Sábado, 24 de Fevereiro de 2007

O Conto como Género Literário

 

As editoras, sejam portuguesas ou não, raramente gostam do Conto, da "Short Story" como dizem os americanos ou do "Cuento" ou "Novela de Curto Plazo" no dizer dos sul-americanos. Por isso, não publicam esse "género menor", salvo nos casos em que o autor paga a edição ou quando uma "alta autoridade da televisão" lança o nome do autor, mesmo que seja em actividade completamente desgarrada da literatura.

No meu caso, tanto o conto como a novela curta fascinam-me e publico-as num blog com a consciência de nem serem lidas. Podem ser curtas e lidas em cinco a dez minutos, mas isso hoje acaba por ser uma eternidade. Quem tem paciência para mais de dez linhas ou mais de 30 segundos na Televisão? As televisões habituaram-nos a concentrar a atenção sobre algo durante segundos e, em casos mesmo excepcionais, minutos. Contudo, há países onde escritores se notabilizaram no conto, e são essencialmente sul-americanos de fala hispânica. Garcia Marques, Cortazar, Borges, Juan Rulfo, Mario Benedetti e tanto outros notabilizaram-se no conto, apesar de alguns terem também sido grandes romancistas.

No conto, o autor não tem a pretensão nem a arrogância de criar um mundo como sucede no romance, mas tão só contar uma peripécia em que, eventualmente entre mais que um personagem com capacidade para dialogarem entre si. Mas, a peripécia traduz sempre um momento da vida das pessoas e do ambiente que as rodeia, daí poder buscar um Século inteiro para contar algo de maior ou menor significado em dados momentos históricos. Mesmo um Século chato porque passou e deixou pouco para além do computador e de umas mecânicas. O Século XX foi o da morte das ideias. A inteligência humana parece que se passou lentamente para as maquinas. Sem elas já não somos nada, nem escrever sabemos sem o portátil.

 O conto sul-americano teve, sem dúvida, um grande desenvolvimento e não foi por acaso que o um prémio Nobel foi concedido a um contista puro. Refiro-me a Jorge Luís Borges, o autor que me fez um apaixonado por esse género literário, seguindo-se depois Raymond Carver, o inolvidável escritor das "short stories" e da escrita criativa. Carver foi um Tchekov americano, sendo que Tchekov foi o maior contista russo, e talvez do Mundo, de todos os tempos. A simplicidade de Carver e a forma como transmite nos seus escritos o tédio materialista de uma grande parte da sociedade americana que tem tudo, mas não tem nada ao mesmo tempo, finge ser feliz e é profundamente infeliz. Come hamburgers a julgar que participa na sociedade democrática e, sem saber, é totalmente dominada por esse "Big Brother" chamado televisão.

 Raymond Carver, como nenhum outro, é um fotógrafo por palavras e mostra as traseiras, a roupa estendida, as fraldas descartáveis e a monotonia que se apoderou de uma sociedade já globalizada a nível mundial neste aspecto. Carver é genial a descrever as vidas paradas e essas são praticamente todas. A peripécia em Carver é a chatice, ninguém pode ser político nos EUA, a não ser que seja milionário ou filho de presidente. Cada um tem a sua vidinha e nada mais. Mesmo assim, ainda não foi Raymond Carver quem teve a coragem de chegar ao âmago da realidade. À monotonia verdadeira, ao desencanto total da vida velha, ao apagar triste de cada ser humano na lenta degradação neuronal ou ambiental. Os humanos são trapos a morrer e vivem como trapos mais ou menos animados.

A literatura, tanto no conto como na novela, é uma fuga à realidade. A peripécia pode ter sido um acontecimento, mas é sempre fortuito, não é a realidade no seu todo. Essa, ninguém tem coragem para a descrever. Claro, eu muito menos. Mas qualquer dia alguém terá de o fazer. Não podemos ser apenas um Mundo de sete mil milhões de fingidores.

Arundati Roy em "Um Deus das Pequenas Coisas" aproximou-se bastante, tal como Robert Musil em "O Homem sem Qualidades" andou por perto da realidade, mas também não atravessou a última fronteira. A realidade é a consciência que todos temos e fingimos não saber da sua existência de que a vida não é ideal e nada de espantoso vai acontecer no tempo de cada um. Mesmo os acontecimentos cheios de grande intensidade como as revoluções ou guerras tornam-se incrivelmente monótonos e gastos logo ao terceiro dia. A tragédia da morte diária é o mais inconcebível dos acontecimentos e muito pior que o mesmo café tomado todas as manhãs ao longo de muitas décadas de vida. Enfim, resta-nos contemplar o azul do céu e as ondas do mar. O sol e a água podem encher-nos sempre de alegria. Fomos feitos disso, é a nossa matéria-prima essencial.

 

publicado por DD às 00:27
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Quinta-feira, 22 de Fevereiro de 2007

O "Voluntário"

 

     Carlos Santos, o moço do Ferreira, foi mais uma vez levar uma compra à senhora do quarto direito do número 8. Já lá tinha ido duas vezes nesse dia. Não é que ficasse cansado, mas chateado, aquilo não era vida para ele.

     Ao chegar à porta do 8 tocou, mas como de costume ninguém apareceu, só depois de muita insistência é que a velha chegou à janela para ver quem era. Carlos não tinha pressa, estava de serviço. A dada altura, olhou para trás e viu um senhor de fato negro e chapéu igualmente negro, bem posto, mas algo estranho que lhe perguntou:

      - Para onde vais com a saca de lenha? - Como? O Senhor está a falar comigo? - Sim, estou pá. - Vou ali à cliente do quarto andar entregar a lenha. Parece que a gaja está com frio, ou então precisa de lenha para o fogão da cozinha.

      - Físico tens, mas respeito pouco. Quanto é que o patrão te paga? - Sei lá, senhor. No fim do mês dá qualquer coisa, raramente mais do que uns dois mil reis.

      - Isso é mesmo pouco, porra. Devias arranjar outro patrão que dê mais dinheiro, sim "Plata", em Espanha. Não queres ir trabalhar para Espanha?

     - Porquê em Espanha, não está lá tudo em guerra civil? E não se fuzila por dá cá aquela palha?

     - Não, pázinho! Não é ir para a guerra, é para trabalhar num hotel com boa paga e uma bela farda de graça. Pá! Os gajos estão em guerra, falta lá pessoal para os hotéis. Por isso, a malta do Hotel Vitória, sabes na Avenida da Liberdade, está a recrutar pessoal para todo o serviço em hotéis, restaurantes, etc.

     - Então, e quanto pagam?

     - Pelo menos cinco pesetas diárias e fatiota completa, além da comidinha e as gorjetas, pá! Como vês, isso dá uma porrada de Escudos.

     - Não me parece mau, não, talvez até fosse bom aqui para o rapaz. Sabe, nada tenho a perder, nem tenho um fato completo. Nunca vou à missa ou a um baile porque nada tenho de jeito para vestir.

      - E se vais à missa és cá dos nossos, da malta da cruzada cristã, vão gostar de ti nos hotéis nacionalistas em Espanha.

      - Então, decides-te ou não? Vais lá, assinas o papel e levo-te de camioneta a Talavera de La Reina. Sim, e tudo à conta do Hotel. Não vais precisar de dinheiro no início. - É para já, vamos a isso.

      - Mas, é melhor levares lá acima a saca de lenha e entregares depois o dinheiro ao patrão.

      - Não, a saca fica já aqui no passeio. Quem quiser que a leve. E que se lixe o patrão. O gajo, além de me obrigar a trabalhar o dia inteiro, põe-me na casa dele, à noite, a esfregar soalhos e lavar a louça da cozinha.

    - Bem, vamos ao Hotel Vitória. Perguntamos pela oficina de Dom José Comim e tudo ficará "arreglado".

     - Não percebo, oficina de quê num Hotel?

     - Não tenhas medo rapaz! Oficina é escritório em espanhol. E como é que te chamas?

     - Carlos Santos.

    - Está bem Carlitos, eu sou o "Bandeirin de Enganche". Por isso, podes chamar-me Bandeira, ou antes, Senhor Bandeira.

    - Muito bem, senhor Bandeira, mas de quê? Não percebi bem o seu apelido.

    - Deixa lá, não é apelido, é do trabalho. Vamos depressa ao Hotel Vitória. Talvez arranjem a camioneta já para amanhã.

   Carlos foi com o "Bandeirim" ao Hotel Vitória, onde estava instalado o centro operacional de Lisboa dos rebeldes franquistas espanhóis que, meses antes, se tinham revoltado contra o regime democrático. Os Tércios ou Legião Estrangeira Espanhola tinham lá um oficial de alistamento, o major Comim. Logo à entrada, o Bandeira perguntou se o pessoal do 204 estava de serviço. O porteiro respondeu pela afirmativa.

    - Pronto pá! Vamos lá acima para assinares a papelada. Podes estar contente, os gajos vão aceitar a tua candidatura ao lugar num Hotel em Madrid. Mas, não tenhas medo, eu vou contigo até Badajoz, pelo menos. Quando subiam as escadas, Carlos ainda disse ao "Bandeirim" ou Bandeira: - Até podia ficar já a trabalhar neste Hotel, sempre era mais perto de casa e em Lisboa já conheço as ruas.

    - Não, pázinho! Aqui está tudo tomado. Em Espanha sim, há lá muito lugar vago e não te esqueças de dizeres que tens dezoito anos. A porta estava aberta, entraram logo. O major Comin olhou com um ar desconfiado para o recruta e perguntou a idade: - Dezoito anos.

    - Sim, "por supuesto", daqui a um ou dois anos. Mas não há problema. Assina aqui ao fim da folha e pronto. Toma este papel, é para dormires na Pensão Isabel, ali à Rua da Mãe de Água. E espera um pouco para eu preencher o teu carnet provisório. Mas, o melhor é arranjares um nome um pouco mais espanhol, mesmo que seja de origem duvidosa em termos de região. No cartão não fica a nacionalidade de origem. Olha, assina Carlos Inglesias de Los Santos, é melhor, se fores apanhado dizes que és galego ou seja o que for e não és logo fuzilado. Leva lá o cartão e nunca o percas, principalmente em Espanha.

    - Como vês foi rápido. Amanhã levantas-te às seis da manhã. Pelas sete e meia temos de estar em Cacilhas para apanhar a camioneta que nos vai levar a Badajoz. Vamos com mais malta portuguesa, tudo gajos fixes, cá dos nossos, mas não vamos todos juntos para não dar muito nas vistas, a polícia pode julgar que vamos fazer uma revolução. Descemos a Praça da Alegria, apanhamos o eléctrico para o Cais do Sodré e pronto.

    - Porra! - exclamou o Carlos Santos a olhar para uma espécie de caderneta que lhe deram. - Agora sou o Carlos Inglesias de Los Santos, não posso ir trabalhar num hotel espanhol com o meu nome, meteram-lhe Inglesias, será por ser Santos? Já agora seria Inglesia de Todos os Santos.

Carlos foi com o Bandeira à pensão e depois a uma tasca na Travessa do Rosário. Já lá estavam outros recrutas. Um foi apresentado como sendo o Benito e outro o Adolfo, e ainda o Manuel e o António. Carlos não estranhou, estava cheio de fome, apresentou-se só como o Inglesias. Trouxeram-lhe uma económica com camarão e tudo e depois um bacalhau com grão-de-bico que o deixou esfuziante de alegria. Gostava mesmo do grão-de-bico, bem rugoso e grado, parecia que tinha vindo da sua terra, das pequeníssimas leiras do pai, talvez. O vinho não prestava, mas sempre dava para molhar o pão e limpar a garganta do pó. Cheio de fome, Carlos mal olhou para os seus companheiros, ambos de porte artificialmente esticado e de queixo elevado, armados em tesos. O Benito olhou desconfiado para o Carlos e saudou-o: - Salve César, camarada de uma morte heróica e garantida.

    - Garantida sim, porra, mas não para já e César não sou, Carlos, sim!

    - Todos aqui somos Césares, senhores do Império do Futuro, vamos conquistá-lo com o nosso sangue nas províncias béticas.

    - Está bem, deixa-me comer o bacalhau e vai gritar pela morte da tua avózinha, não pela minha. Já cansado, o novel recruta Carlos Inglesias, foi dormir na pensão. Num quarto minúsculo, caiu na cama como uma pedra, só tirou a camisa e as calças. Nem pensou no luxo de quase pela primeira vez na vida poder dormir só num quarto, sem pais, irmão ou gatos. No dia seguinte, acordou lentamente, deixou-se estar com os olhos fechados como se nada mais tivesse que fazer, até ouvir alguém a bater-lhe à porta.

    - Então pá, adormeceste ou morreste de medo?  Levanta-te. A camioneta não espera. Já não tens tempo para o pequeno-almoço.

Carlos levantou-se apressadamente e saiu quase sem se lavar. Já estavam todos na travessa. Esperavam pelo Carlos. Quando chegou viraram-se para ele e saudaram-no de braço estendido e palma da mão ligeiramente para cima. Salve, gritaram em uníssono, Salve Viriato, voluntário dos Lusitanos. Carlos não percebeu a razão de tal cumprimento e respondeu simplesmente bom-dia, bom-dia a todos.

   - Come lá este pão e depois tomas o café, não tempos tempo a perder, - disse-lhe o Benito.

    Carlos olhou para ele e agradeceu. O Bandeira já lá estava a organizar a ida a Cacilhas, em pequenos grupos, para não dar nas vistas. Os voluntários que Carlos já conhecia e alguns outros que pernoitaram em pensões da Praça da Alegria.

    - Cinco gajos no máximo, e tu, Benito, comandas este grupo com o Carlos, o Adolfo, o António e o Manuel. Saiam uns cinco minutos depois do primeiro grupo. Não te esqueças, pá, encontramo-nos à saída do cacilheiro, no outro lado do rio e tenta falar em código. O pessoal aí das ruas não precisa de saber ao que vamos.

 

    Seguiram assim em pequenos grupos pela Mãe de Água abaixo até à Praça da Alegria e daí para a Avenida onde apanharam o eléctrico para o Terreiro do Paço. Depois foi a espera pelo cacilheiro. Quando chegou deixaram sair o pessoal e entraram. O Benito era decidido, adorava comandar, só tinha pena de não o poder fazer com o exame da quarta classe. Por isso, ofereceu-se para o combate, esperava sair com uma patente militar e sentiu que a decisão do Bandeira de lhe conferir o comando era um prenúncio do que lhe esperava no futuro. Passou a gostar mais dos companheiros que agora eram os seus subordinados. Esperava incutir-lhes o seu ódio à democracia e a admiração pela hierarquia e pela ideia de que as sociedades só devem ser conduzidas por personalidades com grandes capacidades de comando e liderança, nunca pelo voto popular.

    - O povo é feito para obedecer, não para mandar - costumava dizer.

Frente aos subordinados, endireitou ainda mais as costas, ergueu os queixos para cima e ligeiramente de lado para o interlocutor, imitava o seu herói preferido, Benito Mussolini, o "Duce" da Itália. Atravessado o rio, encontraram ao largo de Cacilhas outro grupo de voluntários, entre as camionetas, carroças e equídeos. Estes comiam palha pachorrentamente enquanto os donos descarregavam as lombardas e tronchudas da Caparica. Cumprimentaram-se todos com o braço timidamente estendido e logo recolhido para não dar muito nas vistas. D. José Nunez Comim, o major, apareceu vestido à civil e passou revista, apesar de não estarem em formação militar. Estendeu-lhes a mão e desejou-lhes "buena suerte" com um sorriso meio simpático meio amargo nos lábios. A hora matutina e fresca com um pouco de nevoeiro no rio não parecia inspirar muito os heróis que demandavam as Espanhas do Império com que sonhavam.

    Antes de entrarem para a camioneta, o major organizou o pessoal em duas "secciones de enlaces" e, mais uma vez, Benito foi contemplado com um comando. O Bandeira segredou ao major que aquele gajo todo direito era o indicado para um dos comandos pois é um verdadeiro fascista. A camioneta arrancou para a longa viagem de mais de seis horas a percorrer a interminável estrada ladeada de sobreiros e oliveiras. De vez em quando, passavam alguns veículos em direcção à fronteira, oficialmente fechada. As camponesas alentejanas com os seus lenços e chapéus dedicavam-se aos últimos trabalhos campestres antes de se recolherem ao longo Inverno do desemprego e da fome.

     - Por vezes comem bolota ao Natal devido ao desemprego e à miserável jorna que recebem quando trabalham. Não dá mesmo para aforrar o suficiente para o Inverno - disse o Carlos, deixando escandalizados os que o ouviam, mas o Benito até concordou, ou não fosse um alentejano de gema. Só o Adolfo é que o olhou com uma cara colérica de profunda desaprovação.

    Sem problemas, a camioneta atravessou a fronteira já perto das três da tarde e seguiu directamente para Badajoz, passando por longas ruas de casas térreas cor de areia. Pararam perto da Praça de Touros, onde foram recebidos por um sargento dos Tércios e por dois cabos. Indicaram-lhes com modos rudes uma antiga cantina sindical para almoçarem. Carlos e o restante pessoal vinham cheios de fome e a avaliar pelo local pensaram primeiro que a comida deveria ser intragável. Não foi assim; todos gostaram da entrada de tomates cortados ao meios com salsa a acompanhar botifarras negras, umas salsichas fritas muito curtas e quase saborosas. Faziam mesmo lembrar umas botas dos tempos das guerras da Flandres, as do "Gran Capitan". Depois veio um pouco de "carne a la jardinera" e uma "ensalada". O vinho não prestava, mas em tempo de guerra não podia ser tudo bom. Depois do almoço, o Bandeira disse ao Carlos e aos dois outros "hoteleiros" que tinham de ir a Talavera de La Reina antes de seguirem para Madrid onde estão os hotéis. Ninguém estranhou que a capital da República Espanhola não estivesse na posse dos nacionalistas. Esperava-se que, a qualquer momento, o general Mola fosse tomar um café numa esplanada da Castellana, eventualmente acompanhado por Franco que ainda não se tinha autopromovido a generalíssimo.

    Carlos e os amigos não duvidaram de nada nem colocaram quaisquer problemas. Não sabiam ao certo para onde iam. Numa camioneta espanhola seguiram todos para Talavera. Ao chegar, o Bandeira disse que iriam pernoitar na sede da companhia de depósito e instrução da Legião, pois não havia hotéis abertos e acrescentou que seria melhor fazerem todos um pequeno "entrenamiento" militar, pois o Hotel pode ser atacado e o pessoal tem de saber defender-se. Já tinha anoitecido quando a camioneta espanhola chegou ao depósito. Foram para a messe jantar e Carlos admirou-se ao ler no pendão daquela unidade militar "El Christo y la Virgen". Perguntou ao Bandeira a razão de um nome tão santo numa unidade militar que se destina a matar outros seres humanos. -

     - É assim pá. Os militares espanhóis mostraram a sua devoção católica ao darem este nome à 4ª Bandeira da sua Legião Estrangeira, cujo depósito está provisoriamente situado aqui. A sede original é em Riffien no Marrocos Espanhol. Para aqui hão de vir os portugueses voluntários que integrarão eventualmente uma ou mais companhias denominadas Viriatos. Também está em organização uma companhia de franceses que vai receber o nome de "Jean d'Arc". Esta guerra, pá, é uma cruzada santa, tem a bênção do cardeal Segura. E se tiveres dúvidas, o cura da companhia explica-te tudo e diz-te que as balas estão ao serviço da cristandade, são as verdadeiras hóstias agora.

 

 

    - Pá! As seis "Banderas" da Legião participaram no "comboio da vitória" que saiu do Marrocos e agora está às portas de Madrid pronto a entrar e derrotar de vez a República. Carlos acenou com a cabeça, mas não percebia nada, nem o que tinha ele a ver com uma unidade de militares profissionais que ostentava o nome "El Christo y la Virgen".

     - Vamos jantar, - ordenou o Benito - e levantem-se quando aparecer o capitão Saavedra. Ele virá aqui saudar-nos. Quando chegou o capitão, todos se levantaram e começaram a berrar "Arriba Espanha", "Viva la Muerte" e "Viva Milan Astray". Saavedra fez uma vibrante alocução. Falou da reconquista da Lei, da Ordem e da Paz. Acrescentou que a vitória da Frente Popular nas eleições de Janeiro foi uma fraude com votos comprados pelos partidos dos operários. Só assim puderam derrotar as forças da Ordem e do Respeito.

    - Porra! Disse para consigo mesmo o Carlos Santos, não tenho nada a ver com isto. Só queria ganhar as cinco pesetas diárias que o sacana do Bandeira prometeu. Agora até tenho de vestir a farda da legião destes gajos, mas começa a arrefecer e lá para Novembro ou Dezembro vou necessitar de mais trapos, se não fico lixado. Efectivamente, no dia seguinte, muito cedo pela manhã, levantaram-se e o cabo da camarata ordenou que fossem buscar o fardamento. Os menos entendidos no castelhano do cabo recebiam uma chuva de palavrões e alguns pontapés bem elucidativos. Carlos recebeu duas calças e duas camisas de cole aberto, além de uma "guerrera" de cor caqui para vestir por cima das camisas e um gorro com berloque vermelho pendurado. Também receberam a bota alpargata do exército espanhol e as polainas de lona.

    Depois veio o treino com o pessoal organizado em "secciones" comandadas por um cabo e pelotões dirigidas por um sargento adjunto de um tenente. Formação e marchas com o velho fuzil Mauser de 7 mm, modelo 1893. Marchas e gritos, os instrutores não tinham paciência para nada e enraiveciam-se com os portugueses. Na carreira praticava-se o tiro. Para atingir um alvo a mil metros de distância, a Mauser parecia um canhão e dava um esticão que deixava qualquer ombro todo vermelho.. Depois veio o treino de assalto com o lançamento das célebres "bombas de mano" da Legião e baioneta calada a espetar umas sacas de areia a fingir de inimigos na trincheira. Os recrutas ainda aprenderam sob a gritaria de cabos e sargentos a disparar as velhas metralhadoras Hotchkiss de 7 mm. Montados em selins de bicicleta disparavam uma salva de alguns segundos para ver como era e aprendiam uns rudimentos de montagem e desmontagem da Hotchkiss. Carlos só lentamente se foi habituando à língua castelhana. Estava por isso sempre sob o alvo do sargento Quevedo, um autêntico tirano. Benito sentia-se mais à vontade e de vez em quando traduzia. Uma vez chegou a dizer: - Estes subalternos da Legião devem estar feitos com os gajos do outro lado. Por isso tratam-nos tão mal e parece que têm raiva aos portugueses. Dá a impressão que não gostaram que tivéssemos vindo a Espanha pôr as nossas vidas em risco. Três semanas depois, a recruta termina inopinadamente. Era o dia 5 de Novembro de 1936, a ofensiva nacionalista contra Madrid ia começar.

Foi também um dia de folga para o pessoal ver Talavera de La Reina, que pouco ou nada tinha para ver. Naqueles dias, Talavera estava cheia de gente fardada. Falangistas, requetés, legionários, regulares, mouros, alemães de camisa castanha ou cinzenta militar. Quem aparecesse num café sem farda e ainda jovem de idade podia ser alvo de um insulto por parte dos falangistas que punham na cabeça do insultado uma pequena camisa de senhora recortada em papel e gritavam "maricón", "maricón". O insultado não se atrevia a responder pois lá fora espreitavam falangistas armados de espingarda e baioneta. Mas, um indivíduo revoltou-se contra o insulto, pois já não era tão novo assim. Começou por dizer que tinha 39 anos de idade e atirou com a camisa de papel para o chão. Um dos falangistas deu-lhe um murro, o homem respondeu com um pontapé nos testículos do agressor que berrou de dor, depois pegou numa cadeira e recuou em posição defensiva, enquanto três outros falangistas queriam atirar-se a ele, mas estavam com medo. Subitamente, o insultado leva um tiro no peito. Caiu a vomitar sangue com a camisa toda vermelha e um buraco aberto no peito. Carlos ficou lívido, nunca tinha visto alguém ser assassinado e sentiu um nojo de vómitos pela imensa cobardia dos falangistas. Estava então com Benito que lhe disse para não ligar aos sucedido, acrescentando: - O gajo tinha mesmo cara de socialista, levou o que merecia.

    No dia seguinte, às primeiras horas da manhã, todo o pessoal da "Christo y la Virgen" foi acordado. Os sargentos e oficiais estavam muito nervosos, davam toda a espécie de ordens. Carlos ouviu dizer para se despachar e arrumar os pertences na mochila. Apressadamente tomaram uma espécie de café e foram ao armeiro receber as Mausers e os cartuchos. Benito e Adolfo estavam entusiasmados, a rir disseram ao Carlos que iam todos para Madrid.

     - Pá! Vamos depois dar cabo daqueles sacanas. Vai ser o fim deles.

     - Só tivemos três semanas de treino, Carlos, mas chega pois somos valentes.

    - Mas, eu não vou combater, pois fui recrutado para trabalhar num hotel. Talvez haja que combater um pouco se os gajos nos atacarem.

   - Pois é, pá. Para abrir o caminho até ao hotel há que dar muita porrada nos "rojos". O sargento aproximou-se do pequeno grupo de portugueses e ordenou-lhes rispidamente para tomarem lugar nos camiões. A viagem foi lenta por estradas poeirentas, quase sempre em mau estado com pontes meio destruídas até aos arredores da capital. Quando pararam, viram que havia por lá muita tropa, preparava-se o assalto final com mouros de albornoz, regulares, legionários e outros ainda que ninguém conhecia. "A Madrid, a Madrid", gritavam uns aos outros quando camiões e apeados se cruzavam. Ao mesmo tempo começava a ouvir-se o ensurdecedor ruído dos canhões. Bivacaram à beira da estrada, num local onde havia um terreiro livres para as tendas.

 

    Na manhã do dia 10 de Novembro, o pessoal recebeu ordens para ir para a frente. Carlos ainda quis protestar e disse ao sargento que fora contratado para um hotel, não para uma guerra tão barulhenta.

    - Hotel no, no, guerra, guerra, - respondeu o sargento com um sorriso trocista.

    - Pá! Ouve, - disse-lhe o Benito - isto é mesmo guerra, se fores para trás apanhas um tiro da polícia militar e na tua frente tudo depende de ti. Se vires um sacana a mexer, ou despachas o gajo, ou és despachado. Carlos queria chorar, mas teve vergonha. Marcharam para uma colina coberta de estevas e azevinhos, iam substituir os homens que no Cerro Garabitas, no extremo do Parque denominado Casa del Campo, aguentavam com dificuldade as contra-ofensivas dos milicianos madrilenos. Do cimo da colina, o cabo Juan Gomez explicou que à esquerda via-se a massa informe do Quartel de La Montaña, mais à direita a alta silhueta do Teatro da Ópera e depois o gigantesco Palácio Real. Passaram pelas trincheiras dos milicianos que não recuaram, ficaram lá todos mortos, às dezenas, já com um cheiro pestilento. A linha nacionalista e a retaguarda contígua estavam a ser assoladas por granadas de morteiro e de artilharia dos republicanos.

 

       O odioso sargento Martinez seguia a uns dez metros atrás do Carlos. Subitamente um silvo agudo e uma explosão, Carlos atirou-se ao chão depois de se virar para trás e viu ainda o sargento ir pelos ares e estatelar-se no que restava de uma árvore sem copa. O sargento ficou pendurado com a cabeça para baixo e os olhos muito abertos. Um dos braços tinha sido decepado rente. Carlos correu para o homem na tentativa de o salvar, mas nada poderia fazer. A cara do sargento era uma massa informe e vermelha, enquanto do local onde esteve o braço e a omoplata viu só um buraco profundo, Carlos não deixou de admirar-se com o aspecto vazio do interior daquele corpo humano. "Porra, somos assim tão ocos?", perguntou Carlos a si mesmo, quando logo a seguir Benito gritou-lhe para se atirar ao chão e não deixar de rastejar. -

        - Os gajos estão a disparar com pontaria certeira - disse.

      Efectivamente, as balas vinham de toda a parte e muitos dos legionários já estavam caídos. Mas, era preciso chegar à improvisada trincheira de pedras e dos restos de um muro para se abrigarem. O cabo Gomez berrava como um doido, estava histérico, enquanto Carlos chorava de raiva por se ter metido naquela porcaria de onde aparentemente não sairia vivo. O Adolfo parecia que tinha perdido o seu ar frio e penetrante para adquirir um esgar de medo e cobardia, atirou-se ao chão e não queria levantar-se, gritava que ia suicidar-se com o cão que deixara na terra, enquanto que os outros chegavam ao parapeito do muro que servia de trincheira.

 

    Muito atrás ficara o capitão Saavedra a dirigir o tiro a partir de um resguardo de sacos de areia. Espreitava de vez em quando para se abrigar logo de seguida. Ordenou ao cabo Vicente para informar o tenente Delgado que deveria agrupar os homens da sua companhia para descerem do cerro, ladearem o lago artificial e cruzarem o Manzanares.

     - Seremos os primeiros a chegar à Praça de Espanha - acrescentou.

Muito a custo, Vicente avançou entre árvores e arbustos até ao muro e informou o tenente, Carlos a seu lado tinha recebido ordens para se postar no parapeito e atirar com pontaria certeira ao atacante mais chegado e depois ao seguinte e assim sucessivamente. O tenente respondeu com fúria ao capitão Saavedra, afirmando: - Só com blindados podemos chegar ao Manzanares e atravessá-lo. "Coño", fomos enganados, disseram-nos que os gajos não tinham exército e que as milícias iriam comportar-se aqui como o fizeram ao longo de todo o nosso avanço desde Sevilha. Mas, não, eles têm lá uns gajos de capacete de aço, "cojones", estão a combater e a contra-atacar e nós estamos a morrer, porra! Como é que uma República com ministros anarquistas e milícias femininas arranja um exército? Saavedra, lá atrás, recebeu de novo o cabo Vicente e deu razão ao tenente. Pediu pelo telefone de campanha ao coronel Juan Yagüe para mandar blindados. Disseram-lhe que Yagüe adoecera, fora substituído pelo coronel Garcia-Escámez. O seu oficial de ligação informou que os tanques estavam a vir. Carlos viu aparecer sucessivamente mais e mais infantaria sem saber que as três principais colunas do ataque à capital da República estavam a agrupar-se ali naquele local, em pleno parque da Casa del Campo, para atravessarem o Manzanares.

      Foi tudo muito rápido, o pelotão com a pequena secção dos Viriatos portugueses recebeu um novo sargento, o Ribera, muito nervoso e aterrorizado com a perspectiva de morrer, apesar do seu apego legionário à morte. Ali, debaixo do fogo constante do inimigo, Gomez não gritava "Viva La Muerte", imitando Milan Astray, o fundador dos Tércios da Legião. Carlos, Benito e Adolfo, mais os restantes lusitanos, passaram também a ser comandados pelo cabo Juan Cuerpo, um tipo baixito e gordo que procurava sempre compensar a sua inferioridade física com uma bem alardeada valentia. Mas ali naquela situação, o homem tornara-se mais prudente. Esperaram cerca de duas horas pela vinda dos tanques e tanquetas.

     Os metralhadores das Hotchkiss postadas nos muros de pedra receberam ordens para fazer fogo cruzado sobre as linhas republicanas, enquanto o pessoal da companhia de Saavedra com as coronhas das espingardas demoliam parte do muro para deixar passar os tanques. Com grande ruído, as maquinetas chegaram e foram-se ao Manzanares seguidas pela infantaria. A distância era mínima, menos de cem metros, mas sempre batida pelo fogo inimigo. Soldados de capacete de aço atiravam a matar, do outro lado do rio. De vez em quando caíam granadas de morteiro. Muitas não explodiam, mas as outras faziam ali uma carnificina terrível.

     Os tanques "Negrillos" e as tanquetas Fiat Ansaldo chegaram ao Manzanares e tentaram atravessá-lo. Carlos aterrorizado, viu as máquinas patinarem na lama e o pessoal saltar para fora em estertor final sob a chuva das granadas. A infantaria tentava chegar ao rio, mas os primeiros a molharem os pés ficaram logo a boiar inertes e só não iam para o fundo porque não tinham capacetes de aço e a profundidade era pouca. A noite chegou sem que Carlos e o restante pessoal nacionalista conseguisse atravessar o riacho. A guerra foi a descanso e no dia seguinte, muito cedo, pela manhã. recomeçou com um ritmo primeiro lento de tiro parado para de seguida recomeçar a ofensiva nacionalista. Carlos e Benito dormiram junto ao muro, enquanto os outros abrigaram-se mais para trás sob o arvoredo do parque. Os tanques já eram em menor número e voltaram a ficar no riacho, a nova ofensiva ainda foi mais débil, mas deixou mais mortes e feridos no talude.

     O próprio coronel Castejón, o comandante da coluna, resolveu inspeccionar a zona logo abaixo do Cerro das Gabaritas e levou um tiro num pulmão. Carlos chorava de medo e raiva, enquanto Benito e Adolfo, pálidos, tinham as calças todas sujas por dentro, o sargento Gomez ordenou que avançassem mais e à sua frente, procurando abrigar-se atrás dos corpos dos lusitanos. Subitamente, Benito leva um tiro quase no coração e fica estatelado, enquanto Adolfo recebe uma chuva de estilhaços de uma granada de mão e cai agarrado ao peito. António ficou com um enorme buraco na testa e olhos revirados para cima, enquanto o Manuel apanhava um bala no estômago e outra nos intestinos que começaram a sair para fora. Carlos não vê mais nada na sua frente, sentiu um impacto na cabeça, a escuridão apoderou-se das suas retinas, o dia deixou de existir. - Porra, morro que nem um porco sem ver mais nada - disse por fim. Morreram sós e cada um à sua maneira, havia ali uma morte para cada um.

 

 

Conto publicado pela Editora Lua Nova no Livro de Contos de Dieter Dellinger: A Morte de Cristo em Verdun.

Lua Nova: Av. Dr. José Pontes Nº 15 - r/c Dto / 2720-203Amadora

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publicado por DD às 18:33
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