Mais uma vez Tamimo foi ao correio ver se havia carta para si. No interior do edifício quase deserto, o funcionário disse-lhe que não havia nada para o Tamimo Otiselo.
Tamimo agradeceu e, como de costume, ficou ali parado algum tempo frente ao velho e decrépito casarão dos correios. Esperava que o funcionário viesse a correr atrás dele com uma carta do patrão a dizer para ir para Portugal. Mas, nada, nenhuma resposta e retirou-se triste, o patrão não tinha escrito e já lá vão alguns anos que não escreve.
A última vez foi há mais de cinco anos, um postal de Natal com um desenho de uma árvore desconhecida para o Tamimo e umas velas. Tamimo não percebeu o significado daquilo, pois o patrão não dizia no postal que lhe ia mandar um bilhete de avião para ir a Portugal e voltar a trabalhar como antes, voltar a ser o Tami, o braço direito do Madeira, o patrão da Mecânica-Auto da Ilha, fundada em 1961 pouco depois de terem inaugurado a ponte de via única que liga a ilha de Moçambique ao continente.
Parado durante longos minutos, Tamimo contemplou o largo frente ao Palácio do Governador, o velho edifício que os portugueses deixaram na Ilha e que hoje serve de Museu. Olhou para os candeeiros partidos do antigo Largo de S. Paulo e para os restos da ponte-cais. Ali, na ilha de Moçambique, o Mundo tinha como que acabado. Já não havia oficina nem trabalho e o patrão Madeira não chamava para ir trabalhar na oficina que montara na Damaia. Nada, Tami tornara-se no abandonado da ilha.
Tamimo, do Nihimo Otiselo, passou anos e anos na tristeza mais profunda, sempre à espera da tal carta e bilhete de avião para ir ter com o patrão ou então acreditando no seu regresso para pôr de novo a Auto-Mecânica a funcionar e voltar a ver automóveis na velha e decrépita oficina do Madeira, hoje sem ferramentas nem carros, só umas latas velhas de óleos e uns bidões. O telhado há muito que deixa passar todas as chuvas da monção. Foi um ciclone que o levou como o fez ao da cervejaria Imperial ali perto.
Nos primeiros tempos teve esperança e ainda tentou reparar alguns dos poucos carros que ficaram na Ilha, mas a falta de peças e ferramentas foi atirando tudo para a sucata, enquanto as melhores viaturas há muito tinham sido expropriadas pela Frelimo e pelo Governador, acabando nas oficinas de Nacala, as únicas que ainda funcionam na região.
As bicicletas foram durante algum tempo o ganha pão de Tami, mas era impossível arranjá-las, não havia cubos de rodas, nem pedaleiras, nem como as fabricar à mão ali na ilha então cercada pela guerra com a Renamo. Além de que Tami Otiselo não se interessava verdadeiramente pelo trabalho, nem por aquele nem por outro qualquer. Por vezes pegava numa velha canoa de um tio e ia à pesca, sempre trazia algo para comer para si e para a mulher de quem tinha dois filhos. Enquanto isso, a mulher atravessava a ponte a pé e ia apanhar mandioca ou algo que prestasse nas muitas machambas abandonadas do outro lado do canal. Diziam então que a Renamo podia apanhá-la e mesmo matá-la. Nunca se importou, pois dizia que nada tinha a ver com aquela guerra, cuja razão não entendia.
Nos piores momentos da guerra contra a Renamo, Tamimo ainda foi mobilizado para o Batalhão Formiga. Ensinaram-lhe a manejar uma velha Kalashnikov AK-47 e o RPG-7 e partiram nuns camiões checos para o interior em direcção a Nampula. Andaram no mato sem ver a Renamo, mas de vez em quando ouviam uns tiros e todos disparavam não se sabe para onde. Depois o barulho acalmava e voltavam à normalidade. Alguns morreram quando uma mina fez saltar um dos camiões, outros quando dispararam à noite para um casarão que lhes serviu de quartel durante algum tempo, no Patone.
Mas, a paz apareceu subitamente, os formigas foram desmobilizados e Tamimo voltou à Ilha e ao tempo livre para a tristeza. Ainda pensara que com o fim da guerra podia então sair dali, receber o convite e o bilhete do patrão para ir trabalhar em Portugal. Tamimo sonhava em viver como os portugueses, todos bem, todos com carro e casa. Esteve perto disso quando era o braço direito do Madeira. Já tinha mesmo um velho segunda mão em mente para comprar com a ajuda do patrão. Arranjavam o velho Carocha do Luciano e este prometera vender ao Madeira que o passaria ao Tami. Promessa feita, mas não cumprida. Quando Madeira, Luciano e os outros se foram embora o Carocha desapareceu, ninguém lhe pôs mais a vista em cima.
Tami deambulava frequentemente pelo velho bairro europeu da Ilha, todo destroçado com casas destelhadas. Não queria viver ali, nunca quis ocupar alguns daqueles casarões medonhos para si, antigos e eventualmente com as paredes assombradas pelos esqueletos de escravos mortos à paulada que teriam sido enterrados ali, ou mesmo emparedados na cal e no alcatrão.
Preferia a casa maticada coberta a macute com paredes de lacalaca no Litine. Dormia na varanda da frente, a mais fresca, enquanto a mulher, os filhos e mais família da mulher se espalhavam pelo interior e pela varanda que dava para o minúsculo quintal mal vedado, junto ao poço de água salobra escavado numa rocha. Tami gostava daquelas casa, detestava as velhas casas dos brancos da Ilha, mas sonhava com os prédios muito altos. Não sabia porquê, achava que viver na altura seria um luxo ou uma forma de estar mais perto de uma qualquer divindade, talvez mesmo de Muluku.
Disseram-lhe que todos os portugueses viviam nas alturas em Portugal como no Maputo que conhecia de fotografias que chegara a coleccionar. Em casas fabulosas mais altas que as ameias da Fortaleza de S. Sebastião com imensas escadas de mármore e dois elevadores. Os azulejos e o mármore abundavam por toda a parte a atestar a imensa riqueza dos portugueses. Disseram-lhe que os portugueses até cobriam taludes com paredes todas forradas de azulejos e colunas de pontes e viadutos. - Tanto mármore e tanto azulejo nenhum povo tem. Os portugueses são o povo mais rico do Mundo, disse-lhe um dia o Mwene, mas são Minko, avarentos, e Minko oruhua orilu, a avareza traz a desgraça.
Tami achava-se traído pelo Madeira. Fora quase seu pai, mandara-o para a Escola Primária e depois para a Escola Comercial que não chegara a completar, ensinara-lhe quase tudo de mecânica e subitamente deixa-o órfão de um nihimo dos brancos, a que julgara pertencer. Ele estava ali na ilha à espera do patrão e não ouvia os conselhos dos que diziam para ir para o Maputo. Sim, lá ainda havia carros e oficinas, podia trabalhar e até montar a sua oficina.
Muluku Okhala, Deus existe, costumava dizer Tami para si mesmo, a acalentar a esperança de que Muluku faça o milagre de receber carta do patrão Madeira. Mas nada. A tristeza foi apoderando-se de Tami, a mulher ao vê-lo assim voltava-lhe as costas e dizia, apenas, é homem, ser desprezível para Macua tradicional.
No último dia da sua vida, Tami foi ao correio e ao entrar ainda disse para consigo, mas em voz alta, Txontte, Muluku, Por favor, Deus. A resposta do funcionário foi a habitual. Nada, nenhuma correspondência. Tami saiu, atravessou a praça e foi à velha ponte-cais, avançou por entre as tábuas meio partidas e na ponta deixou-se cair na água. Não fez qualquer movimento para nadar, ficou como que uma pedra. O peso da tristeza fê-lo ir para o fundo, encher os pulmões de água e morrer sem pensar em mais nada.
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