Desde que, naquela manhã fria de Abril de 1945, lhe levaram o filho de 14 anos para combater na frente de batalha a umas ruas e praças da sua casa semi-destruída, em Berlim, Christel deixou de pensar nos seus maridos. São três ao todo, dois mortos nas várias frentes de combate e um desaparecido numa guerra que para Christel, de 33 anos de idade, parecia que nunca mais acabaria. Para ela, foi a guerra dos bombardeamentos, mas mais que isso, a guerra dos maridos mortos e do trabalho nas comunicações da defesa anti-aérea.
O ruído da batalha fazia-se ouvir por toda a parte e o troar surdo de canhões e bombas chegavam aos seus ouvidos de uma forma lentamente mais intensa e contínua. Mas naqueles dias de Abril, Christel só pensava no filho que poderia vir a ter a mesma sorte que os seus maridos, todos mortos por um pátria que ela cada vez percebia menos o que era. Não queria chorar a morte daquele filho, a única recordação deixada pelo primeiro marido e temia tanto o carácter excessivamente afoito do rapaz e o seu fanatismo nacional-socialista. O miúdo nascera mentalmente na guerra e parece que até achava natural tal estado de coisas depois de uma prolongada estadia num campo da Juventude Hitleriana, na Boémia, de onde regressara havia pouco tempo.
Primeiro chorou o pai do filho Michael, que faleceu em 1941 algures na Grécia, depois o segundo marido com quem estivera casada durante três meses. Encontraram-se numa dancing. Dançaram, foram para a cama e decidiram casar no dia seguinte. Conviveram duas semanas, pois o sargento Heinrici conseguiu, graças ao casamento, mais uma semana de férias. Viveram assim quinze dias sem grande alegria. O sargento estava contente por ter uma jovem e bonita mulher por duas semanas, mas intimamente tinha a certeza que a não voltaria a ver mais. Teria de voltar à sua unidade perto de Rostov, no Sul da Rússia, e ali, naquele ano de 1943, não se combatia, morria-se. Só à despedida é que se atreveu a dizer o que pensava do seu futuro à sua jovem Christel e que muito provavelmente aquele seria o último, o único adeus. Já no comboio disse-lhe pela janela com tristeza – não te esqueças de mim, amei-te por quinze dias e levarei a tua imagem até ao meu último suspiro –.
- Não digas isso, Heinrici, voltarás são como um perro e viveremos felizes para sempre - respondeu-lhe sem alegria.
Quando morreu era já como se fosse uma pessoa que nunca conhecera. Mesmo assim, Christel ainda chorou.
Christel encontrou o terceiro marido entre as ruínas de Berlim; regressava a casa de eléctrico, já de madrugada alta, depois de uma noite no serviço de comunicações, seguia só entre as ruínas do que fora o orgulhoso Bairro Hansa de Berlim; estava cheia de medo, pois ainda tinha de percorrer algumas ruas longas.
A cidade não mostrava a mais pequena luz e aquela escuridão aterrorizava-a, mas seguiu o seu caminho até que ouviu um barulho de botas pesadas a calcorrear o caminho. Era um soldado; ultrapassou-a, voltou-se e disse-lhe com um sorriso triste, boa noite. Ela respondeu na mesma e apressou o passo para seguir atrás dele. Só então é que reparou que trazia um uniforme negro das “Waffen SS”. Christel pensou, deve ser bonito, pois escolhem os mais bonitos para aquela arma, mas será simpático? Perguntou a si mesmo. E reparou que ele coxeava um pouco, mas mesmo assim andava depressa. Quando o soldado notou que ela apressava o passo atrasou o seu e perguntou-lhe se queria companhia ou protecção. Ela respondeu que sim e que aquela escuridão tinha algo de medonho.
- Está bem – disse-lhe o SS, acompanho-a a casa, mas pouco há a temer neste momento, não tocam as sirenes, acho que esta noite não vai haver bombardeamento e de algum ladrão posso protegê-la mas não há muitos por aqui. – Nunca se sabe – respondeu Christel. – É verdade e agora vejo que é muito bonita e fica-lhe muito bem o uniforme. – Obrigado, respondeu a viúva.
- Então vai para casa? Perguntou Christel. – Não, estou de folga, levei um tiro numa perna, estive no hospital e queria ver os meus pais, mas a minha casa não existe mais e nem sei o que foi feito deles, disseram-me que devem ter morrido. Vou ao quartel de Kreuzberg dormir, não tenho mais sítio algum. Amanhã vou à esquadra da polícia saber se estão vivos ou mortos.
- Coitado, - disse-lhe Christel – Olhe! Eu sou duas vezes viúva. E como se chama? Hans Meyer, respondeu o SS, nome de um Zé Ninguém que nem num pedestal em honra dos mortos merece que seja inscrito. E você, ou tu, posso tratar-te por tu.
- Claro que sim, sou Christel Dietrich de solteira, Wisch do primeiro casamento e Heinrici do segundo.
- Não é melhor sorte, mas mesmo na escuridão é bonita demais. Não me diga que quer ser viúva pela terceira vez. Sim, se casasse com um soldado das “Waffen SS” é sorte garantida e a pensão de viuvez é mais elevada.
- Não diga isso. Eu julgava que os “SS” eram mais optimistas e acreditam seriamente na vitória.
- Sim, sim, vitória, vitória, vitória, venceremos esta e todas as guerras e batalhas neste e noutros mundos, “nós somos a guarda negra que não agrada ao inimigo”, mas só para as viúvas receberem muitas pensões de viuvez.
Christel começou a chorar convulsivamente a pensar nos seus dois maridos mortos e naquele homem que, como os seus anteriores, espera a morte numa qualquer frente de batalha. Hans Meyer abraçou-a cuidadosamente para a consolar. Não lhe ofereceu um lenço porque o que tinha não passava de um trapo imundo como a farda toda gasta e remendada com os colarinhos negros em que ostentava o a caveira como símbolo dos SS.
- Não chore – disse-lhe - . Alegre-se, hoje está uma noite fria, mas não há bombardeamentos, a não ser que os malditos apareçam mesmo no fim da madrugada só para não nos deixarem acabar de dormir descansados. Mas, não. Se o fizessem regressavam a Inglaterra já em pleno dia e acabariam abatidos pelos nossos caças ou pelos nossos canhões anti-aéreos.
Christel olhou para Hans, enxugou as lágrimas com um lenço e fez um sorriso triste e disse: - estou quase a chegar a casa e ali naquela porta.
- Mas é uma casa aquilo? – Perguntou o SS Hans Mayer.
- É sim, não parece mas é, há um pedaço do rés-do-chão ainda intacto e só lá vivo eu. Toda a gente foi evacuada do prédio e de toda a rua, mesmo antes dos bombardeamentos, incluindo o meu filho. Os bandidos voltam sempre a bombardear estes bairros sem gente e já destruídos. Não sei o que pensam. Não devem saber que os civis foram quase todos evacuados.
- Pois foram – respondeu – mas as autoridades não deixaram sair a mais bonita “Blitzmädel” (rapariga relâmpago) que alguma vez vi.
- Ah! Dizes isso porque ainda está muito escuro. De qualquer maneira obrigado pelo elogio, mas olha, não sou a mais bonita das auxiliares da “Luftwaffe”.
Junto à porta, Christel perguntou se ele queria entrar e tomar um “Ersatz” (sucedâneo de café).
– Agradeço de todo o meu coração e não sei que raio feliz caiu sobre mim para ser convidado a entrar na casa de uma tão bonita e simpática “Blitzmädel”.
Christel não teve medo de deixar entrar o SS, sabia que eram terríveis lá fora nos campos de batalha, mas em casa eram tímidos e educados.
Beberam o tal café de cevada e Hans disse-lhe que ia embora, não queria abusar da sua hospitalidade, mas esperava voltar a vê-la.
- Se quiser pode ficar aqui, pode dormir na cama do meu filho que está num campo de juventude “KLV-Lager” na Boémia.
- Mais uma vez acho demasiado simpático da sua parte.
Christel mostrou-lhe a cama num pequeno quarto todo enfeitado com bandeiras da Juventude Hitleriana e brinquedos de guerra, desde os soldadinhos de chumbo a um submarino com a bandeira da cruz suástica e aviões miniatura.
Olharam muito intensamente um para o outro, mas mal se viam naquela luz quase imperceptível das lâmpadas pintadas de azul. O dia ainda não despontara e na cidade não havia uma só luz clara.
Christel disse: estou cansadíssima e vou dormir até por volta da uma da tarde, mas se quiser sair antes, pode fazê-lo -. O SS respondeu que também lhe agradava a ideia de dormir até essa hora e já não ia ao quartel de Kreuzberg.
Deitaram-se os dois, cada um na sua cama. Hans pensou que bom que seria dormir com a Christel, enquanto a jovem perguntava a si mesmo se não o deveria convidar para si. “Estamos em guerra e eu sou uma mulher livre". "Não", respondeu para si, isto não é como foi com o Heinrici. Nessa ocasião tínhamos dançado e bebido bastante cerveja até uns "Schnaps" (aguardentes), pelo que foi tudo natural. Agora não, este rapaz é muito delicado. Pena que seja tão triste, mesmo assim pode ser um grande amor? Não, não pode ser, mais um morto na minha vida, os nossos homens morrem todos, além disso ele deve ser mais novo que eu, apesar de que tem umas divisas que indicam estar há bastante tempo em serviço. Será como o meu sargento Heinrici que deveria ter agora trinta e quatro anos, mais um que eu?”. Christel adormeceu a soluçar ligeiramente.
Hans ouviu os soluços e pensou se a deveria ir consolar. "Não, ainda pode julgar que me quero aproveitar da viúva tão jovem e frágil", disse para consigo e rapidamente adormeceu.
Ambos não dormiam há mais de dois dias. Christel no Serviço de Comunicações da Força Aérea e Hans na viagem de comboio desde Varsóvia, onde estivera hospitalizado, com constantes paragens por causa dos bombardeamentos e reparações na via.
A manhã despontou sem que qualquer dos dois desse por isso, dormiam profundamente. Já passara bem da uma da tarde quando Hans acordou, levantou-se e meteu-se na casa de banho para se lavar um pouco. Vestiu o uniforme negro e encontrou Christel no nicho que serve de cozinha. Já estava toda penteada e tinha vestido a blusa castanha do Serviço de Comunicações da Força Aérea e a saia apertada.
Hans deu-lhe uns alegres bons dias e ela respondeu com menos alegria, mas com um ligeiro sorriso nos lábios. Ele disse-lhe: - afinal ainda és mais bonita do que eu julgava. Agora, à luz do dia, é que vejo que és encantadora. Mas, como é que tão nova tens um filho que brinca já com aviões e submarinos e tem o quarto enfeitado de bandeiras e retratos do nosso "Fuehrer".
- Ah! Casei cedo, mas tenho trinta e três anos e o miúdo tem treze e é um entusiasta. Sabe! Tenho pena que ele esteja longe. Mas sinto-me mais segura. No Natal ele esteve aqui e logo após os bombardeamentos ele pegava na bicicleta e ia ver e ajudar os bombeiros. Primeiro não quiseram, mas depois deram-lhe uma medalha e ele ficou todo orgulhoso. Um dia saiu na bicicleta e regressou a casa quando as bombas começaram a cair, um estilhaço chegou a atingir a bicicleta, mas lá conseguiu entrar na cave que aqui é muito profunda e segura. Por isso, é que se reconstruiu o rés-do-chão e estamos a fazer o primeiro andar com tijolos tirados dos escombros.
E tu Hans, esse uniforme fica-te bem, todo negro e essas divisas o que são?
- Nada de importante, eu sou um simples "Untersturmfuehrer", ou seja, comandante de pelotão. Isto não é um uniforme minha querida Christel, isto é a mortalha que levamos esburacada para a cova. Ai! Desculpa, não te queria fazer entristecer outra vez.
- Não faz mal. Já tenho duas razões para saber que os homens que amamos morrem depressa.
- Pois é Christel. O melhor é amar muito depressa, caso contrário não chega o amor.
- Percebo bem que pretendes dizer e, talvez, até venha a estar de acordo contigo.
- Então que seja ainda antes de eu partir não sei para onde. Tenho de ir ao médico do regimento. Quem me dera que me dessem por incapaz para o serviço, mas parece que não pode ser. O médico do Hospital Militar Alemão de Varsóvia disse que isto da perna passava e com umas marchas e corridas ficaria melhor que antes do ferimento. Além de que eu sou de uma divisão de blindados, ando sempre sentado na torre, o pior lugar. O primeiro a ser atingido é o comandante do tanque como eu que valentemente vai na torre a manejar a metralhadora móvel. Antes, estava numa companhia de motocicletas. Fizeram-me voluntário das SS porque precisavam de pessoal que soubesse de mecânica e eu fiz a aprendizagem de mecânico de motas e tinha feito a admissão à Academia de Engenheiros Técnicos de Leipzig e frequentei o primeiro ano nocturno enquanto trabalhava numa oficina, mas todo o pessoal que tinha sido aprendiz em oficinas foi chamado para as SS. E lá fui.
- Contrariado? - Perguntou Christel.
- Ah! Não posso dizer isso. Acho que tanto faz, estar nas SS ou no Exército, as covas são iguais para todos, não são?
- Estás sempre a fazer-me lembrar o Heinrici. Ele sabia que ia morrer.
- Desculpa, morrer morremos todos. Resta saber se é com que prematuridade?
- Sempre julguei que os SS gostam do que fazem.
- Mas alguém gosta?
- Bem, o melhor é mudarmos de conversa, queres este naco de sopa de feijão e batata e umas fatias de pão negro. Só tenho esta espécie de manteiga que me arranjaram na Força Aérea.
- És querida, até repartes o pouco que tens comigo.
- Na guerra temos de ser solidários uns para com os outros, principalmente quando se trata dum rapaz como tu, Hans.
- Como eu? O que é que tenho de especial.
- Não sei? És bonito e simpático e que idade tens?
- Tenho vinte e nove quase a fazer trinta.
- Estou mais descansada, não tenho idade para ser tua mãe.
- Com trinta e três és quase uma rapariguinha e pareces mesmo ser uma menina.
- Obrigado, pelo piropo.
Hans aproximou-se de Christel e passou-lhe a mão pela franja a pensar qual seria a reacção dela, ao mesmo tempo aproximou muito a cara para beijar na boca. Ela não recuou, fez um sorriso e deixou-o beijar, primeiro com cuidado e ternura e depois com mais intensidade. Ela acabou por levantar os braços e agarrou-se ao pescoço dele. Beijaram-se longamente e acabaram por ir para cama dela. Hans estava louco de desejo e Christel não se fez rogada e pensou, estamos em tempo de guerra, o que interessa é o presente, não temos futuro.
Ainda não tinha acabado de pensar e já tinha tirado a saia e desapertava a blusa. Hans despia-se também. Depois, nus, encostaram-se acariciaram-se. Ela sentou-se na cama e recebeu-o oralmente para depois consumarem o acto sexual e repetir mais tarde de todas as maneiras possíveis.
Foi uma eternidade para Christel. Deixaram-se ficar horas agarrados um ao outro e sem quase nada dizerem. Ambos estavam possuídos por essa mistura de desejo e amor que não deixa apagar o fogo da batalha carnal.
A tarde passou e chegou a escuridão da noite. De repente, Christel lembrou-se que era uma rapariga “Blitz”e tinha de estar às nove horas no seu “posto de combate”. Hans ofereceu-se para a acompanhar e disse: - amanhã trato dos meus assuntos.
Efectivamente, Hans acompanhou Christel ao comando das comunicações aéreas que já estava cheio das miúdas “Blitz”, cujo trabalho era enviar rádios falsos e verdadeiros para enganar os bombardeiros assassinos. Emitiam falsas ordens do “Führer” para dar a impressão que estava ali perto na Chancelaria do “Reich”, ou antes, sob os seus escombros e os bombardeiros vinham sempre na mesma rota para descarregar as suas bombas naqueles bairros vazios, quando o ditador estava a mais de mil quilómetros de distância junto aos lagos da Masúria e dos orgulhosos ministérios do “Reich” só restavam as caves profundas onde ainda se trabalhava, mas o grosso do pessoal estava espalhado pelos arredores de Berlim. Quase dia-sim-dia-não, os bombardeiros anglo-saxónicos vinham bombardear mais uma vez as casas e ministérios vazios, atingindo, por vezes, o gigantesco “Bunker” do “Tiergarten” (Jardim dos Animais), onde estavam os restos do comando da Força Aérea com as “relâmpago”, “Blitz”, também denominado “Bunker” do zoo, local em que na verdade não havia propriamente animais nem um jardim zoológico que ficava a uns dois a três quilómetros de distância. O edifício com dez andares aguentava tudo e dispunha de abrigos, postos de comando anti-aéreos e a respectiva artilharia no telhado, mesmo a mais pesada de 123 mm que fazia um barulho terrível quando disparavam quase de uma só vez os cunhetes de granadas anti-aéreas.
Nessa noite, Hans acompanhou Christel ao seu “posto” e regressou à casa da rapariga pois tinham combinado viverem juntos enquanto estivesse Berlim.
No regresso, Hans foi assaltado pela ideia do casamento e pensou “ficarei com uma semana de férias a mais, mas tenho de me casar um dia antes de me mandarem para a frente, por isso tenho de saber o que vão fazer de mim e pedir de imediato uma licença de casamento sem data fixa”.
Dormiu como um justo, o soldado das motocicletas promovido a tanquista e, como combinara, levantou-se cedo para, pelas seis da manhã para ir buscar a Christel, caso não houvesse bombardeamento. E não houve. Cupido parecia voar por ali a impedir o acesso das tenebrosas máquinas de guerra dos aliados. Mais uma noite fria e clara com o céu constantemente trespassado pelos focos de luz dos holofotes.
De manhã, não chegaram a dormir pois foram logo para cama, revelando-se ambos mais uma vez insaciáveis. Pela tarde, Hans foi então apresentar-se ao Depósito de Kreuzburg e queixar-se que procurava os pais e que não sabia se tinham morrido. Os rudes oficiais SS verificaram vezes sem conta os seus papéis, perguntaram onde tinha estado desde que regressou de Varsóvia ao que Hans contou que estivera com a namorada a “Blitz” Christel no Bairro Hansa numa cave de um prédio que já não existe. Admiraram-lhe a coragem de se instalar com a namorada na zona mais bombardeada da Alemanha e dissera-lhe, és bem um combatente SS, um homem sem medo. Aquelas caves não dão protecção alguma, só têm uns tijolos por cima.
- Pois sim, mas eu estava com a mais linda “Blitzmädel” da Alemanha e se morresse morria já no céu.
- Lindo disse-lhe o “Obersturmführer”, és um tipo às direitas, mas tens de ir para o teu posto de combate, o médico diz que estás apto para todo o serviço.
- Sim e para casar também.
- Está bem, arranja-se já aqui uma licença de casamento, pois com uma “Blitzmadel” não tens de apresentar aquela papelada toda a provar que não te casas com uma judia ou aparentada. E quanto aos teus pais temos de ver isso na polícia, eles têm o registo de todos os sobreviventes. Devem estar vivos, pois foi quase tudo evacuado, sim camarada, já evacuámos 14 milhões de alemães.
Hans ficou menos preocupado com os pais e só pensava na Christel e rapidamente tratou do casamento que foi feito no Registo Civil do Bairro Hansa, transferido para uma aldeia dos arredores da capital. No depósito arranjaram-lhe um camião a gasogénio que levou os convivas, ou seja, algumas colegas de Christel, mas não os pais que tinham sido evacuados para a Turíngia e os comboios já só funcionavam para transportar tropas e material, dali não havia transportes civis.
Casaram-se e iniciaram aquilo que Christel sabia de antemão ser a última e única semana de casamento com aquele rapaz. Um dia até pensou, “devo estar enfeitiçada”. Antes de ter a primeira zanga com os meus maridos, eles já estão mortos.
Chistel também arranjou uma licença de casamento de uma semana e passaram assim os dois a saciarem-se de amor naqueles sete dias.
Ao terceiro dia levantaram-se cedo e foram a Arnstadt visitar os pais de Christel, junto aos montes e bosques da Turíngia. Aproveitaram uma boleia de uma coluna de transporte de carvão, mas os últimos quilómetros tiveram de ser percorridos a pé. Os pais trabalhavam numa fábrica de munições e viviam num barracão em que cada uma das trinta famílias locatárias construiu umas separações para terem a impressão que estavam em casa.
A alegria dos pais foi tão grande como curta a estadia pois ali não havia nada, nem sequer para comer. Ainda passearam um pouco nos bosques que rodeavam a pequena vila e viram do alto, muito ao longe, o fantasma de Berlim. Uma imitação da cidade em contraplacados e cartão para enganar os bombardeiros. A Porta do Brandenburg lá estava em cartão e gesso pintado e uma débil imitação da Praça Alexander e até o gigantesco Bunker onde trabalhavam as miúdas “Blitz”. Ficaram admirados, mas segredaram-lhe que não se devia falar naquilo, era segredo de Estado.
Ainda perguntaram qual o significado de uma espécie de gigantescos pratos de ferro que viram em vários locais. – Segredo de Estado, - disseram-lhes, não se pode falar, mas em voz quase sussurrante, o pai de Christel revelou que eram as “frigideiras”, locais em que se punha carvão, madeiras e óleos gastos para lançar fogo e dar a entender aos bombardeiros que aquilo é zona de bombardeamento e levá-los a bombardear uma área de bosques e alguns terrenos utilizados como pastos. E acrescentou que, raramente enganavam os bombardeiros, por isso nunca caíam bombas naquela zona.
Quando se despediram, os pais de Christel choraram; tinham a sensação que davam de novo o último adeus a mais um genro. Os filhos de todos os amigos dos pais já tinham morrido e beijaram muito Christel pois acreditavam que, talvez, ficasse mais um neto como recordação daquele rapaz que mal chegaram a conhecer bem.
Christel e Hans regressaram penosamente ao bairro Hansa para viverem a primeira das últimas duas noites. Depois de se lavarem deitaram-se precisamente quando soaram as sirenes. Um bombardeamento estava a chegar. Não se preocuparam e resolveram fazer amor com ou sem bombas por perto.
Quando ouviram o estrépito das primeiras bombas, estavam quase no orgasmo e continuaram. O Bairro Hansa voltou a ser bombardeado pelos aviões do “Bomber Harris”, enquanto Christel e Hans amavam-se loucamente. A meia cave tremia e os clarões iluminavam o interior, entrando por frinchas e buracos diversos. As terríveis bombas de fósforo não faziam muito estrago ali, pois aquilo fora bairro da alta burguesia com tudo construído em pedra e ruas largas. A pouca madeira que existiu já ardera toda em bombardeamentos anteriores.
Só depois do segundo orgasmo é que resolveram levantar-se e vestir-se para se abrigarem na cave mais funda onde tinham areia e água para se protegerem das incendiárias. Mas, estava escrito, não era aquela a hora fatal para os dois casadinhos de fresco.
Pior que o bombardeamento foi a despedida dois dias depois. Hans fora enviado para as Ardenas e Christel acompanhou-o à estação. Christel chorou tanto que um polícia na gare lhe ordenou que parasse com essa choradeira toda e que só não participava dela porque trazia o uniforme das “Blitz”.
Christel nunca mais viu o Hans, mas outro “homem” entrou na vida dela, o filho Michael. As crianças refugiadas na Boémia-Morávia regressavam a casa pois os soviéticos ocuparam aqueles territórios e da estrutura escolar e juvenil do “Reich” já nada restava.
Michael ainda chegou a tempo de festejar os seus 14 anos. Logo a seguir foi incorporado nas unidades da Juventude Hitleriana de Berlim Mitte, iniciando um treino intensivo no disparo das armas anti-tanques, ditas punhos de aço. A mãe deitava-se quando o filho partia para o que restava de um dos grandes liceus da cidade que servia de local de treino e de algumas aulas dadas em caves. Quando não treinavam nem estudavam, os miúdos entretinham-se a retirar dos escombros tijolos e pedras e refazer paredes e protecções das caves para evitar a penetração das bombas.
Entretanto, a guerra, que nunca abandonara Berlim por via dos bombardeamentos, chegava à velha capital de um Império de loucos todo reduzido a escombros.
O mês de Abril aproximava-se do fim e também a guerra. Os soviéticos tinham chegado ao rio Oder nos primeiros dias de Fevereiro. Devido à desesperada resistência alemã, só em Abril é que os milhões de soldados soviéticos chegaram aos arrabaldes da cidade, a uns 30 quilómetros do Oder, mas a rádio alemã continuava a proclamar para breve a vitória das forças alemãs e ninguém se atrevia a contestar nem que fosse em surdina a um amigo. Os informadores da Gestapo estavam por toda a parte e nenhuma evidência podia colocar em dúvida a propaganda de Goebels e companhia.
Aos bombardeamentos sucessivos a que parte da população se habituara sucederam os tiros da artilharia pesada soviética.
Numa das manhãs em que Christel chegou do seu posto de trabalho encontrou o filho em grandes preparativos de arrumo de roupa numa mochila. Perguntou o que significava isso ao que ele respondeu que fora mobilizado com a sua bicicleta para fazer parte de uma unidade de combate a tanques. Iria receber dois lança-granadas, ditos “punhos de aço”, e partiria imediatamente para a frente de batalha.
Christel ficou aterrorizada e agarrou-se ao filho a chorar. Sabia que uma criança de catorze anos com duas armas daquelas nada poderia fazer contra as forças soviéticas que avançavam com milhões de homens e milhares de tanques e canhões. Ao abraçar o filho, reparou que este já vestia um uniforme que nunca tinha vista e tinha um boné de pala na cabeça. Perguntou-lhe que uniforme era esse. O filho respondeu que era a farda dos “comandos caçadores de tanques da Juventude Hitleriana”.
“Caçadores de tanques”? Perguntou, espantada, Christel, mas os tanques não são coelhos para serem caçados por crianças.
- Nós somos valentes, respondeu o filho e com os nossos “punhos de aço” vamos destruir todos os tanques soviéticos. O miúdo estava feito, tinham-lhe dada a volta a cabeça. Christel ainda quis dizer, mas pensou só. Que crime, levar para a frente crianças tão jovens. É condená-las à morte certa e chorou convulsivamente.
O filho acabou por beijar a mãe e com um ar decidido e fanático disse: - até daqui a uns dias, a frente está a poucos quilómetros daqui pelo que devo regressar de vez em quando.
Com a mochila, a farda e a bicicleta lá se foi em direcção ao local de concentração da sua companhia de “caçadores de tanques”.
Christel ficou com só naquele dia e nos que se seguiram. Nunca mais viu o filho nem o terceiro marido, o Hans. Nada ficou para ela a não ser o vazio deixado por uma guerra cruel. E esforçou-se para o voltar a encontrar. Ainda decorria a batalha de Berlin e Christel procurava o filho, quase na frente de batalha. Foi ao gigantesco bunker do centro da cidade em que parte do mesmo era um hospital de frente de combate. Aí viu centenas de jovens soldados e muitos também de 14 anos feridos a gritarem pelas mães e a chorarem convulsivamente. Mas nada, por mais que olhasse para as caras dos miúdos que lhe causavam uma profunda dor de peito não encontrava o filho.
A guerra terminou bruscamente pouco tempo depois do ditador se suicidar. Christel quase não deu pelo facto. Procurar o filho e encontrá-lo era a sua única preocupação.
Após o conflito, Christel teve de refugiar-se na sua cave para não ser violada pelos russos que não deixavam passar uma única rapariga. Quanda saía no Bairro Hansa vestia-se de velha e pintou com uma amiga rugas na cara, encurvava as costas e cobria-se toda, mas aquela parte da cidade estava tão destruída que nem os russos por lá queriam passar. Assim, ainda conseguiu adquirir alguns géneros alimentícios, mas passou muita fome. Houve dias em que nada tinha para comer. Dirigiu-se à Cruz Vermelha para encontrar o filho, mas ninguém lhe deu qualquer informação. Sempre com medo de ser violada e assassinada pelos soldados russos, Christel retirou-se para a zona ocupada pelos americanos quando estes chegaram à velha capital do "Reich", para onde todos os alemães queriam ir e aí as raparigas não eram violadas, muitas entregavam-se livremente aos americanos que ofereciam cigarros, chocolates e muita coisa mais a toda a gente, além de não acalentarem qualquer ódio especial aos alemãs e, obviamente, nenhum às alemãs, principalmente às mais jovens.
Christel ofereceu-se para trabalhar nas brigadas de recuperação de tojolos e outros materiais dos escombros. Trabalhava quase dez horas por dia a aproveitar os tijolos intactos, limpá-los dos cimentos e estuques e empilhá-los em grande paralelepípedos que depois eram levados por camiões para a construção de casas novas.
Christel viveu quase quatro anos desesperada sem encontrar o filho. Colocou cartazes em vários locais com o nome do rapaz e o endereço da mãe, mas nada.
Só já em 1949 é que o então iniciado serviço alemão dos mortos de guerra conseguiu encontrar o nome do filho numa placa de identificação e saber que fora morto em combate em plena Wilhelmsstrasse bem perto da sua casa e foi enterrado um pouco fora da cidade numa vala comum. A descoberta deveu-se a um colega de liceu do Michael que Christel procurou como a outros e que lhe contou que esteve com o rapaz na companhia de ciclistas caçadores de tanques. Levavam à frente dois lança-granadas. Ainda fizeram uma pequena trincheira com destroços e esperaram os tanques soviéticos. Os primeiros foram destruídos pelos miúdos que combatiam ao mesmo tempo a infantaria russa que avançava à frente e ao lado dos tanques. Depois de esgotar as suas duas “panzerfaust” (punhos-de-aço), Michael pegou na Mauser para enfrentar os experientes soldados soviéticos, mas acabou trucidado pelas balas das pistolas-metralhadoras do inimigo e por lá ficou até ser enterrado numa vala comum.
Christel chorou toda a vida aquele filho e amaldiçoou a guerra que lhe levou o filho e os maridos.
Autor: Dieter Dellinger
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