esquadra da polícia denunciar a Senhora Bertha Böhm de ter ido ao cinema com o filho e, como judia, isso não lhe é permitido apesar de não ter de andar ainda com a estrela de David cozida ao ombro.

 

         Falou com o guarda Heinrich, um sexagenário que deveria estar reformado mas que fora chamado de novo ao serviço por causa da mobilização do pessoal mais novo. Heinrich tinha regressado recentemente de uma acção do Batalhão de Reserva da Polícia na Polónia. Tinham aí executado alguns milhares de elementos de famílias judaicas, principalmente mulheres e crianças de maridos e pais que foram assassinados antes ou que estão nos campos de trabalho forçado. O guarda Heinrich tomou imediatamente nota de tão importante denúncia e telefonou logo de seguida à sede da Gestapo em Hamburgo, situada no edifício Kola-Fu, como era conhecido no calão hamburguês, na chamada ponte da cidade. E sem perder tempo, o oficial de serviço despachou logo um piquete de agentes da polícia política Gestapo para a casa de Bertha Böhm, onde entraram com grande violência, revistaram tudo, esburacaram colchões e sofás, acabando por levarem a senhora Bertha Böhm e o filho Joseph Engel para as celas tenebrosas do Kola-Fu.

 

         Logo à chegada, umas severas e brutais guardas femininas ordenaram a separação do filho e da mãe, levando cada um para as respectivas celas colectivas que davam para um pátio escuro de onde se ouviam constantemente os gritos de dor de prisioneiros a serem torturados pelos agentes da Gestapo.

 

         O oficial Adolf Kohl que recebeu o processo dos dois e resolveu logo chamar o marido, o senhor Böhm, para lhe impor o divórcio da sua mulher Bertha.

 

         Kohl foi ríspido e quase violento.

 

- Você não tem alternativa, - disse-lhe o oficial da Gestapo, um indivíduo baixote de cara flácida e meio careca, branco, sempre suado, - ou divorcia-se e adquire o seu completo estatuto de membro da raça ariana ou vai com a sua mulher para Theresienstadt trabalhar numa fábrica sem ordenado e com um naco de pão diário apenas. De qualquer modo, nada poderá fazer pela sua mulher nem pelo seu enteado. Olhe, basta preencher este formulário e assinar. Dentro de uma semana recebe uma notificação a dizer que está divorciado.

 

Boehm era um homem sério, velho comerciante, e não muito político. Nunca se inscrevera no Partido Nazi e antes simpatizou sempre com o SPD, chegou mesmo a pertencer a uma Associação de comerciantes socialistas. Por isso, talvez, só a palavra Gestapo o deixava transido de medo e pensou que nada podia fazer naquele momento e assinou. Quando saiu do Quartel da Gestapo chorou e recordou a outra vez que tinha chorado também. Tinha sido convocado para os voluntários da defesa civil e depois de um dos maiores bombardeamentos aliados trabalhara mais de uma semana a desenterrar corpos queimados das caves dos prédios destruídos.  

 

Assim foi. Berta e Joseph Engel ainda ficaram umas semanas no Kola-Fu até serem um dia acordados de madrugada para serem levados num transporte especial de deportados. Bertha nunca mais vira o marido e só recebeu a informação de que estava divorciada, não tendo chegado a saber se o divórcio resultara de uma atitude do marido ou antes da Gestapo. Acreditava que sim, tinha sido a polícia nazi a ditar o divórcio.

 

         Logo após o divórcio, Bertha Böhm foi posta à disposição do departamento de trabalho da Gestapo para ser colocada numa fábrica como trabalhadora escrava, ou antes, ir para a “Estação de Hannover” como era referido na linguagem da Gestapo, o que nem era bem um código, pois tratava-se de uma antiga estação de caminho de ferro que servia como local de ajuntamento de deportados judeus antes de serem encurralados em vagões de gado com destino aos muitos campos de concentração.

 

         Aquela prisão da Gestapo era, acima de tudo, um local de tortura e ao longo do dia e da noite ouvia-se continuamente os gritos dos torturados. De vez em quando, o organista da Gestapo tocava umas melodias para abafar os gritos das vítimas. Tocava alguns dos grandes compositores alemães, como se fazia nalguns campos de concentração, na pretensão de que ali estava uma raça culturalmente superior na música, mas, na verdade, profundamente bárbara e abjecta na impiedade assassina.

 

         Passados uns dias, uma das guardas avisou Bertha que sairiam de madrugada para a Estação. Bertha perguntou se o filho também ia com ela. A resposta foi rápida e ríspida.

 

- Não, não vai consigo, não, vai para outro local.

 

Ao ouvir isto, a mãe do pequeno Joseph Engel teve um choque e caiu no chão a chorar convulsivamente. A guarda deu-lhe uns pontapés violentíssimos, ordenando com severidade que se levantasse e deixasse de lamúrias e choros, aquilo ali não é lugar para isso.

 

- Se voltares a chorar parto-te os ossos, – disse-lhe ainda.

         - Estamos em guerra, – gritou-lhe a facínora, – temos de ter almas de ferro que não tenham piedade de ninguém, a frente é aqui também, todos somos combatentes e o inimigo está em toda a parte.         

         Desesperada e chorosa, a pobre Senhora Bertha Böhm levantou-se pelas 4 da Madrugada para ser levada a pé num longo cortejo de presos por motivos ditos rácicos, pois quase todos eram cidadãos de confissão judaica, mas obviamente tão europeus como os restantes concidadãos.

 

          A noite estava escura sem luar e não havia qualquer iluminação. Os presos tropeçavam continuamente enquanto os guardas batiam-lhes com as coronhas das espingardas. Chegaram à estação e tiveram de esperar em pé durante duas horas. Tinha começado para eles aquela interminável tortura executada pelos nazis sobre os povos e pessoas perseguidas. Na sua forma mais benigna eram as longas esperas ao frio, as chamadas nocturnas para contagem, os longos trajectos a pé com pouca roupa e muito frio, as viagens em vagões de gado para os campos de concentração com paragens em entroncamentos e estações devido aos bombardeamentos. Viajavam em vagões sem higiene, onde frequentemente nenhum preso podia sentar-se, por estarem de tal modo concentrados num espaço exíguo. E o pior de tudo era a falta de comida, a fome permanente garantida por um pedaço de pão diário, por vezes com algum sucedâneo de carne e uma sopa horrenda de vegetais intragáveis.

 

           A disciplina exagerada era mantida com agressões contínuas, insultos e toda uma imaginação fértil na descoberta de formas para achincalhar e rebaixar pessoas totalmente indefesas. As crianças não sofriam tanto esses males tratos porque eram rapidamente assassinadas nas câmaras de gás ou morriam muito depressa de fome e doença, sendo não raro acompanhadas pelas mães.

 

            As vítimas do nazismo eram submetidas a tanta tortura que nem tinham forças para odiar ou perguntar a si mesmo, mas que deus as tinha condenado a padecer tanto. Muitos dos judeus crentes sabiam para si que eram o povo eleito e que Deus os estava a pôr à prova, não para uma vida melhor na Terra, mas para o futuro encontro com Deus além da morte. Viviam as provações de Job como foi descrito pelo profeta Isaías. Alguns, por outro lado, achavam que aquela impiedade total era bem a prova que Deus não existe e que uma parte dos seres humanos encarnava sim a maldade diabólica. Satanás dispõe mais dos homens que Deus e a sociedade humana não é deimórfica, isto é, Deus não podia ter criado estes homens, estes nazis, à sua imagem e semelhança, nem o céu pode ser antropomórfico.

 

  

 

         A senhora Bertha Böhm pensava no filho e chorava baixinho para que as guardas da Gestapo primeiro e das SS depois não a vissem e resolvessem agredi-la mais uma vez para sentirem o prazer da total falta de piedade e compaixão para com um ser humano.

 

         Ao fim das intermináveis horas de espera no frio e cheios de fome, os presos foram empurrados brutalmente para dentro dos vagões de gado pelos guardas SS que, entretanto renderam o pessoal da Gestapo. Iniciara-se assim a longa viagem para o sul, para Theresienstadt, a cidade prisão modelo destinada a judeus ricos e, principalmente, meios judeus. Os nazis prendiam aí alguns judeus muito ricos a troco das suas fortunas e exibiam um certo bem-estar como meio de propaganda no cinema e rádio para dar a entender que os judeus eram apenas deportados para guetos de trabalho como Theresienstadt onde nada lhes faltava de essencial e trabalhavam para o chamado bem comum.

 

         Frau Böihm foi efectivamente encaminhada para Theresienstadt. Aí foi obrigada a trabalhar numa fábrica de tintas e vernizes em condições sanitárias deploráveis, mas sempre a pensar no filho. O jovem anjo foi inexplicavelmente encaminhado para Auschwitz. Saiu em conjunto com umas dezenas de crianças judias de Kola-Fu depois de ter levado muitos murros e pontapés dos guardas da Gestapo sempre que dizia não ser judeu. Os relatos da sua trágica odisseia foram descritos posteriormente por um jovem judeu da mesma idade que o acompanhou ao longo de todo o trajecto e que inexplicavelmente sobreviveu ao holocausto do seu povo.

 

           Quando o comboio chegou a Auschwitz, Joseph Engel quis sair da fila e dirigir-se a um oficial das SS e dizer-lhe ”ich bin kein Jude”, eu não sou um judeu, mas logo aos primeiros passos levou um forte pontapé de um dos guardas e regressou atormentado à fila. O seu companheiro, um jovem askanazi vestido de preto e ainda lhe perguntou o que tinha querido fazer.

- Nada, não, talvez fugir, respondeu-lhe.

- Daqui não se pode fugir, pelo menos agora, mas tenhamos esperança havemos de arranjar uma maneira de fugir.

         O jovem askanazi, Michel Ashmer, tornara-se no único amigo de Joseph Engel que chorava continuamente para dentro, a pensar na sua sorte, na da mãe e no padrasto que tinha sido sempre tão bom para ele.

 

         Foram para o campo das crianças e metidos em barracas de madeira. Ali o sofrimento era organizado com a típica meticulosidade germânica com horários certos. Levantar muito cedo e ir para a formatura de contagem ao frio e sem pequeno-almoço, seguida de inspecção. Qualquer das crianças que apresentasse sinais de debilidade era levada para a chamada enfermaria de onde, evidentemente, nunca mais saía. O Dr. Manfred Teufel apareceu a fazer uma escolha e ia chamando as crianças para uma das barracas, onde perguntava a idade e depois dizia para fazerem umas montagens de umas peças muito pequenas a partir de uns desenhos, mas só para os que tivessem 16 ou mais anos de idade. O espertíssimo Ashmer recomendara-lhe que dissesse ter 16 anos e não 15.

 

- Eles estão a seleccionar o pessoal para montagens de rádios ou coisa do género, talvez o ambiente seja mais aquecido e nos dêem um pouco mais comida. Aqui morremos mesmo de fome.

 

Quando chegou a vez dos dois, Teufel olhou com fúria para o Askanazi que pela sua indumentária e cabelo não escondia a sua origem judaica e depois olhou para o Joseph Engel e ainda mais fulo ficou e disse-lhe: - Tu és um mentiroso, disfarças, finges que não és judeu, queres passar por um ariano, mas não me enganas, estás aqui é porque és judeu. Engel já tinha percebido que o melhor é nunca responder nem contrariar um energúmeno das SS. Disse-lhe que tinha 16 anos todo perfilado quando lhe perguntou e, tal como Ashmer, passou no teste da montagem.

 

- Ouviste o que ele me disse, não tive coragem de dizer que não sou mesmo judeu, sou evangélico, a minha mãe é que foi judia.

 

- Pois é, comigo não se enganou, mas olha, nós os Askanazis somos judeus de religião, mas não de raça, somos descendentes dos Kazars que tiveram um grande império entre o Mar Negro e o Cáspio. Nós aderimos ao judaísmo só no ano 720, somos a 13ª Tribo de Israel. Talvez por isso somos os judeus mais crentes que há e toda a nossa vida regula-se pela vontade de Deus. Sabemos que Deus nos está a pôr à prova para ver se o renegamos. Mas, não, prefiro a morte ao inferno eterno. Eu venho da Polónia, onde a minha família se instalou quando aquilo era Rússia. Sabes, os russos faziam constantemente “progroms” e matavam muitos dos nossos, mas não desistíamos de viver e servir o nosso Deus. O meu sonho e o dos meus pais e avós é voltarmos ao Cáucaso com todo o nosso povo e aí refazermos o Império Kazar e tu podes ser um Kazar de adopção. Nas circunstâncias em que estamos, eu posso fazer de ti meu irmão adoptivo e depois de isto passar o meu pai confirma a adopção, fazendo de ti seu filho adoptivo.        

      Engel sorriu tristemente e agradeceu a amizade de Ashmer, dizendo-lhe - “Danke mein Bruder”, obrigado meu irmão. Na verdade nunca tinha tido um irmão ou uma irmã e muitas vezes pensara como seria isso de ter irmãos, deveria ser bem mais divertido ter sempre alguém em casa para brincar. Mas, ali, o pequeno Engel não se separava da ideia do frio e da fome, pelo que nada lhe causava uma particular alegria, nem mesmo a extraordinária oferta de Ashmer.

Dois dias passaram depois da selecção quando repentinamente abriram-se as portas do abarracamento, agora mais vazio porque os reprovados tinham desaparecido e ninguém sabia para onde. O guarda disse para arrumarem os seus pertences que iam sair dali.

 

         Foi tudo metido num comboio de gado mal cheiroso e nada limpo desde o último transporte.

 

         Ninguém sabia para onde iam, mas a dada altura Ashmer volta-se para Joseph Engel e outros companheiros e disse bem alto, vamos para oeste, vamos para a Alemanha. – Já sei, vamos trabalhar numa fábrica de aparelhos.

 

         Aparentemente todos ficaram contentes.

 

         Efectivamente, passados dois dias, o comboio passou pela gare de Munique e meteu por um ramal, parando na estação de uma pequena cidade.

 

         Com os habituais gritos e pontapés, as crianças ensonadas foram levadas para o campo superlotada e instaladas em barracas onde já não cabia alguém. Lá se foram aconchegando junto a outros corpos magríssimos que nem se voltavam para ver quem vinha.

 

         No dia seguinte, os novos foram chamados, “Die Neuen”, os novos, gritavam com brutalidade os guardas, para a formatura. Depois da chamada veio um médico ou enfermeiro que olhou para todos e disse a cada um para abrir a boca. Observou os dentes como faria um mercador de cavalos ou um antigo traficante de escravos e mandou alguns para fora da fila. Os outros regressaram à barraca, onde receberam um pequeno-almoço constituído por um sucedâneo de café mal cheiroso e um naco de pão escuro que parecia conter serradura de madeira. Logo a seguir foi-lhes ordenado para arrumarem as suas trouxas com os pertences e irem para a formatura.

 

         Um SS apareceu com uns papéis e começou a organizar os miúdos em grupos. Joseph Engel e o Ashmer ficaram no grupo de uma vintena de rapazes. Escoltados por dois guardas armados foram encaminhados para fora do campo e seguiram a pé por uma longa estrada que parecia nunca mais ter fim. A cidade parecia estar cada vez mais próxima. De vez em quando passavam por baterias de canhões AA e verificavam com espanto que os soldados em uniforme da “Força Aérea” pareciam não ser mais velhos que eles mesmo.  

         Mas, aqueles rapazes orgulhosos nos seus uniformes azuis olhavam com desprezo para os rapazes de fatos às riscas ou então pareciam que não davam pela sua presença. Quase todos estavam meio a dormir em pé ou sentados. Tinham passado toda a noite a olhar para céu escuro e nublado de vez em quando iluminado pelos holofotes anti-aéreos. Outros ainda tinham os auscultadores nos ouvidos, ligados a gigantescas cornetas colocadas nuns mastros muito altos. Era para ouvir a grande distância os ruídos dos aviões de bombardeamento a aproximarem-se. Joseph Engel ainda pensou, eu bem podia estar aqui a defender a minha Pátria, em vez de estar preso sem ter cometido o mais pequeno crime e a minha mãe como estará ela, coitada. Como eu gostaria de a proteger e ter um uniforme assim para o fazer. Mas, não percebo nada, não sei o que fizemos e chorou.

 

         Continuaram a marcha e voltaram a passar por pessoas, na maior parte civis totalmente indiferentes, até chegarem a uma fábrica.

 

         Entraram logo num grande espaço fabril e foram reunidos a um canto. Apareceu um capataz ou mestre que começou logo a dizer - aqui trabalha-se muito e bem. Quem falhar, acaba. Vocês vão aprender a fazer umas montagens, só podem falhar na aprendizagem. Depois tem que sair tudo perfeito -.

 

         Joseph Engel foi para uma bancada com dois companheiros. Um prisioneiro mais velho colocou um desenho com um esquema eléctrico na frente e uma base com uns fios e um ferro de soldar eléctrico.

 

         - É muito simples – disse o prisioneiro – vocês soldam aqui o fio azul e depois o amarelo e o vermelho. Por fim, aparafusam esta capa e colocam estes suportes de válvulas nestes buracos, aparafusando por baixo. Vá!   Façam lá à experiência. Têm de fazer mais de quinhentas peças diárias. Por isso nem pensem em levantar os olhos do trabalho e, menos ainda falar com alguém. Dois guardas SS com espingarda ao ombro estavam por perto a ouvir as explicações. Ninguém se atreveu a olhar para eles. Todos olhavam só para as peças e pensavam no trabalho que tinham de fazer. Adivinhavam que algo de muito mal podia acontecer se não obedecessem cegamente.

 

         Começaram assim a trabalhar sob uma intensa vigilância. O prisioneiro monitor de vez em quando aparecia e arrancava os fios, dizendo que estavam mal soldados. Aconteceu a Joseph Engel que apanhou com os fios na cara com tanta violência que ficou a sangrar. Lá se enxugou com a manga e chorou meio para dentro meio para fora e repetiu o trabalho. Percebeu que aquilo tinha de ser feito bem e depressa.

 

         Passadas seis horas de trabalho tocou uma sineta. Foram para um refeitório comer uma imunda sopa de batata mais qualquer coisa, um minúsculo naco de pão e um copo de água. Tiveram todos autorização apara ir aos sanitários.

 

         E sem qualquer descanso voltaram ao trabalho. Foram mais seis horas de trabalho que acabou com outra sopa e um velho naco de pão. Depois foi-lhes ordenado para pegarem nas trouxas e marcharam por uma pequena ladeira abaixo até a um barracão rodeado de arame farpado. Era o “Aussenlager” da Agfa, a instalação externa de Dachau para os jovens que trabalhavam numa das fábricas Agfa.

 

         Joseph Engel já não estava com Ashmer no mesmo grupo de trabalho, mas viram-se depois no barracão que servia de camarata. Engel contou-lhe o caso dos fios e mostrou a ferida na cara.

 

– Pois é, meu irmão - respondeu-lhe o Askanazi, aqui e em toda a Alemanha é assim, ou fazemos o que eles querem, ou acontece-nos o pior. Mas olha, este Mundo é mesmo mau, o horizonte está todo vermelho, queimaram toda a cidade de Munique com os seus habitantes. Só espero que as bombas não caiam aqui. Uns atiram bombas de fósforo lá de cima e outros batem e matam-nos cá em baixo. É tudo provação para ver se temos fé, depois vamos todos para o paraíso e os maus, tantos os Guardas SS como os pilotos dos bombardeiros vão para os infernos.

 

         - Mesmo assim – respondeu Engel – preferia estar em casa e frequentar o liceu e não sei onde está a minha mãe.

 

         - Por agora temos de sobreviver cada dia, ou antes cada hora ou minuto. Um dia mais de vida é uma nova eternidade, percebeste. Agasalha-te o melhor possível para não te constipares e apanhares alguma gripe. Levam-te logo para uma enfermaria de onde nunca mais se sai.

 

         Deitaram-se, mas de início ninguém conseguia dormir, apesar do cansaço. De longe ouvia-se constantemente o estrondear seco e contínuo de milhares de bombas a cair sobre Munique sobreposto ao crepitar das rajadas de três tiros das peças de 8.8 anti-aéreas.  Todos os habitantes do barracão enfiavam-se na pouca roupa de cama que tinham e todos pensavam que aquilo não se aproximaria dos barracões.

 

         Ashmer levantou-se e foi observar por um postigo já que o barracão não tinha janelas. Regressou para perto da cama de Joseph Engel e disse-lhe: - Parece que os guardas foram embora, devem-se ter abrigado em qualquer sítio. Tenho a impressão que aquilo se está aproximar de cá, os gajos lá de cima devem querer destruir a nossa fábrica. Sim, o que fazemos deve servir para armamentos.

 

         Depois, o espertíssimo Ashmer gritou repentinamente: -Levantem-se todos e vistam-se, vamos procurar um abrigo, talvez isto tenha um bunker. Joseph Engel foi dos primeiros e todos os outros a seguir. Procuraram nos lavabos e em todos os cantos, mas nada, nem um alçapão. Resolveram sair, as portas estavam fechadas a cadeado por fora, começaram a fazer força, mas aquilo era forte, não cedia tão rapidamente.

 

         - Cheira-me a fósforo, isto é como em Hamburgo, vamos ser queimados vivos, cubram-se com mantas e lençóis molhados e tentem uma saída. Se fugirmos para o campo que está húmido da chuva desta tarde podemos salvar-nos, disse Joseph Engel.

 

         - Façam isso, o Engel vem de Hamburgo, já viu a tempestade de fogo – completou Ashmer.

 

         Foram todos forçar a porta com camas e cadeiras, mas não cedia. Outros tentaram sair por uma pequena janela situada na casa de banho, mas também não conseguiram. Ashmer ia espreitando pelo postigo e dizia, - a Agfa está toda a arder, vêm para cá uns bombeiros a apitar. Ainda ouviram dizer, - “raus” (para fora), venham ajudar a apagar o fogo, - mas a primeira bomba de fósforo, pequenina como uma ave atravessa o tecto, seguida de outras. O fósforo espalhou-se e um primeiro grupo foi apanhado pelo fogo. Joseph Engel e Ashmer viram os seus companheiros a arder como se fossem celulóide, aos saltos e aos gritos, enquanto o tecto e as paredes eram apanhadas pelo fogo. Os outros companheiros não eram capazes de fugir, todos arderam vivos até morrer quando tudo desabou, incluindo Engel e Ashmer.

 

         No dia seguinte, pela manhã não restava daquele barracão mais do que um monte de cinzas e todos os cadáveres tinham ardido completamente. Só ficaram esqueletos contorcidos e maxilares muito abertos a denotar o horrível sofrimento de ser queimado vivo pelo fósforo. A fábrica ardera completamente e os guardas SS que se tinham refugiado num abrigo subterrâneo estavam igualmente mortos.

        O fósforo tem disso, é independente, castiga impiedosamente e não aceita pedidos de perdão. Penetra em toda a parte, vai às caves, queima portas e janelas e entra sem pedir licença para queimar vivo quem lá esteja. E queima sem pressas, as bombas largam pequenas borboletas que parece terem uma preferência pelos seres vivos, vão atrás deles quando fogem e agarram-se às costas para propagarem o seu fogo lentamente por todo o corpo do atingido. Borboletas que não distinguem amigos de inimigos. Quem estava ali, às portas de Munique era inimigo das borboletas inglesas e americanas, tinha de ser queimado em vida e com vagar até morrer.

 

 

 

 

 

 

 As bombas dos Aliados rebentaram aqui

 

 

 

publicado por DD às 23:31
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A Morte de Cristo em Verdun

 

 

 

 

 

A aldeia de Gremilly fica no extremo sul da floresta de Spincourt a poucos quilómetros de Verdun .

O terreno, um pouco inclinado, vai descendo para o sul para encontrar quase de frente a pequena vila de Ornes. Ambas totalmente destruídas pelos furiosos bombardeamentos daqueles dias negros de fumo e pó de Março de 1916.

 

Uma e outra localidade estão separadas por uma planície de uns 3 a 4 quilómetros de largura. Um terreno de morte eriçado de arame farpado e profundas trincheiras em ziguezague.

As linhas alemãs a cargo do 5º Exército sob o comando do príncipe herdeiro do Império Germânico, o Kronprinz Wilhelm und Knobelsdorf , aproximavam-se aí perigosamente da linha francesa guarnecida pelo 2º Exército do Marechal Pétain .

Na madrugada anterior ao dia 5, duas companhias chegaram dos respectivos bivaques. A Gremilly , chegou a Companha 128 do Regimento de Infantaria do Brandenburg , enquanto a Ornes chegou a companhia 197 do RI de Chartres. Descansaram e organizaram-se durante todo o dia.

Na manhã seguinte, ninguém tomou o pequeno almoço, pois foram logo para as missas campais, ainda muito cedo e cheios de frio. A manhã estava muito fresca, mesmo fria, sob um vento que iria anular os efeitos de alguns raios de sol a anunciar a Primavera. Andorinhas e outros pássaros não apareceram ainda a esvoaçar por entre as silvas e as árvores ou os beirais das casas campestres, então quase todas destruídas. Não apareceram e não viriam esse ano, assustadas pelo contínuo ribombar da artilharia pesada a formar um tenebroso ruído de fundo cada vez mais contínuo e cavado já que os estrépitos individuais dos obuses não se distinguiam mais uns dos outros.

 

O capelão Teufelsman rezou com seriedade e quase compungido a missa em latim. Seguiu-se a comunhão, todos comungaram. Não houve cânticos, apenas uma distribuição de crucifixos metálicos e uma bíblia a cada um, uma bíblia de bolso que, segundo o capelão, pode salvar vidas no campo de batalha.

Hans Christoff , um jovem de 19 anos, recebeu o crucifixo e pô-lo logo ao peito e a bíblia que enfiou no bolso superior do dólman . Esperava obter a protecção Divina na batalha que se avizinhava. Durante a missa ouviu com atenção e seriedade a homília que o capelão Teufelsmann pronunciou. Uma homília intensa com uma ampla descrição do pesado fardo que é viver num curto espaço de tempo, salientando que a vida não passa de uma etapa no percurso para o paraíso ou para o inferno.

Falou daquele Além para onde vão as almas boas e disse: -Nós lutamos por Deus e pela Pátria fuer Gott und Vaterland ). Lutamos contra os anticristo , irmãos e camaradas. Eles, os inimigos, são impuros, são uma república. Por isso, são dirigidos por um presidente eleito pela ralé. As prostitutas, os proxenetas, toda a gente da ralé, elege em França um presidente que não pode deixar de ser um anticristo , pois meus filhos, Deus não quer um presidente eleito pelas prostitutas. Deus não sentou lado a lado com os mesmos direitos e deveres um bispo, um cardeal e uma prostituta e o seu proxeneta. Nós somos governados pela sagrada família do nosso Kaiser Wilhem e pela Santa Imperatriz. O Kronprinz , o nosso futuro monarca, comanda o nosso exército. Que maior glória e honra pode um alemão ter do que ser comando pelo Kronprinz em pessoa? Vamos partir hoje para a batalha, a maior de todas as que alguma vez a Humanidade viu e que se desenrola há meses. Aqui vamos mostrar a nossa coragem, vamos correr com os franceses e chegar num ápice a Verdun . Nos nossos peitos sentiremos o bater dos nossos corações exultantes de alegria pela glória que nos espera. Não se esqueçam, temos Deus do nosso lado e Deus oferece a glória eterna a todos os que lutam corajosamente pela Pátria.

O Cristo que vos distribuí é a vossa Salvação, mas reparai, irmãos! O inimigo parece que usa um Cristo igual ao nosso, mas não é verdade. Ao longe parece igual, mas ao perto é um Belzebus a fingir de Cristo, tem cornos na cabeça e língua de fogo. Cuidado pois, se virdes um Cristo no inimigo que isso não vos impeça de executar com toda a celeridade a missão que vos foi ordenado, mesmo que se trata de um ataque à baioneta.

 

A poucos quilómetros dali, o capelão Jean Lucifer rezava umas orações depois de ter dado a comunhão a todos os soldados da companhia. O sacristão militar ajudou-o também a distribuir crucifixos metálicos e umas pequenas bíblias de bolso.

Jean Christophe silencioso recebeu a comunhão e pendurou de seguida o crucifixo que ficou a brilhar ao peito. Ouviu a homília do capelão que disse: - Nós lutamos por Deus e pela Pátria pour Dieu et la Patrie ). - Por Deus lutamos porque o inimigo é o anti-cristo , irmãos. Eles são os hunos das estepes asiáticas, há séculos que procuram destruir a civilizção cristã.

Sim! Já destruíram uma vez a Roma de Cristo depois do Concílio. E agora, os hunos estão na nossa sagrada terra a conspurcá la com o seu sangue. Não conseguirão destruir Cristo. Eles são os filhos de Belzebus , os irmãos do Diabo, parecem loiros, mas são asiáticos e maus, usam ao peito imitações de Cristo na Cruz com cornos e língua de fogo. E não são democratas nem querem a República e, menos ainda, a Democracia.

 

Depois da missa, as duas companhias, distantes uma da outra, tomaram um copioso pequeno-almoço para a seguir ouvirem as ordens dos sargentos. Iam novamente para as trincheiras que todos conheciam, excepto os mais novos agora integrados nas fileiras. E assim foram.

A companhia alemã, sob o comando do capitão Von Dreck , organizou-se com armas e mochilas para se esgueirar por entre os caminhos entrincheirados e acomodar-se na zona da frente anteriormente ocupada pelo que restou de uma companhia que abandonou o local poucas horas antes.

Quando chegaram, os maqueiros acabavam de retirar o que restava de uns corpos trucidados por um morteiro caído no interior da trincheira. Outras companhias foram igualmente ocupar parte do local, já que estava marcado para aquela manhã uma nova ofensiva e não havia sequer a disposição para criar uma certa habituação às companhias que vinham restabelecidas da retaguarda.

 

No Estado Maior alemão circulava mesmo a tese de que as grandes ofensivas deveriam ser feitas com “material humano” fresco enquadrado por alguns oficiais e sargentos com alguma experiência de combate e trincheira.

Do lado francês, a companhia do capitaine ” La Salé esgueirou-se na trincheira sujeita aos bombardeamentos da artilharia pesada alemã que queria à viva força abrir ali um buraco.

 Raramente uma granada caía mesmo no interior das trincheiras, mas quando acontecia, o estrago era enorme, sempre mais de uma dezena de homens sucumbiam aos impactos da explosão. E no dia anterior caíram duas granadas em plena trincheira com grande colheita de almas para todos os infernos.

A artilharia alemã preparava o ataque, enquanto a francesa ripostava. O barulho era ensurdecedor e a claridade da manhã não chegava àquelas trincheiras envoltas em fumo negro salpicado de relâmpagos de cores vivas, geralmente vermelho e amarelo.

 

Na trincheira, o sargento Kurz dava as últimas ordens ao pelotão B . - Não se esqueçam, vamos atacar à baioneta e aqui não há que vacilar, o primeiro a matar é o que sobrevive. Primeiro espetar a baioneta no corpo do inimigo, antes de pensar numa defesa. Não vamos aos abraços a eles, vamos matá-los, ou serão eles a matar-nos.

Nós estamos aqui para que eles cumpram o seu dever de morrer pela pátria e nós de viver por ela na glória de sempre. Isto não é como nos combates de gladiadores na antiga Roma. Não, aqui mata-se no primeiro segundo ou morre-se.

Esta guerra é a suprema invenção da humanidade para se matar a si mesma. É o culminar do nosso inexorável destino, a civilização da morte, da nossa morte total. Matar e morrer.

- Mas! Não será pecado matar assim, perguntou timidamente Hans Christoff .

- Verdamt ”, não me digas uma coisa desta. Pecado aqui é não matar e morrer, respondeu o sargento. - Não sou padre nem sacristão para falar nessas coisas, mas lembrem-se que Cristo veio ao mundo para nos salvar, sim. Mas, salvar de quê? Das doenças e da morte? Não! Das guerras e desastres naturais? Parece-me que ainda menos, a prova é que estamos aqui na carnificina de Verdun . Não, camaradas, Cristo veio ao mundo para nos salvar de nós mesmos, dos nossos pecados, das nossas consciências, sim. Se tiveres dúvidas, vais lá, onde te mandamos, matas os gajos e depois vais à confissão e comungas. Sais limpo, sem ponta de pecado.

 

Quando soar o apito todos para fora, saltamos rapidamente e corremos para a trincheira dos moles, aí lançamos primeiro as granadas de mão e depois vamos a eles de baioneta calada se ainda estiverem vivos.

 

  Kurz era um daqueles quase intelectuais alemães, inteligente e leitor de muitos livros, além de ser ainda um jovem da escrita. Duvidava de tudo, mesmo da existência de Deus. Era um daqueles berlinenses para quem todo o espectáculo do poder não passa de circo e palhaçada, a começar pelo espectáculo religioso. Por isso, nunca podia ter ido para a escola de oficiais milicianos. Mesmo assim, como era mais instruído que os outros soldados, foi para a escola de sargentos. O seu exame do sexto ano liceal valeu-lhe muito. Estava quase a fazer o Abitur ”, o último ano do liceu clássico, quando eclodiu o conflito e foi mobilizado, ainda fez uma exame reduzido, o chamado “not Abitur ”, o exame de urgência que não servia para entrar na Universidade, mas os professores tinham a consciência que isso não seria necessário, já que os seus alunos não iriam entrar em parte alguma e para chegar às campas dos cemitérios não são precisos exames.

O capelão tenente Teufelsmann ouviu algumas palavras do sargento Kurz e quis intervir, mas era já tarde, a ofensiva estava quase a começar.

  Kurz disse ao capelão para acompanhar o pelotão, pois poderia assim dar a extrema-unção aos soldados tombados antes de morrerem.

- Não é preciso, – respondeu o capelão Teufelsmann – eles comungaram todos na missa campal de ontem e até hoje não devem ter pecado.

- Não sei, - disse Kurz – podem ter pecado em pensamento, podem ter pensado em foder a mulher do vizinho ou sei lá quem? Sim, desejar foder , toda a gente deseja, não é verdade?

 - Não diga isso, sargento Kurz , Deus é indulgente e perdoa os pecados dos seus filhos.

- Pode ser, pode. Mas, o melhor é o capelão saltar também para fora da trincheira connosco. Talvez assim, Deus nos protegesse e as balas passassem de lado.

 - És um provocador. Se a ofensiva não estivesse marcada para já, ainda te levava a conselho de guerra, mas, enfim, nunca se sabe o que o destino te reserva nos próximos minutos.

Soaram os apitos, Kurz ordenou:  - raus zum Angriff ”, para fora ao ataque.

A maior parte dos jovens das companhias ali reunidas não tinham participado em qualquer batalha, tinha vindo directamente de casa, ou do quartel de recrutamento e instrução.

Não lhes passava pela cabeça o que ia suceder, nem que cada metro de terreno seria percorrido à custa de milhares de cadáveres. Subiram assim sem preocupação a pequena encosta da trincheira.

As secções dos metralhadores , postados em cima, iniciaram um fogo nutrido contra os ninhos de metralhadoras inimigas, a fim de os fazer calar e proteger os infantes no ataque.

Lá à frente, os pioneiros tinha aberto buracos no arame farpado e fizeram explodir as minas e granadas anti-arame .

Mesmo assim. Os primeiros que galgaram a trincheira, os mais entusiastas e mais novatos, foram todos baleados e tombaram uns por cima dos outros quase sem balbuciarem palavra.

 Os outros conseguiram sair, enquanto os atiradores inimigos refaziam as pontarias ou carregavam as espingardas. Ficaram ali todos à mercê do fogo adverso, mas avançavam, enquanto os metralhadores alemães varriam as trincheiras francesas criando uns momentos de suspensão de fogo.

O sargento Kurz seguido por Hans Christoff corria como louco para a frente, sabia que cada segundo de vida era uma eternidade, uma espécie de dádiva do céu. A confusão era total, o Estado-Maior germânico tinha acumulado ali naquela ofensiva companhias e batalhões e mais batalhões. Nos seus cálculos matemáticos, os oficiais estimaram que ao fim de 50 metros de correria, dez por cento dos atacantes chegariam ao objectivo, assim para enfrentarem com êxito as companhias inimigas tinham de sacrificar 9 companhias por cada uma que chegasse às trincheiras adversas.

 

Kurz não chegou à trincheira francesa, foi baleado a uns dois metros da mesma sem conseguir lançar a granada de mão. Com isso, salvou a vida de Hans Christoff que, protegido pelo corpo vacilante do sargento, avançou mais uns passos e lançou a sua granada, simultaneamente atirou-se ao chão como mandam os regulamento, ouviu a explosão e levantou-se com a baioneta apontada para a frente, pareceu-lhe que estava só no mundo, à sua volta só via fumo.

Avançou e saltou para a elevação da trincheira. De lá saiu um poilus ” francês com algo a brilhar no peito. Hans Christoff não pensou em mais nada espetou-lhe a baioneta em pleno coração. Deve-lhe ter cortado a aorta e um jorro de sangue molhou-o todo ao mesmo tempo que sentiu uma dor tremenda no peito. O seu pulmão acabava de ser trespassado pela lamina francesa empunhada por Jean Christoff . Hans tombou e num momento viu o Cristo na Cruz do inimigo. Viu que não tinha cornos nem língua de fogo, era um Cristo igual ao seu, já a cobrir-se de sangue. O francês ainda viu o Cristo do alemão, mas por segundos apenas, pois estava já a cobrir-se de vermelho com o seu sangue que fez tombar e morrer quase de súbito.

 

Do Autor do Jornal "a Luta" em http :/ /alutablog.blogs.sapo.pt

 

publicado por DD às 23:09
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