Sexta-feira, 22 de Julho de 2005

Novela de Dieter Dellinger - Piotr, O Anarquista

 

PRELIMINAR

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Histórias, histórias, sempre histórias!

Para o contador de histórias, contador de tudo o que vê, ouve e lhe vem à cabeça, a pequena novela é, sem dúvida, o instrumento ideal. Até porque não bloqueia o quase impossível fim de uma obra mais vasta. Em termos de novela curta, "novela de corto plazo", como dizem os espanhóis, as histórias podem suceder-se numa aparente independência umas das outras, fazendo, contudo, parte de uma mesma narrativa romanesca. Aqui, é o avô a iniciar o périplo real ficcionista, seguir-se-ão outras histórias na sequência de um Século de vidas cada vez mais fantásticas, mesmo que inseridas na realidade. O final deste trabalho prefigura a ideia de continuidade, adiantando a novela seguinte, sem dar por finda a real ficção dos confins da Rússia siberiana às praias atlânticas deste Ocidente peninsular. E mais histórias para contar até esgotar a memória imaginativa. Histórias para ler de um trago e vistas cerebralmente sem interrupções para compromissos publicitários. Histórias da vida num Século que teve de tudo, no qual o fantástico saiu mais das fábricas da realidade que da mais imaginativa das mentes.

Enfim, histórias, histórias tão necessárias à mente humana, mas cada vez mais monopolizadas pelo meio televisivo que vai satisfazendo as necessidades em imaginário de todos os cidadãos, deixando para trás a palavra lida e, naturalmente, as histórias recriadas mais lentamente pelo leitor.

Aqui, o que se pretendeu foi contar uma história sem lições ou exemplos a seguir ou deixar de seguir. A personagem é múltipla na sua realidade fantástica a dizer que se pode ser isto ou aquilo sem temer os juízos de qualquer mundo. Juízos que deixam de ter cabimento neste fim de Século que permite a retrospectiva pensante e o juízo de que afinal tudo aconteceu, ninguém teve razão, ninguém ganhou, ninguém terá perdido totalmente, a não ser, infelizmente, milhões de vidas sacrificadas inutilmente às fúrias dos poderes instalados ou emergentes. O Século está a acabar na incerteza de talvez não ter deixado nada à imaginação do futuro. Nestes cem anos tudo terá sido vivido, escrito, dito, pensado e realizado, o pior e o melhor? Talvez? Esperemos que não.

publicado por DD às 01:26
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I. Capítulo da Novela de Dieter Dellinger - A Rússia

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Anton D. conviveu ao longo de um frio e penoso Inverno com o anarquista Piotr Ivaneivitch no degredo siberiano; foi um íntimo do seu espírito até se apropriar dele numa pequena e humilde barraca de toros de madeira, nas cercanias de Krasnoiarsk.

Desterraram-no para aí no verão de 1914 por ser um inadvertido e incauto cidadão de uma Alemanha que acabara de entrar em guerra com o enorme Império Russo.

De Kropotkine ou Furrier, o estrangeiro Anton D. nunca tinha ouvido falar, nem se preocupava com questões de natureza política. Vivia no Sul da Rússia, em Novocherkassk, a capital dos cossacos do Don, quase no Mar de Azov, essa pequena antecâmara de um mar maior, o Negro, mas bem pequeno quando comparado com os imensos e bravos oceanos do Planeta. Nasceu numa pequena aldeia de casas de madeira na Boémia alemã e emigrou para Moscovo depois de ter aprendido o ofício de mecânico-montador na Saxónia, numa fábrica de máquinas de moer cereais, onde fez com muito esforço o difícil exame de oficial da profissão. Trabalhou na fábrica durante algum tempo até lhe dizerem que na Rússia o respectivo representante necessitava de um técnico para orientar os trabalhos de montagem das máquinas.

- Aqui tu és só um operário, – disse-lhe o seu velho mestre, – mas com a tua idade podes ir para lá, mudas logo de categoria, passas a ser um técnico, quase um engenheiro, mais que um simples burguês, um nobre mesmo, sim um barão, eles dão esse título aos estrangeiros. Na Rússia, os engenheiros são praticamente nobres e tu, se fores bem vestido e deixares esses modos de proletário, entras na categoria alta, que mais não seja por seres um estrangeiro elegante e distinto. Olha, eles lá têm os mujiques analfabetos e umas grandes cabeças pensantes: filósofos, cientistas e escritores, mas entre uns e outros não há ninguém. Não têm gente com o nosso sentido do prático e da especialidade, que pouco sabe, mas bem. Tu és um rapaz esperto, até usas a régua de cálculo e sabes o que são os logaritmos, estudaste na Escola Superior Popular.

- Vai, o teu futuro está aí, no grande Império Russo.

Dito e feito, Anton D. aceitou a proposta do milionário moscovita, representante da sua fábrica para todas as Rússia, e depois das longas formalidades legais junto da embaixada russa em Berlim, tomou o comboio para Moscovo, a segunda cidade daquele imenso império, com a última edição do "Baedeker" para a Rússia debaixo do braço e um livro para aprender as primeiras palavras da língua e decifrar o complicado alfabeto eslavo. Anton D., apesar de ter sempre gostado de ler e completado a longa escola primária alemã, além de frequentar depois a Escola Superior Popular enquanto aprendiz na fábrica, mal imaginava que existiam outros alfabetos que não o latino e o gótico. Antes de partir, comprou dois bons fatos novos, um às riscas cinzentas e outro escuro aos quadrados, muito parisienses, como disse o vendedor, casacos assertoados e coletes bem cheios. Também adquiriu um espesso sobretudo com a ideia de que poderia mesmo assim não agasalhar o suficiente no frio Inverno moscovita. As duas gravatas de seda eram muito discretas e ficavam bem com o alfinete de pérolas e as camisas também de seda persa e com os dois chapéus de coco. Anton D. conseguiu ainda adquirir numa loja da especialidade uma vistosa bengala com cascão de prata e não esqueceu a metade do fio de ouro que o avô lhe deixara, a outra metade foi para o irmão. Gastou quase todas as suas economias e uns dinheiros que o irmão mais velho lhe emprestou.

Os pais de Anton D. eram extremamente pobres, pequenos agricultores quase sem terras. Tinham sido obrigados a vender parte das suas courelas por causa de uma grave doença de rins que afligiu em tempos o pai de Anton D..

Deixaram pois de ser pequenos proprietários com o suficiente para viver para serem quase que os párias da aldeia, obrigados a ceder a sua força de trabalho a quem pagasse. A mãe chegou a trabalhar na cozinha de um comerciante local, enquanto o pai tinha de negociar a paga diária com os nobres que lhe compraram as suas terras. Não fosse a nova escola primária instalada na sua aldeia e Anton D. nunca teria tido a oportunidade de entrar como aprendiz na grande fábrica de máquinas de moagem da Alta Saxónia e tornar-se um especialista.

Depois de chegar a Moscovo, Anton D. iniciou o seu trabalho na empresa de Alexandre Vassiliévitch, um riquíssimo comerciante, quase enobrecido com o título de "cidadão notável hereditário". Este não se deslocou à estação para receber o "proletário" da Boémia, mandou simplesmente o seu cocheiro privado, um homem "monossilábico" de cabelo muito grisalho; só dizia "da", sim, e "niet", não, além de "gaspadin", senhor, de vez em quando.

Quando Alexandre Vassiliévitch viu Anton D. elegantemente vestido com a régua de cálculo no bolso superior do casaco ficou deveras impressionado. Ainda por cima, o mecânico tinha boa presença, sem ser demasiado alto, não era baixo, magro com cabelos quase louros e uns bigodes recurvados muito ao estilo "fim de século". O russo deverá ter dito para o seus botões, eis um estrangeiro que ainda pode vir a ser barão, já que dão este título aos de fora e connosco limitam-se ao pouco esclarecedor "cidadão notável".

Anton D. começou logo por colocar os seus dotes de liderança ao serviço da empresa do milionário, comprometendo-se a treinar um grupo de montadores e afinadores das máquinas enviadas da Alemanha para equipar as novas fábricas de moagem que se estavam a construir um pouco por toda a parte. Depois das suas poses de grande técnico, Anton D. reparou que impressionava ainda mais os russos, o facto de ele ser capaz também de despir o casaco, arregaçar as mangas e vestir uma bata para mexer nas peças oleosas, apertar por ele mesmo as rodas dentadas, verificar a tolerância e afinar tudo. Para além de ser essa a sua tarefa natural e as poses não o fazerem esquecer a sua condição de operário, Anton D. fazia isso porque, por um lado, não acreditava que os auxiliares fossem capazes de o fazer e, por outro, achava que talvez não fosse boa política ensinar demasiado, poderia sair prejudicado.

Viajou muito por toda a Rússia, Anton D.; nos seus caminhos de ferro eternamente em linha recta, quase sem parar nas pequenas e médias cidades. Sentiu assim o incómodo dos longos trajectos em caleche por caminhos abertos ao acaso entre as estações e as cidades nas estepes lamacentas na primavera e poeirentas no verão. Isso levou-o a considerar indispensável abrir uma sucursal no Sul do Império, perto de Rostov, que abrangesse as grandes planícies seareiras entre os rios Dnieper, Don e Volga. Depois de um período de vários meses no Sul em que esteve a instalar algumas moagens novas, regressou com a proposta de instalar aí uma nova sociedade paritária com o milionário. Vassiliévitch, um homem cada vez mais ocupado com a multitude dos seus negócios, aceitou a proposta, tanto mais que na sua opinião já não seriam instaladas tantas novas fábricas de moagem como foram até à data na zona de Moscovo.

Anton D, estudou a fundo a língua russa e algumas das suas variantes dialectais, principalmente a ucraniana, dado deslocar-se com frequência às regiões entre Kiev e Odessa, muito ricas de trigo e, por isso, a necessitarem de fábricas de moagem. O seu primeiro professor foi mesmo um ucraniano, judeu de religião, o professor Moissei, um homem extremamente dotado para línguas, daí ser conhecido por professor. Ensinava então inglês e alemão em Moscovo, além do francês, hebraico e russo para estrangeiros. Queria amealhar algum dinheiro para emigrar para os Estados Unidos da América, fugido dos "progroms" que no sul do Império mataram o pai e afectaram os negócios da família. Moissei era um fanático da fonética, ensinou Anton D. a pronunciar tão bem os sons russos e ucranianos que o alemão chegava quase a passar por um natural, principalmente quando a conversação se limitava a poucas palavras. Depois, claro, vinham as dificuldades, mas com o tempo Anton D. adquiriu uma verdadeira mestria do russo, além de algo de ucraniano e um pouco das falas caucasianas. Ele gostava mesmo da língua russa e, por fim, pensava e até sonhava em russo, ou julgava que o fazia e acreditava na teoria de Moissei que dizia que uma língua aprende-se com o ouvido e que os seus ossículos se alteram com as variações do campo magnético terrestre, daí existirem dialectos e pronúncias diferentes conforme as coordenadas geográficas do lugar em causa.

Dois anos depois de chegar a Moscovo, Anton D. tornava-se sócio da filial da empresa de Vassiliévitch no sul da Rússia. O seu antigo patrão e agora sócio moveu rapidamente as influências necessárias para que se inscrevesse na primeira guilda dos comerciantes e na "tsekh" dos que trabalhavam com o estrangeiro. Anton D. subia enfim na vida; de humilde membro das classes urbanas por via da condição de artífice passou logo para a primeira guilda que lhe proporcionava mais consideração social, o que compensava o pesado imposto que foi obrigado a pagar. No fundo, a questão da consideração social era só consigo mesmo, já que a sua qualidade de estrangeiro levava a que ninguém à sua volta se preocupasse com a posição de Anton D. naquela invisível mas real escala de valores determinantes das classes sociais. Sob o ponto de vista social, o Império não era mais do que uma terra de ninguém para estrangeiros vindos do ocidente europeu. Ou antes, ser estrangeiro era já uma posição social em função do respectivo país de origem; no topo estavam os franceses, ingleses e alemães, estes já um pouco distanciados, dado existirem muitos cidadãos de origem germânica a exercer profissões humildes como a de camponês nos colonatos fundados por Catarina a Grande ou padeiro em S. Petersburgo. Talvez os alemães estivessem mesmo abaixo dos italianos, isto porque estes eram só conhecidos pelos arquitectos e artistas que apareciam ao serviço da corte imperial. Depois vinham os restantes europeus e em último lugar os turcos e afins, inimigos ou súbditos, mas sempre desconsiderados.

- Isto de condição social, nobrezas, burguesias ou proletariado são questões reais, mas despidas de verdade, disse-lhe um dia o milionário. - Mais não são que poses, assunção de papéis, por isso nunca me interessei verdadeiramente em tornar-me nobre. Prefiro ser o que sou e até contribuo bastante para os cadetes, os homens do nosso Partido Constitucional-Democrata que lutam por uma Rússia democrática sem nobres e de vez em quando dou uns rublos aos sociais-democratas.

Olha, Anton D., lá em baixo em Novocherkassk, aconselho-te a arranjares uma espécie de guarda da oficina e armazém e indico-te um nome adequado. Trata-se de um bandido, um misto de assaltante e político, trabalhou para a minha família em tempos, por isso estávamos a salvo. Os seus companheiros ou camaradas ou sei lá o quê, assaltam os outros e respeitam aqueles que lhes pagam mensalmente. De resto, vê bem, qual a diferença entre um bandido e um homem dito sério e proprietário de muitos negócios ou um nobre do aparelho do Estado? Nenhuma, nós é que somos todos assaltantes.

O milionário Vassielévitch era na verdade uma figura peculiar daqueles anos do princípio do Século na terra dos Romanov. Veio do nada, como se poderá dizer, o pai foi um bufarinheiro, um mercador ambulante "korobeinik" que andava de aldeia em aldeia a vender um pouco de tudo; sempre fugido às dívidas deixadas pelo avô de Vassielévitch. No esplendor do seu belo apartamento da Rua Tverskaia, a dos grandes estabelecimentos e prósperos comerciantes que desemboca na Praça Vermelha, Vassielévitch contou a Anton D. a sua história num dia em que o convidou para um lauto jantar, regado com o melhor "Bordéus", antecipado por um generoso vinho da Crimeia.

Fê-lo com o indisfarçável orgulho do homem que se fez a si mesmo e com o desprezo que sempre teve pelas nobrezas e classes sociais ligadas ao Estado com as quais nada tinha a ver. Limitava-se a comprar funcionários corruptos sempre que fosse necessário. Até tinha dinheiro para comprar nobres, o que lhe dava um infinito prazer e aumentava o seu desprezo profundo por todas as aristocracias.

- Se o meu pai era um mercador de caixa ambulante, a "korob" como lhe chamamos, não imagina, Anton D., o que foi o meu avô! Um escravo doméstico, um "dvorovié", propriedade de um nobre dos arredores de Moscovo, um criado, cocheiro, porteiro e sei lá o que mais? Quando veio a libertação dos servos, o meu avô não teve condições para deixar de ser o que era. De resto, o único ganha-pão dos servos, os da gleba, era a terra, mas tinham de a pagar por quase toda a vida; mantiveram assim a velha servidão, paga como que a prestações até à hora da morte. O meu pai não quis seguir essa vida, foi trabalhar para um talhante, dono de um pequeno talho em Roslavl, onde naturalmente roubava o que podia, tanto aos clientes como ao patrão sempre que este se ausentava para comprar gado. Depois de amealhar assim um pequeno pecúlio que serviu de capital inicial, pôs-se a caminho, percorreu caminhos intermináveis com o seu cavalo e um carro atrelado cheio de mercadoria. O meu pai quase sempre caminhava ao lado para não sobrecarregar o rodado. Sei lá o que ele vendia? Parece que de tudo, desde as chitas aos ícones mais sagrados e benzidos por todos os santos bispos. Sabe, nós na religião ortodoxa temos mais santos que todas as religiões do mundo juntas, provavelmente quase um cento por cada dia do calendário - dizia Vassielévitch, rindo-se muito. Mais ainda que as outras confissões cristãs, a ortodoxa é uma religião de bonecos e bonecas, acrescentou.

- Então e o Vassielévitch como é que começou a sua vida de trabalho? Perguntou a dada altura Anton D.

- Comecei aqui mesmo em Moscovo, o meu pai tinha-se cansado das andanças e instalou uma pequena tenda no campo Dévitchi, uma barraca que vendia um pouco de tudo em matéria alimentar e, em certas épocas do ano, quando do Carnaval moscovita, ia instalar outra tenda nos cais do Moscova. Enfim, não andava de terra em terra ao longo de centenas ou milhares de verstas, mas circulava com a sua tenda de uma zona da cidade para outra, conforme a ocasião. Eu, nunca gostei dessa vida, apesar de ser obrigado a ajudar o meu pai quase desde que nasci, suponho. Nem me lembro, obviamente, quando comecei. Mas, o meu pai morreu relativamente cedo e eu empreguei-me numa loja de fazendas. Praticamente não fui à escola, tinha aprendido primeiro a ler com a minha mãe e depois com uma ou outra pessoa que de vez em quando arranjavam para me ensinar, e mais nada. Mesmo assim, chegou para medir os tecidos e calcular os preços. Apesar de toda aquela vida miserável, o meu pai ainda deixou uma quantidade apreciável de ouro, não muito para os dias de hoje, mas bastante naquela época em que eram ainda poucos os comerciantes endinheirados. Com esse capital fiz-me sócio de um importador de máquinas e ferramentas inglesas, belgas, francesas e alemãs.

Anton D., que tinha a consciência de ser um actor ou mimo de um papel que escolheu interpretar naquilo que denominavam de sociedade, sentiu-se de algum modo justificado. Afinal, não era sempre necessário ser o que não se é, também se pode ser um proletário ou um bandido, conforme o lugar a que se chegou ou, simplesmente, um intérprete bem sucedido num papel previamente estudado.

publicado por DD às 01:19
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Capítulo II da Novela de Dieter Dellinger

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Apesar de se ter relacionado com algumas jovens e bonitas moscovitas e ter mesmo tentado a sua sorte junto da filha do patrão, não teve grande êxito na sua vida amorosa; não era propriamente um galã, além de que tinha tido uma vida pouco ou nada sedentária, sempre viajando pelo território russo. Por isso, quando conheceu Olga, uma jovem viúva filha de alemães, Anton D. não esteve para meias medidas e pediu logo a linda Olga em casamento, radiosa como estava de regresso de uma cura em Meran, junto à costa do Adriático no Império Austro-Húngaro. Olga tinha sido um pouco fraca dos pulmões, mas aparentava uma cura quase completa, o seu casamento durara menos de um ano, o marido sucumbiu a uma tuberculose que irrompera subitamente pelos seus pulmões logo após o primeiro mês de casamento e do regresso da viagem de núpcias a Riga, no Báltico russo de então.

A estadia no soalheiro Adriático fizera esquecer o curto matrimónio e o sacrifício de tão jovem ter tido um marido quase sempre acamado à espera de uma hora que não podia ser mais do que breve e fatal. Ainda com pouco mais de vinte anos, Olga irradiava uma beleza bem visível nas muitas fotos que deixou aos filhos e estes aos netos que acabaram por se instalar bem longe daquelas terras, precisamente na parte mais ocidental do continente euro-asiático.

Conheceram-se em Novatcherkass, pequena cidade cossaca onde o pai de Olga, um cidadão russo de etnia alemã, mantinha um negócio de cereais e sementes, além de participar numa pequena fábrica de moagem na qual Anton D. instalou uma nova máquina. O jovem mecânico foi convidado para jantar na casa dos seus quase compatriotas e depois do repasto, a filha ofereceu-se para mostrar o jardim e a paisagem escura, tenuemente iluminada pelas estrelas que se reflectiam nas águas então calmas do Don. Passearam mais de duas horas num entendimento que não podia deixar de ser amoroso logo nos primeiros momentos. O namoro foi como que instantâneo. Anton D. apaixonou-se pela viúva que no dia seguinte o foi visitar ao anexo em que estava instalado, -só para saber se está confortavelmente alojado – disse-lhe. Ao mesmo tempo que dava uma resposta afirmativa, Anton D. puxou-a cuidadosamente para si, beijando-a primeiro com muita cerimónia na face e depois com o ardor da paixão nos lábios, a viúva recuou um pouco mas acabou por não esboçar qualquer movimento de defesa ou recusa, aceitou com calor os beijos de Anton D. sem pronunciar a mais pequena palavra. Depois disse - tenho de ir, se continua assim ainda vão reprovar o comportamento da viúva Olga Alexandrova. Mesmo assim, Olga continuou a ir verificar diariamente o anexo para que tudo estivesse em condições, fazendo-o sempre que Anton D. lá estava, pouco antes do jantar. Aos beijos de Anton D., a viúva respondia com os seus; foi um namoro ardente e curto, seguido de um casamento cheio de paixão.

Um pouco antes de se darem os acontecimentos revolucionários de 1905, Anton D. casou-se pois com a bela viúva. Instalaram-se nos arredores de Novocher-kassk; o sogro participou também no capital da empresa então criada que não teve grande dificuldade em singrar, dada a capacidade de Anton D. para montar os equipamentos oriundos da Alta Saxónia. A vida continuou quase monótona até toda aquela região ser tomada pela febre revolucionária em consequência da derrota do Império Russo frente ao Japão. Quando das grandes greves revolucionárias subsequentes, a moradia e o armazém de Novocherkassk, habitado pelo casal D., iam sendo queimados pelos pobres mujiques em greve insurreccional, precisamente na altura em que tanto Anton D. como o guarda revolucionário estavam fora. Anton reparava uma máquina de moer, enquanto o guarda se ocupava com a alta política do país. Olga Alexandrovna resoluta veio à porta quando ouviu baterem com força. Pelo ruído anterior adivinhava o que se tratava, pelo que se precaveu com a pistola bem carregada do marido, abriu a porta e saiu energicamente fechando-a logo atrás de si, a dar a entender que não tinha medo de nada nem de ninguém. Sacou a arma e apontou para o céu, disparou um tiro e depois outro.

O pessoal ficou como que espantado ao ver a furibunda e bela senhora de pistola em punho. Olga ainda viu um homem com um archote, apontou-lhe a pistola. De imediato o archote rolou pelo chão e o cidadão escapuliu-se com quanta força tinha nos pés. Os outros acompanharam-no depois de uns momentos de indecisão. Os anos que se seguiram foram de calma aprazível e de nascimento de alguns filhos.

A Grande Guerra rebenta inesperadamente para Anton D. que nunca pensou ser possível que povos ditos civilizados pudessem de um dia para o outro iniciar a mais desmesurada carnificina de entre as muitas que a História regista. O conflito põe fim à sua confortável vida de endinheirado técnico e importador de equipamentos alemães para fábricas de moagens, tão abundantes naquela região que mais do que o celeiro da Rússia era então o grande celeiro da Europa. Pelo vizinho porto de Rostov, já na foz do Don, os sacos de farinha de trigo eram carregados nos navios que zarpavam daí para a maior parte dos países europeus.

Dias antes de eclodir o conflito, Anton D. achou que a mobilização em massa de todas as classes de cossacos não passava de uma manobra política de diversão, pelo que seguiu para Taganrog para reparar o avariado moinho do judeu Bernstein. Disse para um dos seus ajudantes que a crise entre os dois impérios não passava de uma pequena rixa de família, ou não fossem primos os dois imperadores. Já tinha substituído as correias de transmissão e regulado os cilindros de rodas dentadas, depois de verificar que a máquina a vapor de 10 Cavalos e tríplice expansão funcionava convenientemente, quando foi abordado por três cossacos uniformizados que a toda a brida chegaram ao pátio da fábrica, passando pela longa fila de carros de madeira puxados por juntas de bois e carregados com o bom trigo estival das estepes de entre o Don e o Dniepr. Ambos empunhavam de uma maneira quase ameaçadora as suas espingardas curtas de cavalaria "Dragoon" de calibre três "linhas", mantendo à cintura as "chachkas" curvas e bem afiadas, prontas a degolarem o pescoço mole de alguém que se apresentasse pela frente na qualidade de inimigo.

Pesadores e peneireiros esperavam que Anton D. e os seus ajudantes terminassem a reparação para retomarem a faina, pois estava-se em pleno fim da colheita, o cereal tinha de ser moído e vendido para que tanto as famílias cossacas como os patrões dos mujiques voltassem a ter dinheiro para viverem e prepararem as próximas sementeiras. Muitos vieram de mais de cinquenta verstas de distância e esperavam havia dias pela vez. Naquele ano não se registaram as habituais brigas entre os cossacos e "mujiques". Os mais brigões estavam já mobilizados e em vias de se envolverem numa luta bem mais séria que a tradicional entre os orgulhosos cossacos e os "inferiores" mujiques.

Os uniformizados deram ordem para que Anton D. viesse com eles. Admirado e ainda com as mãos sujas de óleo, ainda perguntou a razão de tão intempestiva abordagem.

- São ordens de muito de cima, do nosso vice-Ataman – responderam-lhe.

Descontraiu-se, era muito amigo do adjunto do general e governador do distrito, pelo que deveria ser algum favor que lhe pedia, talvez um moinho mecânico de algum parente avariou-se novamente.

- Tenho de ir imediatamente – disse ao judeu Bernstein que praguejou danado por ver que a reparação não ficava de todo terminada.

- Deixo-lhe os meus ajudantes que são capazes de voltar a pôr isso tudo a funcionar – e quase sem se despedir seguiu os uniformizados até Novotcherkassk na sua habitual e ligeira caleche que naquelas estradas poeirentas das estepes circulava melhor que o já velho "Mercedes Simplex" com portas laterais.

Em pouco tempo percorreram a galope as vinte verstas que os separavam de Novacherkassk, passando rapidamente pela praça central, bem junto à estátua de Iermark Timoteievitch, o herói cossaco que no século XVI conquistou a Sibéria para o Império do Czar. Os sinos tocavam festivamente e quase todos os edifícios públicos estavam engalanados com a bandeira russa, amarela e branca com a águia negra ao centro. Por toda a parte, cossacos armados e uniformizados pareciam correr apressadamente no maior caos possível. Tudo aquilo deixou Anton D. intrigado, "que teria passado?", pensou. Durante o percurso nada lhe disseram. Rapidamente desmontaram; já no interior do edifício apontaram-lhe uma pequena saleta, onde estava o "sotnik" (tenente) Alexeiev que Anton D. reconheceu como sendo um dos ajudantes do vice-Ataman, o general Bogaievski, e que o deixou um pouco transtornado já que esperava ver o próprio vice em pessoa. Alexeiev disse-lhe que estava detido e teria de ser deportado para a Sibéria. Estupefacto, perguntou a razão de tal detenção.

- Então, não sabe que os nossos países entraram em guerra e recebemos ordens para prender e deportar todos os cidadãos alemães e austríacos.

Anton D. caiu em si, percebeu então o motivo de tanta agitação na cidade e pensou que nessas condições pouco podia fazer, limitando-se a dizer: - Mas eu não me considero um inimigo do império russo, antes pelo contrário e nada tenho a ver com o que os governos fazem.

- Sabemos isso. Bem vê, não somos nós que mandamos, posso mesmo dar-lhe a escolher entre ir com os restantes deportados para Ufa ou levar uma guarda pessoal numa carruagem de primeira classe para Krasnoiarsk, é mais distante, mas fica como que em liberdade a viver numa aldeia das cercanias. Vai-lhe custar uns rublos, mas ficará muito melhor.

- Eu quero é falar com o general Bogajevski, respondeu Anton D., a ser deportado preferia ir para Nikolaiev no Amur, junto ao Estreito da Tartárea no Extremo Oriente, aí posso negociar com os Estados Unidos, já que a esse porto chegam escunas norte-americanas com produtos que podem ser úteis ao Império, levando depois as ricas zibelinas siberianas para enfeitar as donas nova-iorquinas.

Anton D. sabia que os oficiais do vice-Ataman eram mais do que corruptos, o que não era o caso de Bogaievski. Por isso, predispôs-se logo a fazer uma rica oferta ao tenente que de seguida o tratou principescamente, colocando à sua disposição dois guardas para o acompanharem a casa e dentro de alguns dias viajarem com ele no comboio vermelho, como era então designado o luxuoso trem que saía de Rostov para o norte. O tenente passou-lhe uma guia, ordenando a residência fixa nos arredores de Krasnoiarsk durante o tempo em que durar o conflito. Depois, Anton D. poderá seguir para Nikolaiev no Amur e dedicar-se a qualquer actividade comercial, dizia ainda a guia ou para outro local a autorizar. No quartel-general do Ataman pensavam que a guerra não poderia durar mais que aquele espaço de tempo e que a vitória estaria assegurada.

Quando chegou a casa, Anton D. fez uma boa oferta pecuniária aos guardas e ofereceu-lhes uma lauta refeição. Fizeram-lhe a continência e passaram a tratá-lo de Vossa Nobreza como se fosse um superior hierárquico.

Dois dias depois, despediu-se da sua mulher Olga e dos filhos, todos russos de nascimento, portanto insusceptíveis de sofrerem as agruras de uma deportação e escreveu uma carta ao general Bogajevski para lamentar profundamente que o seu país estivesse em guerra com a Rússia que tanto amava, apesar de estrangeiro. Vestiu o seu melhor fato de verão e, pelo sim pelo não, arrumou umas roupas quentes nas malas. A seguir ordenou aos guardas que partissem para a estação, no que foi acompanhado pela família e alguns dos seus empregados. Os guardas estavam muito contentes por acompanharem na longa viagem para Krasnoiarsk um personagem tão importante sob o ponto de vista deles, pobres cossacos com algumas leiras de terra. Sempre seria melhor do que ir para frente. Anton D. disse-lhes isso, ao mesmo tempo que elogiava o seu patriotismo, acrescentando: - Para morrer há sempre muito tempo, não é preciso ser-se apressado, apesar do entusiasmo que reina por toda a parte.

"Os longos anos de uma paz que afinal não era tanta assim e os regimes caducos criaram nas pessoas", observava Anton D. para consigo, "a ideia que a guerra seria enfim a tão esperada válvula de escape. Vão pois alegremente para a morte ".

Anton D. fez-se ainda acompanhar por dois empregados da sua empresa de importação; o contabilista que o deveria deixar em Moscovo e um dos fiéis do armazém, um robusto mujique que Anton D. fez subir na vida, passando-o de criado de lavoura para empregado de armazém. Assim, no meio de dois russos mais ou menos bem vestidos, Anton D. viajou no trem vermelho, ocupando para si e para os seus acompanhantes todo um discreto compartimento. Temia ser identificado como estrangeiro naquele comboio de luxo no qual pareciam viajar os oficiais dos Estados-Maiores de todas as divisões e exércitos da Rússia Imperial. O entusiasmo patriótico era imenso; os jovens alunos das escolas militares, os "Junkers" e Cadetes, cantavam hinos patrióticos por entre as mais disparatadas baboseiras típicas de humanos de todas as nacionalidades em situações daquele tipo. Quanto mais pretendiam ridicularizar os "Fritz", mais Anton D. temia ser desmascarado como estrangeiro e tornar-se vítima de alguma bravata impensada dos belicosos jovens. Para evitar isso, dava lautas gorjetas aos empregados da carruagem, todos vestidos de calças tufadas escuras e camisa russa, além de botas pretas e um boné com uma pequena pala. O compartimento continha dois bancos largos com encostos móveis, tudo susceptível de ser transformado em quatro camas para passarem a noite. Anton D. viajava como se fosse uma personalidade importante acompanhada por ajudantes e guarda-costas.

Em Moscovo, Anton D. convenceu os guardas a irem com ele ao consulado da Suíça onde pensava adquirir um passaporte de país neutro. Prometeu uma importante quantia e disseram-lhe logo que no prazo máximo de seis meses teria o passaporte de cidadão helvético, já que seria emitido em Berna e com a guerra as comunicações estavam muito dificultadas. O contabilista ficou encarregue de voltar ao consulado e levar-lhe o passaporte a Krasnoiarsk.

Depois, dirigiram-se rapidamente à estação do Transiberiano para o tomar e seguirem numa longa e monótona viagem até Krasnoiarsk, em plena Taiga siberiana, a pouco mais de 500 verstas do lago Baikal de águas profundas, negras e frias.

Foram dias perdidos para Anton D. no comboio que lentamente galgou os Urais para se precipitar na imensa planície siberiana em direcção ao Oriente. Anton D. dormia ou conversava com os passageiros. As composições que circulavam em sentido contrário vinham pejadas de militares uniformizados; de todos os cantos do Império afluíam em direcção ao ocidente milhões de cidadãos inadvertidos, muitos dos quais ficariam para sempre enterrados nas planícies polacas e ucranianas.

Jovens soldados entravam nas mais diversas estações para sair noutras a seguir; oficiais na primeira classe e burgueses das mais diversas profissões, soldados e mujiques na terceira classe, enquanto Anton. D. tentava ser discreto no meio dos guardas e do seu empregado. Ordenou-lhes mesmo que se afastassem um pouco para não se saber que ia preso. A dada altura, os guardas foram para a plataforma, enquanto Anton D. seguia calmamente num dos compartimentos como se fosse um qualquer comerciante em busca de negócios. Com o avanço do trem, os guardas descontraíam-se cada vez mais, a possibilidade de fuga de Anton D. era tida como remota; a Sibéria era a prisão ideal com a imensa tundra e os bosques quase impenetráveis a servirem de muralhas de uma fortaleza sem fim.

O percurso de quase 4 mil verstas nunca mais chegava ao fim, interrompido por numerosas paragens. Mas, tudo tem de ter um fim, e ao cabo de semanas de viagem, o transiberiano chegou a Krasnoiarsk. Para Anton D. foi um alívio, nos primeiros dias daquele mês de Agosto fez um calor quase insuportável por toda a parte; de Novocherkassk a Moscovo e até nos Urais e em plena Sibéria, mas em Krasnoiarsk os dias estavam mais frios. Agosto terminaria em breve para dar lugar a Setembro; com ele vinha lenta e discretamente o longo "Inverno" siberiano em que os mosquitos morriam, deixando as suas larvas; no intervalo apareceriam as moscas e depois ficaria só o ar frio até quase ao fim da primavera.

 

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Capítulo III da Novela de Dieter Dellinger - A Sibéria

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Krasnoiarsk achava-se nas margens do Ienessei, o rio que nasce nas montanhas banhadas de sol da Mongólia e leva ao Ártico o calor e a vida. A cidade vive rodeada de uma espessa floresta de bétulas, cedros e faias. No verão, os habitantes vão à floresta colher as bagas dos cedros e os morangos silvestres, tão abundantes aí. Abrigam-se frequentemente nas enormes "cabanas" formadas pelas raízes de gigantescos cedros abatidos por temporais ocorridos há muito tempo. Aproveitavam também a resina dos cedros que dava um excelente combustível.

Logo que chegou, ainda acompanhado pelo seu empregado e ex-mujique, Igor Igorovitch, além dos dois "leais" cossacos, Anton D. dirigiu-se à casa da autoridade policial, o "ispravnik", comissário de polícia, responsável pelo seu degredo siberiano ordenado pelo Ministério da Guerra. Já lá tinha chegado um telegrama do tenente adjunto do vice-Ataman a recomendar Anton D., pelo que lhe disseram logo que estaria mais ou menos livre, mas deveria habitar nas imediações da cidade. Na primeira aldeia, a poucas verstas de Krasnoiarsk, haveria alguém que lhe alugaria uma cabana de toros de madeira.

Os guardas receberam guia de marcha para o regresso, tal como Igorovitch que não tinha autorização para ficar. Anton D. despediu-se dos companheiros de viagem e numa das ruas da cidade pediu a um camponês que o transportasse para fora no seu carro puxado por duas mulas, ofereceu uns kopeks e foi tratado com amizade. Quando viu o siberiano com o filho, Anton D. ficou na dúvida, os dois vinham vestidos de farrapos, nos pés traziam uma espécie de sapatos envoltos em polainas de casca de árvore nas quais entravam as calças tufadas. Os casacos estavam rotos e cobriam parcialmente as imundas camisas balalaicas. Ambos ostentavam bonés de pala muito amarrotados e umas cordas à cintura terminadas por uns paus pontiagudos. Só quando os viu a manobrar o carro com as mulas é que se atreveu a pedir-lhes transporte. Depois de atravessar as ruas estreitas de Krasnoiarsk, lamacentas até mais não com um estrado de madeira ao centro para os transeuntes, o camponês dirigiu-se à aldeia de Bougutchani, nas margens do Isentasses, a sul de Krasnoiarsk. Era uma aldeia mista de pescadores, garimpeiros de ouro e caçadores. Pouco se semeava naquela zona rodeada de floresta, mas esta proporcionava um certo afluxo de bens, desde a madeira à caça, passando pelos frutos silvestres. O camponês levou-o a casa de uma velha senhora que lhe podia alugar uma pequena "Isba" ali nas redondezas. A senhora fazia chá quando Anton D. bateu à porta. Logo lhe ofereceu um copo do precioso líquido saído directamente do "Samovar" que ali a meio da sala fumegava com energia. Zida Vassielenova, como se chamava a anciã, respondeu lentamente à pergunta de Anton D. quanto à possibilidade de lhe alugar uma pequena barraca de madeira. Primeiro disse que não, depois talvez. Não sabia ao certo.

- Desculpe Zida Vassielenova. A senhora não sabe se a sua casa está vazia ou não?

- Sei que está livre, mas pode também estar ocupada.

- Mas como? Por quem?

- Pelo espírito de Piotr, suponho. Sim, pelo seu espírito, pois os espíritos das pessoas que se matam ficam no local onde cometeram o seu tresloucado acto.

- Ah sim, talvez – respondeu incrédulo Anton D.

- Olhe, Zida Vassielenova, com ou sem espírito, alugue-me a "Isba", eu sei entender-me com os espíritos, já os conheço de há muito. Da minha terra, na Floresta da Boémia.

- Bem, se é assim, alugo-lhe a "Isba", mas com a incumbência de arrumar os papéis e as coisas do Piotr e enviá-las para a casa dos pais em Kiev. Talvez consiga enganar o espírito e expulsá-lo daqui para fora metido no embrulho dos papéis do louco. Mas cuidado, para isso terá de enfrentar o espírito. Olhe, a única coisa que se tirou da casa foi o corpo de Piotr, o sangue ainda lá está, não toquei em nada, nem tive coragem para limpar a casa, nem de avisar as autoridades, já antes não ia lá, aquilo é casa assombrada, o meu filho e a minha nora também lá morreram. Foi só por causa desses papéis que não queimei a "Isba". A meu ver e do Pope, a única maneira de exorcizar o mau espírito que vive lá é queimar tudo. Já lá morreram três pessoas, duas das quais muito queridas para mim.

- Os meus sentimentos, Zida Vassielenova, e não se preocupe, eu limpo e tratarei de tudo, vou mesmo escrever aos pais do Piotr, como diz. Espero encontrar lá o endereço do rapaz. Ele era novo, quantos anos teria?

- Vinte e tal ou trinta.

- Estava no degredo por quê?

- Eu sei lá!

Disseram-me que fora condenado por falar de mais. Aqui, como não tinha com quem dar à língua, andava por aí a falar sozinho, até fazia discursos à noite na praça da aldeia. Parecia um louco. Sempre vestido de preto com um chapéu de pala negra na cabeça. Nem na taberna conseguia falar; aqui ninguém discute política e menos ainda a pessoa do nosso paizinho Czar.

- Já percebi, era um estudante, um intelectual republicano ou anarquista.

- Não sei o que ele era, mas muito bom da cabeça não deveria ser.

-Está bem, tome lá o dinheiro adiantado e dê-me as chaves da "Isba" e explique-me bem onde fica situada.

- No meio das bétulas lá para baixo, junto ao rio, – disse-lhe a velha Zida.

Anton D., nada preocupado com os espíritos, pegou nas chaves e pediu a um rapaz que entrara na casa de Zida para bisbilhotar o novo "convidado" da aldeia que o ajudasse a transportar as suas bagagens. Dirigiram--se ambos à cabana da velha Zida.

Ao entrar, Anton D. ficou um pouco desorientado com a desarrumação e as manchas negras que cobriam parte do soalho. Era uma "Isba" tipicamente siberiana, feita grosseiramente em toros de madeira escura com telhado de tábuas finas cobertas de musgo verde. Tinha um alpendre no minúsculo quintal. As suas pequenas janelas vidradas davam para o lado do rio com caixilhos a evidenciar ainda o que resta de uma antiga pintura azul e violeta. Era constituída por uma única divisão com um nicho que fazia de cozinha e casa de banho. A meio da barraca, encostada à chaminé, jazia, muda e fria, uma imensa lareira russa.

- No Outono, toda a gente vem aqui colher bagas de cedro; antes de Setembro não aparece ninguém, – disse-lhe o rapaz, continuando – mas se descer até à margem do rio e seguir para norte encontrará as "Isba" dos pescadores da aldeia que agora não pescam por já não haver peixe. Se comprar uma espingarda ainda pode caçar pássaros e outros animais, mesmo gamos e galos de mato. No Inverno aparecem por aí alguns ursos. Anton D. despachou o rapaz com algumas moedas, agradecendo as explicações do jovem cicerone. Abriu a porta e procurou instalar-se o melhor possível. Acendeu dois candeeiros a petróleo e observou que havia velas e alguma lenha seca, além de água. Tudo bem, pensou, vamos aquecer água e preparar o chá que trago de casa, vou pôr o "Samovar" a aquecer. Amanhã compro na aldeia alguma coisa para comer ou vejo se há alguém que possa cozinhar para mim. Entretanto, tenho de arrumar e limpar um pouco esta porcaria toda. Olha tanta papelada e diários mesmo. O suicida escrevia diários, está visto. No dia seguinte, Anton D. levantou-se cedo, veio para fora, a manhã estava fresca. Queria observar a paisagem, ver de perto os imensos cedros que o rodeavam. "São árvores extraordinárias", pensou, "de ramos largamente estendidos, eternamente verdes".

Durante a noite, tinha ouvido os esquilos a saltarem de árvore em árvore, enquanto os "quebra-nozes" largavam gritos agudos. Agora de manhã, Anton D. deleitou-se com um bando de piscos de pescoço carmim a voar por cima da copa das árvores. Por entre as bétulas, irrompeu uma legião de pintassilgos. De vez em quando, uma lebre revolteava-se entre os troncos. "Tenho mesmo de comprar uma caçadeira", disse Anton D. para consigo, "há aqui muito para caçar. Não sei se posso? Mas se perguntar dirão logo que a minha condição de deportado não permite a aquisição de uma arma de fogo; se não perguntar, ninguém dirá algo, pelo que será como que legal".

Só passados uns dias, depois de colocar tudo em ordem na sua "Isba" e de a limpar devidamente, além de consertar uma série de coisas desarranjadas e de mandar mesmo pintar o seu interior pelo artesão Savin que fazia de tudo na aldeia, é que Anton D. descansou e começou a tarefa que lhe incumbiram. Deveria encontrar o endereço do seu antecessor na "Isba", arrumar os papéis e outros pertences num grande embrulho e enviar tudo pelo correio para a casa dos pais com a informação sobre a sua morte.

Antes de iniciar o trabalho que se propusera fazer, fizera-se amigo do velho Savin, um homem sábio da aldeia, mas triste e decepcionado com a vida que levava. - Sabe – disse-lhe um dia, – eu não faço como o anterior habitante da Isba, o Piotr, que acusava o Czar de todos os males deste mundo e do outro. Não, o que está mal é esta imunda Sibéria com o seu eterno ciclo, mosquitos-lama-frio. No Verão temos o rio e os mosquitos, no Inverno a neve e o gelo, nada mais. Nunca tive condições para visitar as grandes cidades. Para além de Krasnoiarks, não conheço mais nenhuma cidade.

Uma vez instalado na Isba arrumada e pintada como Anton D. achava que deveria ser, deixou-se levar pela curiosidade e começou a ler os papéis de Piotr Ivaneivitch, interessando-se muito pelos seus diários. Aparentemente eram três os diários que o autor denominava de "diários de bordo", se bem que raramente Anton D. encontrasse lá algo relacionado com navios. Só na descrição de uma viagem a Odessa é que pôde ler as observações de Piotr a respeito do Mar Negro e dos navios que frequentavam aquele porto ucraniano do sul do Império. Mas, nunca conseguiu encontrar um endereço da personagem, só várias referências à rua que habitava, em Kiev, na cidade das cúpulas douradas das margens do Dnieper, na cidade velha junto à colina de Petschersk. Anton D. pensou que seria capaz de encontrar o paradeiro dos pais de Piotr se fosse a Kiev, principalmente porque ele faz uma descrição da urbe, escrevendo: "Mais que uma cidade, Kiev é formada por três cidades diferentes, cada uma com o seu carácter próprio: a cidade moderna atravessada pela grande avenida Kreschatik, a cidade velha sobre a colina de Petscherks e o Podol, a cidade junto à montanha, um bairro pitoresco e comercial nas margens do Dniepr. Eu moro na rua que desce para o Podol, numa casa de primeiro andar com porta directa para a rua e um balcão vidrado por cima, sem que nas traseiras não falte um pequeno jardim, sempre coberto de neve no Inverno, mas é uma casa velha e decrépita, os meus pais não são ricos, não podem arcar com as despesas de reparação".

"Mas quando poderei lá ir? Só depois de a guerra acabar e, mesmo assim, sei lá quem vai ganhar e o que vai acontecer ainda", pensou Anton D. " Que estupidez a minha ter-me deixado apanhar assim sem mais nem menos. Porque emigrei, porque não liguei a vários escritos que anunciavam uma guerra entre todas as nações militaristas? Está bem, emigrei e estou agora aqui a pagar o abandono da pátria e dos pais, mas vivi muito bem. Na minha aldeia nunca seria nada na vida, não havia lá espaço físico e social para os novos, aquilo é tudo dos velhos ricos e nobres. Mas, na Rússia é outra coisa, há espaço físico, faltando só as pessoas inovadoras e optimistas, como eu, que também são desprevenidas, como é evidente. Desprevenido? Não, não tanto, estrangeiro, sim estrangeiro, um cidadão que não percebe bem o que se passa à sua volta" - desculpou-se Anton D. consigo mesmo, acrescentando: "Há qualquer coisa em cada país que só é acessível aos naturais, que mais não seja pelas amizades de infância e pelo conhecimento de pormenores comportamentais que a um estrangeiro passam despercebidos, mesmo quando consegue adquirir um pouco do espírito da língua como acontece comigo."

Já com a sua "Isba" em ordem e depois de ter conseguido acender a lareira, Anton D. aproveitou uma manhã solarenga para ir ao local em que trabalhavam os pescadores. Adquiriu-lhes uma rede de rio e iniciou a sua faina piscatória que iria durar até que o rio se transformasse numa imensa camada de gelo. Olharam para ele com um olhar desconfiado e aparentemente cheio de dúvidas, adivinhava-se-lhes no olhar que ali estaria outra vítima do sortilégio da casa da velha Zida. A época era má para apanhar seja o que for, só no começo da primavera, quando os "taimen" da família das trutas sobem o rio, todos vermelhos e carregados de ovas, é que a pesca se torna extremamente compensadora, disseram-lhe os pescadores.

Dias depois, conseguiu comprar à sua senhoria a caçadeira do falecido filho com cinquenta cartuchos, prometendo-lhe um abastecimento constante em caça do mato. A velha viúva cozinharia depois o que Anton D. iria caçar ou pescar, e ele cuidaria sempre que ela ficasse com mais do que ele próprio comia. Logo no primeiro dia que foi comer à casa de Zida, esta cozinhou uma excelente "shi", sopa de couves amargas, e ofereceu-lhe um pouco de "kacha", farinha de trigo torrada. Do grande "Samovar", a velha Zida tirava continuamente água fervente para o chá. Ficou assim a conhecer a trágica história do filho e da nora de Zida, os primeiros habitantes da "Isba". Constou na aldeia que tinham descoberto um mina de ouro e num dia negro de Inverno alguém entrou na "Isba" e matou o casal, não sem primeiro os torturar terrivelmente, no intuito evidente de conseguir a localização da mina. Pouco tempo depois, um comerciante aburguesado registou junto das autoridades uma mina de ouro. Para Zida Vassielenova, o burguês foi evidentemente o mandante ou o próprio autor do crime, mas as suas relações com as autoridades judiciais e policiais de Krasnoiarsk eram excelentes, pelo que não resultaria a sua denúncia.

 

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Capítulo IV da Novela de Dieter Dellinger - Anton D. encontra o Espírito de Piotr

Siberia Capela.jpg

Depois do almoço cozinhado por Zida, Anton D. costumava regressar à "Isba", dedicando frequentemente a tarde à pesquisa dos diários do suicida. Queria compreender a razão do tresloucado acto, como também da sentença de desterro que lhe foi aplicada. "O rapaz escrevia bem e com uma letra legível", observou uma vez Anton D. para consigo, "pena é que não tenha deixado isto devidamente organizado por ordem cronológica, só aqui ou acolá é que há umas datas. A mais antiga parece ser a do julgamento e leitura da sentença. Obviamente, Piotr começou a escrever muito cedo, vejo aqui papéis que revelam novelas talvez inacabadas e até peças teatrais. Pelos vistos, deve ter estado em Moscovo, talvez para ver se alguns dos seus escritos seria publicado, mas para entender tenho de dar aqui uma arrumação e, eventualmente, conseguir uma certa ordem cronológica. Há aqui uma descrição do asilo dos intelectuais de Moscovo, o "Khitrovka", onde vivem miseravelmente escritores e poetas sem editor nem ganha-pão. "Dediquei-me durante algumas semanas à actividade de copista de peças teatrais", - escreveu Piotr - "trabalhávamos em grupo, por vezes uma noite inteira por pouco mais de cinquenta copeques por acto. Era sempre urgente e muitos de nós nem roupa decente tínhamos para nos deslocarmos à casa do autor ou empresário que mandava fazer o trabalho. Bati a todas as portas para ver se publicavam a minha novela "Piotr, o Anarquista", mas ninguém aceitou, a maior parte dos editores nem se dava ao trabalho de ler ou abrir mesmo o embrulho com o respectivo manuscrito. E que trabalho aquilo deu. Também não consegui ver publicado "O Suicídio do Sósia". Espero que os meus netos ou bisnetos venham a reescrever as minhas histórias e as publiquem, sei lá onde estiverem; nos infernos, nas Américas, ou nas Africas, em qualquer lugar, menos na Rússia. Por fim, cansado e doente, regressei a Kiev para um curto repouso e recuperação para seguir depois para Odessa, a fim de frequentar um curso técnico".

Os diários de Piotr Ivaneivitch produziram uma profunda admiração e surpresa em Anton D., já que vivendo na Rússia imperial há uns anos, antes mesmo da instalação da "Duma", o parlamento quase democrático, em 1905, Anton D. nunca chegou a perceber o sentir das pessoas, principalmente das que se preocupavam com a política como deveria ser o caso de Piotr. Assim, anotou na sua mente com especial ênfase o seguinte texto do anarquista: "Não fui condenado por ser anarquista, por desejar um povo sem patrões e carrascos a viver numa verdadeira democracia, mas simplesmente por não respeitar o "paizinho", o nosso Czar Nicolau e a sua amantíssima esposa. Ainda tentei expor em tribunal as minhas ideias e a essência da doutrina política de Kropotkine e Fourrier. Mandaram-me calar e só pediram para confirmar as palavras acerca do Czar e da Czarina que eu teria pronunciado num restaurante e ouvidas por um esbirro da Ocrana. Como é possível que aqueles senhores aparentemente tão cultos e educados só se preocupem com o respeito pelo nosso abjecto autocrata. E por isso, pela minha falta de servilismo teórico, já que se tratavam só de palavras nem sequer escritas, fui condenado a sete anos de desterro para esta imensa e desértica Sibéria. Claro, posso ver a pena reduzida, se pedir perdão, se rastejar perante os juízes e jurar que nunca pronunciarei uma palavra indigna da glória do nosso omnipotente "paizinho". Mas, sou eu pessoa para isso?

Pelo menos não fizeram comigo o mesmo que a Dostoievski que, pelos mesmos motivos, foi condenado à morte para receber o indulto quando já estava frente ao pelotão de fuzilamento. Há muito tempo li o "Pobre Gente" do magistral génio da nossa literatura, sem saber que um dia seria também mais um dos muitos seres humanos que fazem parte do imenso rebanho que é a nossa "Pobre Gente". Enfim, fui condenado por falar, demais talvez, mas por falar, como se falar não fosse um atributo inerente ao ser humano para exprimir as ideias do momento com as quais ninguém precisa de estar de acordo. O meu pai bem me dizia, que a falar assim acabaria mal. Fui como que um "artista" da palavra nos cafés e botequins de Kiev; agora tenho de ser "artista" da escrita, pois não há aqui pessoa convivial e sociável com quem falar. O mais engraçado é que não foi em Kiev, mas precisamente em Odessa, que fui preso.

Eu tinha completado o ginásio em Kiev e quis primeiro ser escritor, fazendo publicar umas novelas que já tinha escrito antes. Mas, sem êxito, em Moscovo ninguém se dignou lê-las, quanto mais levá-las à estampa. Para além dos contos e novelas, eu sonhava com os mares e viagens distantes. Resolvi então iniciar uma vida de oficial de marinha, pelo que me dirigi a Odessa para matricular-me na respectiva escola profissional. Para o efeito instalei-me em casa de um tio em Nikolaiev. Assim, por um rublo comprava um bilhete de terceira classe no último vapor que partia já de noite para Odessa, procurava logo instalar-me numa confortável cadeira o mais próximo possível da chaminé, dormindo assim bem aconchegado durante todo o percurso. Muito cedo de manhã desembarcava na "Paris" do Mar Negro para me dedicar às formalidades burocráticas na escola profissional de marinha em que me queria inscrever. Sempre era mais barato gastar os dois rublos no vapor que pagar muito mais por um quarto mofento na casa de uma qualquer "Alena Ivanovna", cuja sovinice faria de mim um "Raskolnikov", de consciência eternamente atormentada, tanto mais que então estava profundamente tocado pela leitura do "Crime e Castigo" de Dostoievsky. De vez em quando, passava algum tempo na biblioteca pública para ler obras sobre navegação e aventuras marítimas. Apesar da minha insistência, fui reprovado no exame médico na tentativa de me inscrever na Escola Técnica de Marinha; acharam que não tinha vista nem a robustez necessária para exercer a profissão de oficial de marinha. Ainda tentei ingressar na escola técnica dos estaleiros navais de Nikolaiev de onde se podia sair engenheiro construtor naval, mas também aí falhei totalmente devido à minha completa falta de habilidade para o desenho, mesmo para as linhas rectas. Fiquei fulo, o meu tio zangou-se comigo, achando que era tudo por culpa minha, por falta de vontade de trabalhar e estudar. Acabei por o abandonar e fui viver em Odessa num quarto miserável alugado a um pobre judeu. Indicaram-me aproximadamente o local e quando lá cheguei ao perguntar na rua pela casa do judeu que alugava quartos ouvi logo a palavra terrível tifo, havia aí tifo. Mas, não me importei, pensei que com uma garrafa de vodka à mão estaria bem protegido do bacilo respectivo, embebedava-o e ele não teria forças para atacar os meus intestinos, até porque o que grassa aqui é mais a febre tifóide que os tifos mais comuns e para a evitar nada melhor que recusar esse líquido insípido que dá pelo nome de água; antes a vodka ou chá fervente. Depois, quando o "prassol" me mostrou o quarto comecei a temer que afinal até poderia mesmo haver tifo por aí, tal a porcaria reinante, mas o que me deixou mais descansado foi ver muitas garrafas vazias de vodka. Ainda perguntei se o hóspede anterior teria morrido de tifo.

- Não, "gaspodin", ele saiu saudável, era um militar, foi transferido para o norte. - Está bem, fico com o quarto, se o limpar todo e olhe, prefiro dormir no chão sobre um tapete limpo que nesse imundo colchão.

- Para isso tem de me pagar mais uns rublos.

- De modo algum, vou é queixar-me ao "stanwoi pristaw" (comissário de polícia) e ele manda aqui alguns "uriadnikis" que lhe selam a casa toda.

Aterrorizado, Lev Cederbaum prometeu limpar tudo e mudar o colchão, até fez um pequeno desconto.

Uma vez instalado, continuou Piotr, nos seus escritos, "passei a ir frequentemente à esplanada frontal à rada de Odessa, ver a esquadra cinzenta que fumega de negro. Depois vagueio pelas grandes avenidas da cidade até à catedral, onde não entro, pois sou mais que ateu, anti-clerical mesmo. Perto da Universidade encontrei um botequim típico que passei a frequentar e rapidamente me relacionei com alguns jovens estudantes, todos mais ou menos anti-czaristas; entretínhamo-nos a dizer mal da autocracia. Levei lá um operário muito culto que conheci na biblioteca, tivemos grandes e interessantes discussões políticas, adquiri mesmo o hábito de quase discursar alto para que todos ouvissem. Foi esse o meu mal, um esbirro da Okrana ouviu os meus discursos e seguiu-me a casa. Depois deverá ter feito com que a polícia lá fosse e me detivesse. Logo após a detenção, vim a saber que todos os frequentadores do velho botequim foram igualmente presos, ou "liquidados" segundo a linguagem típica da polícia secreta. Queríamos é certo estabelecer ali uma organização anarquista, mas não o tínhamos ainda conseguido, já que uns eram socialistas outros simples republicanos, outros ainda defendiam a via revolucionária dos mencheviques. Enfim, acabei por ir parar a um dos calabouços da prisão de Nikolaiev onde esperei três semanas enregelado e, como que sacudido de vez em quando, pelos interrogatórios que foram curtos e formais. Depois transferiram-me de barco para a prisão celular de Odessa. Aí ainda esperei algumas semanas até ser interrogado, quase que só para escrever a minha identidade num papel. A minha pessoa parecia interessar pouco e eu estaria já como que condenado. Perguntaram-me a que organização revolucionária pertencia, mas só como que de passagem e sobre as minhas ofensas ao Czar nada disseram. Como negasse pertencer a alguma organização, um dos oficiais da gendarmeria ainda me elogiou pela minha tenacidade e disse que certamente a minha posição na organização deveria ser deveras importante, já que todos os que passaram pelas suas mãos confessaram tudo. Rapidamente deixaram-se disso e acusaram-me só de ter ofendido o Czar e, por isso, seria castigado, mas só na sala de audiências é que se pronunciaram tão claramente.

Anton D., não sabia que estava ali um émulo de Dostoievki. O grande escritor foi condenado ao degredo siberiano depois de indultado da pena de morte por assistir a reuniões, mas principalmente por não se mostrar suficientemente respeitador do supremo autocrata. O sentido de justiça e de indignação de Anton D. começaram a vir ao de cima com a confissão escrita de Piotr. Aparentemente não tinha reparado que na sociedade russa, pretendidamente liberalizada depois de 1905, se era condenado por falar. "Será que o respeito exigido é só para com o Czar ou abrange a Duma, assembleia representativa das três classes sociais, e o governo, bem como os tribunais? "Não sei e não interessa, se não for assim será de outra maneira e neste imenso país deverá sempre haver qualquer coisa a justificar o poder", concluiu Anton D., para consigo, depois de ler aqueles escritos do anarquista Piotr.

Nos papéis de Piotr, Anton D. queria encontrar a sua morada, custe o que custasse, mas o que descobriu e mais o impressionou foi o drama da solidão do falador eminente que impossibilitado de dialogar com alguém confiava o seu desespero a umas folhas de papel. A dada altura, "Anton D. pôde ler: "Este degredo é o da solidão e desses insectos monstruosos que nos comem a carne em pleno verão. Malditos mosquitos, deram-me uma "Isba" empeçonhada desses miseráveis, são milhões e comem a carne, fui condenado à morte mais horrível de todas, a de ser tragado pelos insectos em pleno verão siberiano. Hoje, fui à aldeia, tentei meter conversa com alguma gente, falei a uma rapariga jovem que sorriu ligeiramente, apaixonei-me logo, mas ela desandou quando viu o pai ou tio, ou seja lá quem for. Estou já todo picado pelos minúsculos mosquitos que nunca consigo apanhar, devo estar horroroso. Não consigo outro trabalho que não seja pescar e apanhar bagas silvestres, pelo menos isso entretêm, pena é que os pescadores sejam tão pouco faladores e se exprimam tão mal, estes siberianos são mesmo duros. Não há na aldeia uma sala para convívio, parece que tudo aqui é uma espécie de prisão aberta ao exterior. Ainda tentei falar com o padre, mas ele julgou que eu vinha confessar os meus pecados, pedir perdão a Deus, quando na verdade só queria trocar uns dedos de conversa e estava disposto a não dizer que sou ateu, só para que o homem não ficasse ofendido. Mas é um boçal o padre, pior que um "mujique", nunca eu vi coisa assim". Escarra para cima das suas gordurosas e sempre sebentas barbas e cheira mal, arrota a qualquer coisa que parece alho, a boca tem o aspecto de uma fossa nauseabunda pelo seu hálito. Percebo bem a razão porque o mandaram para este infecto buraco. E a mulher do Pope é horrível, quase desdentada, mal vestida e com bigode e uns pêlos no queixo; sempre vestida de preto à excepção de um xaile ou lenço colorido, enfim duas pessoas que não atraíram certamente as atenções de algum bispo, a não ser para o pior. Pobres mujiques transformados em padres ortodoxos. Tão pobres de meios e espírito como a maior parte dos siberianos, com excepção dos donos das minas de ouro.

Efectivamente, Anton D. também tinha sentido os mosquitos, só que no fim da época eles já estavam fracos, parece que não tinham mais forças para picar, "estão a deixar aí as suas larvas, para subitamente no fim da primavera atacarem com uma força inaudita. "Foi por isso que a velha Zida me disse que a barraca deveria gelar por dentro durante alguns dias no Inverno para não ter tantos mosquitos no verão e matar as baratas que se acotovelam umas nas outras por todos os cantos deste miserável antro."

"Que não me aconteça a mim o mesmo que ao companheiro político de Dostoievski, o Petrashevski, vitimado pelas baratas e mosquitos numa cabana quente na Sibéria", pôde ler Anton D. noutro dos escritos de Piotr. "O pobre Petrashevski adoeceu e ninguém se importou na aldeia com a sua sorte, as baratas puderam roê-lo à vontade. Foi a enterrar completamente só, acompanhado pelos dois indispensáveis coveiros".

"Piotr é um personagem interessante", comentou certa vez Anton D. para com os seus botões, "ele gostava de literatura, utilizando o muito que lera como referencial quotidiano de toda a sua actividade. Interessante, isso de ver a vida e o mundo pelo prisma literário, interessante mas aborrecido, não há nada como a vida prática e estar entre as coisas e as pessoas, a literatura é só teoria é ver o mundo pelos olhos dos outros, bah!"

"Depois de condenado, fui levado num comboio de gado para aqui. Não sei quantos dias durou a viagem? Sempre naquele vagão fechado, isto em pleno século XX. Como é possível a civilização descer tanto quanto se trata do relacionamento do poder com a "pobre gente" que enche as praças e ruas das grandes cidades, consideradas como o "orgulho" desta mais que falsa civilização"? Escreveu ainda Piotr. Anton D. concordou, lá com os seus botões, pensando já em voz alta: "provavelmente também vou enlouquecer aqui, sem companhia, sem família e quase sem saber o que se passa nesse mundo de loucos, em que milhões de jovens cidadãos se matam cruelmente". Provavelmente, Satanás matou Deus.

"E pior que uma prisão foi o quase abandono, a solidão no frio, nesta miserável aldeia, no "benigno degredo administrativo" sem companheiros de infortúnio. Fui perdendo-os ao longo do trajecto. Quando chegámos éramos só cinco; mesmo assim, ficámos dispersos pelas várias aldeias da região". Não os posso esquecer, valentes ucranianos, nacionalistas, socialistas e anarquistas, todos condenados ao degredo, todos adeptos apaixonados da liberdade do povo ucraniano".

Anton D. percebeu pela primeira vez que a Ucrânia não se sentia como uma simples província do Império, que havia alguns jovens ucranianos dispostos a correr riscos e sacrifícios em prole da independência de uma pátria quase tão grande como a Alemanha. E admirou-se, nunca tinha visto o império russo pelo prisma dos nacionalismos dos seus diferentes povos e territórios, nem sabia que isso poderia existir. Para ele, evidentemente, o nacionalismo passava pela cabeça coroada de um monarca, imperador ou rei, falhando quando encabeçado por um presidente eleito como acontecia com a França. Mal sabia, Anton D., que na oficina da história em que se tinham convertido longos quilómetros de trincheira, a realidade daria uma volta completa. "Mas como pode um indivíduo como esse Piotr escrever coisas destas, a Ucrânia nunca existiu como nunca existiram antes as colónias alemãs ou a imensa Sibéria russa", pensava Anton D.. "Os "Pougatchevs" das Universidades falharam em 1905, ou antes, conseguiram muito pouco, só uma "Duma" quase sem poder", escreveu ainda Piotr, "chegou a hora dos homens de acção, dos que são capazes de conduzir a revolução a partir das massas populares", escreveu ainda Piotr.

"Bah! é um teórico, apesar do seu apelo à acção", comentou Anton D. ao ler as teorias da "Pobre Gente" dostoievskiana. Piotr relatou muito do que ouviu dos seus companheiros de degredo durante a longa viagem no transiberiano, mas ocultava os nomes, dava-lhes números em vez de nomes para não os denunciar, caso os seus papéis fossem apanhados pelos esbirros da "Okrana".

Ainda antes de o Inverno chegar com todo o seu rigor, Anton D. aproveitava os dias mais secos para ir a Krasnoiarsk saber novas da guerra. Oficialmente ia aos serviços policiais declarar a sua presença habitual, depois tentava meter conversa com os oficiais, quase todos velhos reformados que foram obrigados a retomar o serviço para ocupar os postos vagos na retaguarda. Diziam-lhe que a Alemanha estava a perder a guerra, os russos tinham conquistado a Prússia e em breve estariam em Berlim. Acabou por desistir, acreditava no que lhe diziam, não tinha qualquer informação em contrário e não sabia se deveria ficar contente ou infeliz.

Como estrangeiro, a sua noção de pátria estava um pouco ultrapassadas, tanto mais que as duas nações a que estava ligado guerreavam-se mutuamente, reproduzindo-se na sua mente a mesma guerra. Ainda falou nos papéis de Piotr, disseram-lhe para os trazer, mas ficou arrependido, talvez acabe por prejudicar outros e mesmo a família do pobre tresloucado. "Não, não os vou trazer, da próxima vez digo que são papéis sem importância, desenhos mal feitos, cartas inacabadas, etc.. Digo mesmo que os queimei na lareira. De resto, eles ainda estão cada vez mais interessados nos noticiários da guerra do que naquilo que um pobre e inofensivo anarquista poderia ou não escrever e parece que me escondem algo, não falam muito comigo. Contudo, há aqui tão pouca gente decente, a maior parte está na frente e os que ficaram são sempre os mesmos, eles vêem-se todos os dias. Deveria ser mais interessante para estes velhos capitães e majores falar com um estrangeiro. Pois é, mas devem ter recebido ordens de cima para não se abrirem com inimigos, mesmo que seja um pobre cidadão como eu a milhares de verstas da frente.

Mas, o que preocupava mais Anton D. era não receber notícias da família. Um dia deu uma moeda de ouro a um velho tenente para que mandasse em nome dele uma carta à sua mulher Olga. Queria saber como estava ela e os filhos. Claro, os correios não funcionavam bem naqueles tempos conturbados, mas pelas vias militares esperava conseguir um canal de comunicação. Pelo menos, sabia que lá no sul do Império não havia guerra, pois a frente estaria para lá da Polónia. Em plena Alemanha, como lhe tinham dito.

Anton D. nem sempre conseguia que o levassem à aldeia; tinha de ir a pé e estava a ver as suas botas gastarem-se rapidamente, pelo que resolveu confeccionar sandálias com entrecasca tecida de tília que adquirira na aldeia. Um dos aldeões tinha a entrecasca da tília mergulhada em água, depois cortou tiras finas e teceu-as grosseiramente, vendendo-lhe o suficiente para confeccionar mais de uma dúzia de sandálias, já que se gastavam rapidamente. Assim, aprendeu o "ofício" e tornou-se exímio na tarefa. "Pronto, ando calçado como um mujique e guardo as botas para quando estiver mesmo frio". Numa das suas idas à cidade, resolveu comprar estopa para calafetar a "Isba", pois sentia o vento a penetrar no seu interior e logo que o Inverno chegasse ficaria tudo gelado, mesmo com a lareira acesa. Uma vez por outra, frequentava o balneário de Kranoiarsk, onde se reunia quase toda a população da urbe, homens num balneário e mulheres noutro. No meio do vapor intenso, quase não se vislumbravam os corpos dos outros humanos que aí buscavam um pouco de calor, suor e activação circulatória, flagelando-se mutuamente com ramos de arbustos. Anton D. não fazia parte daqueles que depois do banho eram capazes de se rolar na neve fria do exterior ou mergulhar nas águas gélidas do Ienessei. Limpava-se discretamente e saía. Sentia-se mal na pele de degredado administrativo, mas frequentava os banhos com prazer, já que adquirira o hábito de o fazer em Novocherkassk.

Depois das suas actividades venatórias ou de colheita de frutos silvestres ou lenha, Anton D. dedicava-se enfim à tarefa de consultar os papéis de Piotr. A certa altura encontrou um livro misterioso, envolto numa capa branca que dizia: "Cuidado, a curiosidade pode ser mortal. Livro do Doutor Dubane". Lembrava-se vagamente de ter ouvido ou lido aquele nome, mas não recordava bem onde e a que título. Parecia que o nome vinha de longe, provavelmente dos tempos da sua infância.

Apesar do alerta na capa, Anton D. abriu o livro e encontrou lá a seguinte frase: "Para ser lido de ponta à ponta pelo meu assassino, pode encontrar aí a pista para uma mina de ouro. A narrativa é a vida e o seu fim a morte. Oh Rei, podes consultar o livro!"

Anton D. folheou ligeiramente o livro, viu que a seguir havia páginas em branco e as seguintes pareciam estar coladas umas às outras. Foi examinando o livro com cuidado, deu-lhe umas voltas, tentou abrir a partir de trás. Qualquer coisa dizia-lhe que o livro seria perigoso. Deixou-o abrir-se por si próprio sobre a mesa. O livro abriu-se sensivelmente a meio. Aí pôde ler: "Os Contos de As Mil e Uma Noites podem salvar uma vida".

Foi como que uma lâmpada de Aladino para Anton D., subitamente fez-se luz na sua mente. Tratava--se de uma das histórias das Mil e Uma Noites que ele com tanto gosto tinha lido e ouvido na sua infância. Era o livro do doutor Dubane com as páginas envenenadas e ligeiramente coladas para que o leitor fosse salivando os dedos e assim acabaria por colocar na língua uma dose suficientemente mortal de veneno. O doutor Dubane fora mandado matar por um impiedoso rei, como contara Xerazade, mas deixou o seu livro para o rei ler logo após a sua morte. A curiosidade do monarca foi-lhe fatal, acabou por cair morto. "Obviamente, pensou Anton D., Piotr tinha razão ao escrever que as "Mil e Uma Noites" podem salvar uma vida. A sua fora salva precisamente por ter conhecido as fabulosas narrativas de Xerazade. Assim, pôs o livro de parte e pensou: "tudo indica que o Piotr tomou conhecimento do destino infeliz do filho da velha Zida e pensou em arranjar uma maneira de se vingar caso lhe sucedesse o mesmo, ou então fazer com que um provável assassino resolvesse consultar o livro antes de concretizar o seu infausto intento.

Para Anton D., o livro envenenado de Piotr foi um alerta para os perigos que o rodeavam e uma explicação sobre o carácter do anarquista. De algum modo, Piotr fascinava-o, apesar de ser cada vez mais óbvio que a sua vida e a do falecido nada tinham de comum, nem tão pouco as maneiras de ser de ambos. Mas, na situação em que se encontrava, tudo o que estava na cabana interessava e, de algum modo, havia aí muito a suscitar a sua curiosidade. Um novo mundo estava à sua beira, na aparente insignificância de uma humilde barraca siberiana de madeira.

Se no início, só encontrou alguns vagos manuscritos sobre a vida e a condenação de Piotr, depois acabou por decifrar alguns diários dispersos que referiam algo mais sobre a vida de um personagem cada vez mais simpático a Anton D., que mais não seja pela distância que se colocava entre as vidas dos dois homens. De início, a fase mais importante foi a da prisão de Piotr, depois a sua vida e, por fim, a descrição da sua morte. Piotr resolveu, antes de morrer, descrever cuidadosamente no mais ínfimo detalhe a sua morte, explicando a razão porque a vida não tinha sentido naquele degredo russo, acusado de nada ou antes de tudo e nada ter feito. E, com a sua tendência para a ordem, tentou organizar cronologicamente os papéis de Piotr para ter do personagem uma visão plena de sentido, preferindo pôr de lado alguns textos relativamente a pessoas que Piotr conhecera aqui ou acolá, mas que aparentemente pouco ou nada significavam para a história do anarquista oral, como lhe chamava Anton D. em pensamento.

Entretanto, o Inverno chegara com uma rapidez fulgurante. A temperatura desceu subitamente, a floresta cobriu-se de neve e o Ienessei gelou. Os primeiros dias de neve parece que nunca mais acabavam. Anton D. perdeu quase a noção do local em que estava, parte da sua "Isba" ficou soterrada na neve, teve de abrir um caminho com a pá. Aquela primeira neve ainda não era dura, quase não se podia caminhar por cima, tinha de abrir um caminho, fazer um piso, batendo com a pá no chão, mas depois com a descida da temperatura, a neve transformou-se numa espécie de gelo ou vidro muito duro que se quebrava um pouco sob as pesadas patas dos cavalos siberianos, fazendo o barulho de vidros a partirem-se. Essa neve dura tinha de ser quebrada com uma picareta para manter uma saída livre a partir da porta da "Isba".

A lenha que Anton D. tinha juntado, pareceu-lhe muita na altura, mas rapidamente se gastou e aquilo que cortava das matas próximas era já uma madeira muito molhada e fria que ardia com grande dificuldade. O que vale é que havia uma pequena montanha nas proximidades da sua cabana. Lá em cima, ele cortava alguns troncos de árvores menores e fazia-os rolar para baixo sem uma grande esforço. Depois, cortava-os à machadada. Anton D. preferiu procurar troncos de árvores abatidas por temporais ou mortas naturalmente, chegou mesmo a descobrir um gigantesco cedro derrubado por um vendaval, mas o tronco estava coberto de neve e colado ao chão gelado, foi um trabalho monstruoso arrancar alguns pedaços de madeira daquele imenso tronco. Durante semanas, andou desesperado à procura de lenha para manter a sua lareira sempre acesa, enquanto a temperatura no exterior ia descendo cada vez mais até aproximar-se dos trinta graus negativos. A velha Zida explicou-lhe como manter o fogo na lareira durante uma noite inteira. Deveria cortar dois paus longos, afiá-los e ligar as duas pontas entre si pelo fogo que se mantinha até atingir as extremidades opostas, já no início da manhã seguinte.

Por fim, fez a descoberta da sua vida, as raízes de uma árvore muito resinosa que Anton D. depois veio a identificar como um lárix e que deveria ter sido abatido por lenhadores que não aproveitaram aquela parte da árvore. O machado enterrava-se até ao fundo e quase não saía para fora. Anton D. passou a aproveitar aquele material resinoso que ardia como se fosse petróleo, deixando ainda por cima um cheiro quase agradável.

A tarefa de encontrar lenha e manter a velha lareira da "Isba" sempre acesa não deixavam qualquer tempo livre a Anton D. para caçar e, menos ainda, para os escritos de Piotr. Teve mesmo de comprar comida na aldeia e uns abafos siberianos, pois a guerra, tal como o Inverno, pareciam nunca mais acabar e de igual modo o seu degredo e solidão. O fiel empregado nunca chegou a aparecer com o tal passaporte suíço que permitiria a Anton D. regressar a casa. As cartas da família nunca foram recebidas e na cidade os velhos militares estavam cada vez mais agressivos com Anton D., apesar de continuarem a dizer que os exércitos russos avançavam diariamente, mas não tinham chegado a Berlim como profetizaram meses antes. Só depois da descoberta do material resinoso é que Anton D. conseguiu sair para caçar alguma peça que aparecesse nas proximidades da cabana. O frio não o deixava estar muito tempo fora, sentia continuamente a necessidade de regressar para se aquecer, despindo as pesadas botas forradas por dentro com uma série de trapos que ficavam sempre humedecidos.

Aquele Inverno parecia querer expulsar todo o ser animal das proximidades da "Isba" de Anton D., até que, por fim, quase por milagre viu ligeiro um gamo a vaguear ali perto. A caçadeira estava pronta e um tiro certeiro abateu o animal, fazendo-o dar um enorme salto. Era um belo macho com esplêndidos cornos ramificados e espalmados nas extremidades, quase a caírem. A pele cinzenta muito escura deu um excelente tapete de leito, enquanto a carne foi aproveitada até ao último naco e dos chifres fez um cabide.

O gamo marcou como que o fim das privações de Anton D. . Descobriu ainda um local muito frequentado por galos de mato que aí raspavam a neve para comerem as bagas silvestres bem conservadas pelo frio. Assim, quase diariamente Anton D. caçava uma perdiz ou um galo do mato, depois levava sempre uma ou mais peças a Zida Vassielenova que logo cozinhava uma parte para ela e outra para Anton D.. Pedia-lhe mesmo para esperar na sua "Isba", junto ao enorme fogão que a velha viúva tinha naquela casa humilde. Ela gostava de conversar com Anton D, , apesar de que só pouco a pouco é que se foi habituando ao ligeiro sotaque cada vez mais russo de Anton D.. Um dia disse-lhe: -primeiro pensei que o senhor falava uma língua estrangeira, só depois é que reparei que fala a nossa língua de uma maneira um pouco diferente da que se fala aqui na Sibéria. O Piotr também não tinha bem a mesma fala que a nossa. Sabe, nós aqui neste buraco deserto não estamos habituados a lidar com gentes de fora, salvo os deportados que, de vez em quando, mandam para cá. Para aqui vêm poucos deportados, só algumas pessoas importantes, a maior parte vai lá mais para o norte, para o Angorá, para as minas de ouro e para outros trabalhos muito duros. Aqui, só escritores ou filhos de funcionários superiores, mas poucos. Mas, esses falam todos a nossa língua.

- Sabe, Zida Vassielenova, há muitas línguas neste mundo, quase todos os povos têm a sua.

- Sim, os buriates falam uma língua dos diabos que não entendo nada e também os tártaros: por vezes aparecem por aqui. Uns são caçadores, outros comerciantes ou sei lá o quê?

Anton D. gostava de conversar com Zida Vassielenova, principalmente porque a conversa era acompanhada pelo chá que saía do sempre fumegante Samovar e também por se tratar da única e autêntica "siberiaki", siberiana de quatro costados, com quem podia conviver com uma certa intimidade. Zida era uma mulher orgulhosa da sua resistência às inclemências do tempo e bisneta de um russo deportado por toda a vida por um Czar cujo nome já nem recorda mais. Assim, Anton D. circulava entre as histórias escritas de Piotr na sua cabana e os "contos" fantásticos de Zida Vassielenova.

Depois de aparecerem os primeiros frios com os consequentes nevões, a Anton D. foi naturalmente revelado que a viúva siberiana era uma verdadeira especialista do frio. Conhecia todos os meios de defesa contra tão terrível inimigo do ser humano naquela zona situada quase na fronteira entre o planalto serrano do sul da Sibéria e a imensa planície siberiana que se estende a pouca verstas daí para Ocidente até ao Árctico e para o Oriente até ao Mar do Japão e Pacífico. Ela salvou-lhe a vida ao vender-lhe umas "valenki", botas forradas, e umas polainas de lã crua muito forte. Quando começaram os primeiros nevões, Anton D., ficou aterrorizado porque o termómetro desceu subitamente para uma temperatura bem abaixo do zero. Zida Vassielenova disse-lhe que aquilo ainda não era o Inverno: - O Inverno só começa ao terceiro nevão, quando o rio fica duro como pedra e as "troikas" podem andar mais seguras que em terra firme e cuidado porque aqui também faz um frio de três janelas, apesar de que lá para a zona das minas de ouro, junto ao rio Lena, é muito pior. Tem de pôr mais janelas na sua "Isba", o vento que aí vem da planície gela tudo, queima as bochechas e gela os líquidos do nariz.

Pouco tempo depois, já em Dezembro, Anton D. viu confirmada a previsão da velha "siberiaki", quando saiu numa dessas manhãs sopradas pela ventania gelada da sua casa. Sentiu um choque terrível, as lágrimas corriam-lhe copiosamente, solidificando-se rapidamente, enquanto os dedos, dentro das suas luvas habituais, enregelavam-se todos. Retornou subitamente à "Isba" para colocar outras luvas por debaixo das que tinha e cobrir toda a cara com um cachecol de lã. Era um vento traiçoeiro, só trazia frio, silenciosamente, sem um ruído, mas cortante como se fossem nuvens de pequenas facas muito afiadas, o ar parecia mais transparente e a claridade da manhã não era ainda do dia que mal tinha despontado, mas do frio imenso que tornava tudo mais claro, branqueara a neve e fazia descer do telhado da "Isba" longo fios de estalactites de gelo. Antes disso, Anton D. tinha seguido os conselhos de Zida e tapou as suas pequenas janelas com uma camada de madeira e pele. A sua única ligação com o exterior passou a ser a chaminé do fogão e uma minúscula "fortochka", janelinha de vidro, que deixou no canto superior esquerdo de uma das janelas para reconhecer o nascer do dia.

Anton D. era demasiado estrangeiro para ter uma verdadeira ideia do que era viver na Sibéria; julgou que o frio se fazia sentir, mas nunca com aquela intensidade, pois a região estava num paralelo relativamente a sul, só que no interior de uma imensa massa de território continental, uma espécie de geladeira monstruosa, varrida por aquele eterno e quase sempre constante vento gelado. A velha Zida dizia-lhe que em certos dias não se podia sair, morria-se rapidamente com o frio. Seriam dias com algum sol, muito brilhantes com um ar transparente que torna tudo nítido. Saiu num dia desses, queria saber porque razão as árvores siberianas não morrem com tais frios e algumas até conseguem manter umas folhas todas brancas e muito pequenas.

Naquele fim de Dezembro, o dia apresentou-se só com algumas horas de sol e nem uma nuvem. A brancura era total assim como a transparência do ar, Anton D. saiu e desceu até ao rio. Ninguém à vista, tudo era visível com uma nitidez extraordinária, mesmo assim, julgou ver uma sombra e depois uma pessoa, avançava por cima do rio gelado, é o Piotr, pensou, pelo modo que Zida Vassielenova o tinha descrito. Mas não pode ser, o homem morreu e se estivesse vivo não andava por aqui agora, já que o tempo de desterro dele terminou há meses, como foi dito pelo Pope.

 

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Quinta-feira, 21 de Julho de 2005

Capítulo V da Novela de Dieter Dellinger - Libertação e Amor

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Anton D. enregelava apesar de estar agasalhado ao máximo, pelo que decidiu regressar apressadamente à sua "Isba". Tivera subitamente uma ideia; "já que os papéis de Piotr estão todos lá, porque não passar por ele e me libertar a mim mesmo, basta convencer Zida Vassielenova a não revelar nada a ninguém, o que não deve ser difícil com uma das moedas de ouro que trago escondidas nos sapatos. Com a papelada judicial de Piotr apresento-me ao juiz, peço uma credencial de libertação e um passaporte interno e como que regresso a Kiev, mando vir a família e passo a fazer a vida de um quase intelectual de esquerda que terá aprendido algo de mecânica no seu longo degredo siberiano e, eventualmente, na escola de mecânica dos estaleiros de Nikolaiev. E claro, o novo Piotr, informou primeiro a linda Olga que voltou a ser viúva e passará logo a ser a sua amante". Depois de tanto tempo de separação, a ideia de voltar a ter Olga nos seus braços deixou Anton D., em vias de se tornar no Piotr Ivanevitch, louco de paixão e desejo. A ideia tornou-se obsessão imediata e passou a justificar todos os eventuais perigos. Anton D. sabia que tinha de se tornar no Piotr custasse o que custasse, adquirir o próprio sotaque da língua ucraniana e saber o russo de tal modo que ninguém o confunda com um miserável "boche".

Assim pensou, assim o fez, convenceu Zida Vassielevna a não dar pela sua falta, e a ir substituir o nome de Piotr Ivaneivitch pelo de Anton D. na campa onde enterraram o suicida. Deu-lhe uma moeda e ela prometeu que diria às autoridades quando e se lhe perguntarem que um tal Anton D. se suicidou há muito tempo, dizendo-lhe: - Engraçado, é como se Piotr Ivaneivitch tivesse ressuscitado e o "gaspodin" tivesse falecido. Eu simpatizava, apesar de tudo, com o Piotr, mas não desejo de modo algum a sua morte, ainda o acho mais simpático e agradeço profundamente a comida que me trouxe e as moedas que deixou. Nunca o esquecerei, espero que um dia me venha visitar como homem livre, qualquer que seja o seu nome. Deu-lhe mesmo um beijo na face em sinal de despedida até breve. Ainda foi à campa com a velha Zida colocar a placa com o seu nome no lugar em que estava a de Piotr Ivaneivitch. Depois recolheu-se um pouco frente à cruz que marca a campa. Fez como que uma oração em sua memória e disse para Zida, agora sou Piotr Ivanevitch, o pobre Anton D. morreu e foi aqui sepultado. Zida riu-se um pouco e disse: - Na verdade já está com o espírito meio maluco do Piotr, que lhe dê muita sorte.

O novo Piotr Ivaneivitch arrumou muito bem os seus papéis e a roupa que herdara do "falecido" Anton D. Carregado com uma mala e dois sacos foi à taberna da aldeia perguntar se alguém iria a Krasnoiarsk.

Assim conseguiu boleia numa troika e foi falar com um amanuense a quem deu uma boa gorjeta para indagar tudo sobre os juízes presentes; se estavam há muito tempo e se havia um tal Koroviev que o conhecia. Era o juiz que assinara a deportação final de Piotr e que, naturalmente, poderia eventualmente ver que o novo Piotr não é o que esteve no seu gabinete há uns anos atrás.

- O Koroviev foi transferido há anos, em sua substituição está aqui o juiz Archibald que o pode receber imediatamente se quiser, disse-lhe o amanuense, esperando outra gorjeta, que foi prontamente entregue.

Com algum espanto do novo Piotr, o idoso juiz Archibald de Krasnoiarsk recebeu-o com a maior das simpatias e disse-lhe que o seu caso seria tratado em poucos minutos quando começou logo a escrever um papel e pediu ao escrivão qualquer coisa que Piotr não percebeu bem o que era.

- Aqui tem o seu passaporte e a guia de convocação para se apresentar na Escola Militar de Omsk, na estação dão-lhe um bilhete ao mostrar esta guia e tem dois dias para se apresentar; se o não fizer será considerado desertor e pode ser condenado à morte por fuzilamento, entendeu. E deixe essa fala ucraniana, pois sabe bem que isso é uma provocação neste tribunal, falar uma língua proibida desde 1876. Fale mas é russo. Se não estivéssemos em guerra, condenava-o aqui já a mais uns meses de degredo. Espero que com as suas habilitações literárias seja admitido na escola de aspirantes e saia "portupeijunker", alferes aspirante. Escrevi aqui que o senhor se ofereceu como voluntário para a defesa da pátria. Não faço qualquer referência ao seu degredo simples, não precisam de saber, mas conserve bem guardado este documento que o liberta totalmente.

Piotr ficou surpreendido, primeiro com a convocação militar, depois com a questão da língua que tinha utilizado para disfarçar o seu ligeiro sotaque alemão. Acabou por dizer que sim e desculpe, saindo rapidamente.

Já nas ruas estreitas de Krasnoiarsk, Piotr começou a pensar, como que atordoado e surpreso, "sou agora o Piotr, mobilizado para defender a pátria. Como é que eu não tinha imaginado tal situação. Sou mesmo estrangeiro, nunca chego a perceber o que se passa à minha volta". Foi à estação para ver quando passava o próximo transiberiano. Era no dia seguinte e indicaram-lhe uma pequena pensão para pernoitar depois de lhe pedirem os papéis. Aproveitou o tempo livre para escrever algumas cartas à linda Olga. Umas dirigidas ao seu antigo escritório, outras para casa, todas assinadas por Piotr, mas explicando a situação de uma forma indirecta e compreensível. Escreveu: "O passaporte pedido em Moscovo não chegou, mas tenho agora a convocação para a Escola Militar de Omsk. Sou o teu Piotr, vê se consegues ir a Omsk para nos encontrarmos. "A ideia deixou Piotr profundamente excitado, nunca mais parava de sonhar com a Olga e acreditou que algumas das cartas chegariam às suas mãos".

Depois de mandar as cartas meteu-se enfim num comboio cheio de gente, principalmente chineses que iam em multidão do oriente russo para ocidente, abrir as trincheiras da guerra que estagnava depois das grandes derrotas russas nas planícies prussianas da Masúria. Com uns dinheiros dados a um dos chefes da gare, Piotr conseguiu um bom lugar de primeira, pelo que viajou rodeado de oficiais e burgueses quase como ele, convocados passados os trinta anos de idade. Não falou muito, mostrou-se demasiado reservado, o que suscitou a curiosidade dos acompanhantes, mas não exagerou, estavam habituados a que naquele comboio e naquelas paragens siberianas todo o tipo de gente podia aparecer, desde o mais bandido dos aventureiros ao mais honesto dos funcionários, só gente da alta nobreza é que raramente se expunha a tão tormentosas viagens. Enfim, Piotr voltou um pouco ao sotaque ucraniano para disfarçar pois apercebeu-se que não havia no seu compartimento qualquer cidadão da Ucrânia. Acabou por se apresentar como Piotr Ivaneivitch, a caminho da Escola Militar de Omsk. Mostrou-se mesmo muito patriota, o que impressionou muito bem os seus companheiros que deveriam ter mais de malandros do que patriotas. De resto, ninguém lhe perguntou o que fazia, mas a sua condição de voluntário permitiu-lhe falar um pouca da guerra e fazer algumas perguntas sobre a situação militar e política, alegando que na aldeia onde estava instalado não chegaram muitas notícias. Foi então que lhe falaram na derrota de Tannenberg e nas vitórias contra os austríacos na frente ucraniana, "o general Brusilov prepara-se para dar uma grande lição aos austríacos", disse-lhe um velho major que viajava naquele compartimento.

- Ainda bem, disse Piotr, a pátria está salva, a minha Ucrânia está a ser poupada à ocupação pelo inimigo.

Ficaram admirados com tal afirmação, o novo Piotr sentia-se cada vez mais na pele de ucraniano para falar em termos de nacionalismo, como lera nos seus diários e indignar-se contra o Império russo.

A viagem até Omsk não foi longa, já que aquela cidade militar siberiana situava-se a pouco mais de cento e cinquenta verstas de Krasnoiarsk. E quando chegou reparou que havia muitos mais homens como ele a caminho da Escola Militar, uns muito novos e outros já bem mais entrados na idade, provavelmente casados e pais de família. Enfim, as perdas gigantescas dos primeiros meses de guerra abriram as fileiras militares a todos os cidadãos do Império e ali em Omsk forjavam-se os oficiais subalternos da infantaria siberiana, reconhecida pela dureza com que aguentava os combates e as inclemências do tempo.

Na viagem, o novo Piotr pensou se não teria fie-to a maior asneira da sua vida; trocar um degredo solitário mas praticamente isento de perigos e até confortável por uma guerra que tudo indica não ser mais que uma carnificina inútil. "Posso, claro, desertar na frente para o lado alemão ou austríaco e depois, o que ganho pessoalmente com isso, serei incorporado no outro exército ou talvez fuzilado por traição à pátria de origem. Além disso, atravessar uma frente não deve ser fácil; com uma bandeira branca levo um tiro de trás, sem isso, levo um tiro de frente, o melhor é nem tentar".

Bem, o mal está feito, foi dizendo Anton D. para consigo, agora sou Piotr Ivaneivitch de Kiev e tenho de me comportar como tal, sem esquecer que sou agora uns anos mais novo, precisamente cinco. Trago aqui os meus diários e as novelas que comecei a escrever, tenho mesmo de tentar acabá-las e passar a escrever correctamente a língua russa. Sei bastante bem o russo, mas não com a qualidade literária do Piotr, tenho de a adquirir, estudando bem a gramática e decorando todas as frases literárias dos poucos livros que levo na sacola. Por isso, Anton D., agora Piotr, passou parte da viagem para Omsk a ler Dostoievski e Lermantov, dois dos escritores que lhe ficaram como herança do proprietário do espírito de que se apropriara.

Antes de chegar à Escola Militar, Piotr, pensou se seria ou não aceite e se ainda seriam praticadas as violentas praxes aos caloiros como tinha ouvido falar nos tempos de paz e se não lhe aconteceria o mesmo que na Escola de Marinha, ser recusado no exame médico. A servir no exército, sempre é melhor como oficial subalterno do que como simples soldado. E quanto tempo duraria o curso, será que não vão descobrir que não sou sequer russo e que dou alguns erros ortográficos, como é natural. No caminho da estação para a escola foi falando com outros cidadãos que seguiam na mesma direcção; um dos mais velhos disse que era engenheiro e outro que era professor de matemática, enquanto que os mais novos acabavam de sair dos liceus. "Estou feito, são todos intelectuais e eu, um mecânico estrangeiro só com alguma escola prática e um bom pedaço da literatura russa lida, mas não, o estrangeiro ficou lá enterrado na aldeia", eu sou o Piotr, estudante e anarquista de Kiev, um intelectual escritor de diários e pequenas novelas".

Na escola militar não houve qualquer problema, já que todos falavam quase ao mesmo tempo, homens dos dezoito aos quarenta iam frequentar o curso rápido de aspirante a alferes da reserva e seguir imediatamente para a frente. O certificado de habilitações foi aceite sem problemas e no exame médico, Piotr passou logo à primeira observação. O novo Piotr admirou-se um pouco com tantas facilidades, não sabia que resultavam do facto de as perdas em oficiais subalternos serem tremendas e muitos elementos da burguesia já escondiam as suas habilitações para não serem mobilizados como oficiais, apesar dos enormes preconceitos de classe.

O sargento do fardamento "vzvodni unteroffizier" deu-lhe o dólmen, o grosso capote cinzento e o "blachki", uma espécie de capuz que protege a nuca e as orelhas do frio. Ensinou-lhe a enrolar o capote e a passá-lo à volta do corpo desde o ombro à anca, para quando a temperatura subir e o tornar dispensável. Depois forneceu-lhe a "furachka", o boné chato de todos os militares imperiais com a placa metálica da escola e pala dura, uma mochila com um blusão, um par de ceroulas e, por fim, dois pares de calças, além de alguns acessórios.

O armeiro pôs à disposição de cada dois alunos uma espingarda "Russkaya 3-lineinaye vintovka obrazets 1891", uma excelente arma, mas que faltava tremendamente e todas as que saíam das fábricas de S. Petersburgo iam para frente de batalha.

O curso foi rápido, e o novo Piotr cada vez mais integrado no espírito de camaradagem e respeitado por ser mais velho que a maior parte dos camaradas de armas, acabados de sair dos liceus, conseguiu que não reparassem no seu já quase desaparecido sotaque alemão. De resto, dizia-se ucraniano de residência, mas de origem balta onde o alemão é língua muito falada, por isso passou a ser tratado por "Khokol", designação depreciativa que os moscovitas dão aos ucranianos, o que encheu Piotr de alegria, por o fazer esquecer a sua recente, mas enterrada, origem. "Eu sou agora o aluno aspirante Piotr Ivaneivitch, não sou um capitão Rybnikov da novela "O Espião" de Kuprine, não sou estrangeiro, nem estou ao serviço de algum império inimigo.

O desejo de ver Olga continuava a atormentar o novo Piotr. Por isso, mandou-lhe mais cartas, agora pelo correio militar oficial, pelo que chegariam certamente ao seu destino. Até conseguiu fazer uma foto de si todo fardado, o que poupava palavras explicativas, susceptíveis de serem lidas por um censor. Na foto escreveu, o teu Piotr prepara-se para defender a pátria que tanto ama.

Efectivamente, Olga D. recebeu as cartas enviadas pelo correio oficial, mas guardou segredo e predispôs-se imediatamente a viajar para Omsk. Com uma importante quantia em dinheiro conseguiu obter um passaporte interno para viajar para Omsk e Krasnoiarsk, dizendo que o marido ia trabalhar para o exército imperial na cidade militar. Acompanhada por uma senhora muito viajada e por um velho empregado da empresa, Olga meteu-se ao caminho nos mesmos comboios que Anton D. utilizou e chegou a Omsk um mês depois do novo Piotr aí ter iniciado a instrução.

Os filhos, dois rapazes e uma rapariga, ficaram entregues a uma governanta sob o controle da avó materna.

Olga pagou a um cabo e depois a um sargento para avisarem o instruendo Piotr Ivanevitch da sua presença ali, mencionando o local em que estava instalada, a casa de uma viúva pobre de um capitão recentemente falecido na frente. Piotr ficou surpreendido, as dúvidas assaltavam já o seu espírito, quatro semanas depois de chegar de Omsk, julgava ser impossível voltar a ver a sua Olga.

Teve de esperar pelo domingo, o único dia em que pôde sair da escola militar, depois de assistir à missa. Combinara encontrar-se com Olga na Igreja. Quando entrou no templo rodeado dos camaradas de armas em quase formatura, Piotr viu de longe os lindos cabelos louros arruivados de Olga a saírem ligeiramente do véu. Não necessitou que ela se voltasse para saber que Olga estava ali. Saiu do seu grupo e foi postar-se ao lado dela, trocaram olhares e beijaram-se com pequenos movimentos dos lábios sem se tocarem nem se voltarem frente a frente. Na hora da comunhão, os camaradas passaram todos pela sua frente e olharam-nos com olhares portadores de uma certa lascívia, admirados com a beleza da eleita do "ucraniano", perguntando mentalmente, será que todas as ucranianas são assim? Logo após a cerimónia, Piotr foi com Olga para a sua casa, onde foi apresentado à viúva Ana Pavlova como o seu marido. Assim, puderam descansar sossegadamente no quarto de Olga até ao dia seguinte. Esse primeiro dia foi o céu para ambos, Anton D. ressuscitou nos braços de Olga e tudo voltou a ser como antes, esquecera por momentos o anarquista Piotr. Olga tratou-o por Anton; fizeram amor com todo o desejo da vida. Mas, no fim, disse: - Tu na verdade és viúva do Anton D. e agora és a amante de Piotr Ivaneivitch. Se arranjares uma certidão de óbito do teu falecido marido, nada impedirá que te cases com o teu amante.

- Tens muita piada - respondeu-lhe Olga, rindo-se abertamente. - Não te conhecia com tanta imaginação, porque não escreves um romance ou uma novela, tens história para isso. Sim, é um grande romance, o que inventaste na prática. Mas tenho medo, muito medo, se já sou, por assim dizer, viúva duas vezes, não quero sê-lo pela terceira vez de um tal Piotr Ivaneivitch caído numa guerra de primos e que passei a amar. De resto, é uma sensação maravilhosa ter dois homens num só; um amante e um marido ao mesmo tempo, diferentes e iguais. Não quero casar-me com o Piotr Ivaneivitch, prefiro ser apenas a sua amante aos olhos do mundo. Tiramos mais prazer desta situação nada pecaminosa afinal. Porque para Deus tu continuas a ser o meu marido Anton. Não O podes enganar.

- Sabes lá se há algum deus preocupado connosco e a ver o que fazemos? - retorquiu, continuando: Principalmente quando milhões de homens morrem nas frentes de batalha. Que importância pode ter o facto de um casal se amar com um ou outro nome comparada com tão tremenda destruição de seres humanos.

Olga D. contou tudo o que acontecera em Novocherkass e não deixou de mencionar a impressão negativa que causava na população da retaguarda o número crescente de baixas na frente. Vários empregados de Anton D. morreram já e, entre a vizinhança, o luto instalara-se também em muitas casas.

- Sei que se fores para a frente, não voltarás vivo – disse-lhe Olga, – e isto não é a tua guerra, nem esta nem outra qualquer, tu és a pessoa mais pacífica que conheço, às vezes até me irritavas com a forma condescendente com que tratas toda a gente, mesmo aqueles que te queriam fazer mal. Não será melhor desertares?

- Como? Julgas que é fácil. Posso ser condenado como espião ou desertor, o tribunal escolherá e enviar-me-á de qualquer modo para a morte. De resto, da maneira como falas de mim fazes-me recordar Dostoievski quando escreveu que "a mulher que ama saberá divinizar os defeitos da pessoa que ama" , não sou tão pacífico assim.

- Ah! Isso és. Além de pacífico és inseguro e ingénuo. Sou de algum modo, uma certa segurança para ti, como se verificou no passado.

- Talvez, mas de qualquer modo estou metido numa situação em que não encontro saída. Esperemos é que a guerra acabe depressa e que eu nem chegue a combater. Com a enormidade das baixas a guerra acabará em breve e, se não for assim, acho que outras desgraças estarão ainda para vir e as forças anarquistas acabarão por varrer os governos e as burguesias da face da Terra.

- Ah, agora é o Piotr a falar, o anarquista, que engraçado!.

O casal D. voltou a encontrar-se mais vezes para felicidade de ambos, tendo Anton conseguido subornar um sargento e passado a dormir na casa em que Olga se hospedou nos últimos tempos da sua preparação militar que durou pouco tempo mais. E, sempre que Anton se preparava para regressar à escola militar, Olga dizia-lhe, - não te esqueças que és de novo Piotr Ivaneivitch.

 

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Capítulo VI da Novela de Dieter Dellinger- A Guerra nas Trincheiras

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Três meses passados, desde a chegada a Omsk, fizeram-se à pressa uns simulacros de exame. No fundo, aprendeu-se a formatura, cavar trincheira, colocar arame farpado, manejar as "3-linhas" e as metralhadoras "Maxim", lançar ataques de infantaria, além do uso de morteiros e granadas de mão, métodos e ordens de comando e alguma, mas pouca, teoria.

Piotr saiu-se muito bem no exame de balística, pois tinha aprendido alguma coisa de física quando frequentou a Universidade Popular. Era tudo muito orientado para a prática; de um oficial subalterno de infantaria esperava-se só que fosse capaz de galgar o parapeito de uma trincheira e avançar pela "terra de ninguém" à frente do seu pelotão para chegar eventualmente ainda vivo à trincheira inimiga. O capitão da companhia de instrução disse-lhes um dia: - a infantaria é agora a rainha das armas, não é mais a cavalaria, foi liquidada pelas metralhadoras. O homem valente, rastejando a cortar o arame farpado inimigo para lançar na trincheira adversa a sua granada de mão é o herói e será o vencedor desta guerra. Outros atrás completarão a vitória de baioneta calada, trespassando os corpos informes dos inimigos. Nem será da artilharia que virá a vitória; as granadas de canhões e obuses fazem vítimas ao acaso, mesmo quando disparadas aos milhares, não conseguem nunca abrir uma verdadeira brecha nas linhas adversas. Na guerra, como em tudo na vida, é preciso ir mesmo lá, ao objectivo e enfrentar de peito aberto a bala e a baioneta inimiga.

Piotr ainda pensou, tudo isto não está de acordo com o ideal anarquista que é pacifista por excelência, mas tenho que aprofundar ainda este tema e encontrar quem pense como eu. Até agora e a esta distância da frente, todos querem ser heróis. Mas, mesmo assim, há aqui uma descrença profunda na vitória. E recordou a arenga do capitão Astrov quando garantiu numa das aulas que o exército russo não seria mais derrotado como em Tannenberg e que reconquistaria a perdida Polónia Ocidental.

Olga D. ficou consternada quando terminaram aqueles dois meses de convivência com os seus "dois" homens. Se é certo que tinha saudades dos filhos e queria regressar a casa, também é verdade que não suportava a ideia de abandonar Piotr ou Anton, tanto mais que acreditava que não deveria regressar vivo da carnificina. Na sua opinião, Anton não era homem para regressar incólume da frente pois faltava-lhe certamente o espírito combativo e a grande velocidade de reacção e raciocínio. Por outro lado, era pessoa para suportar estoicamente tudo o que o destino determinar e, como tal, ir para onde o mandarem, logo para os piores sítios. Talvez o espírito do anarquista o tivesse modificado um pouco, levando-o a ser mais esperto e não se sujeitar ao perigo de qualquer maneira. Mas, tudo indicava que a Rússia só perdia nesta guerra, principalmente homens, a começar pela quase totalidade dos oficiais subalternos da reserva.

Efectivamente, o império russo, depois das grandes derrotas junto aos lagos masúrios da Prússia Oriental, necessitava de se recompor para novas ofensivas. Ao novo Piotr Ivaneivitch não deram sequer um período de licença, foi metido num comboio que nem em Moscovo parou, depois de se despedir muito rapidamente da sua Olga. E eis que se viu numa trincheira dos Cárpatos, integrando um dos batalhões do exército do general Brusilov. Deveriam desencadear a grande ofensiva de Maio de 1915 que, no dizer dos oficiais imperiais com quem Piotr falava, iria quebrar a barreira do maciço montanhoso dos Cárpatos e permitir a passagem para a grande planície húngara do Império austrohúngaro.

- Chegaremos assim rapidamente a Budapeste e Viena -. Disse o capitão Igor, comandante da companhia que integrava o Piotr, acrescentando: - Ainda havemos de tomar um "Melange" no Café Central, na Herrengasse, junto ao Palácio Antigo dos Habsburgos, em pleno centro de Viena. Já lá estive, mas foi antes da guerra, aquilo estava cheio de revolucionários nossos compatriotas. Não sei o que foi feito deles. Provavelmente estão na Suíça ou a combater ao lado dos nossos inimigos.

Piotr actuava como um autómato, já que ali mesmo em Omsk, trabalhou na organização de mais uma das muitas novas companhias que deveriam ir para a frente substituir as muitas outras que foram completamente dizimadas. Com o capitão Igor estabeleceu-se rapidamente uma boa relação, de tal modo que o novo Piotr chegou a falar-lhe no anarquismo como tinha lido nos, agora, seus papéis; falou-lhe em Bakunin e Kropotkin num contexto em que se deve ao Estado a existência de todas as guerras.

- Talvez seja isso, respondeu-lhe, - mas olhe, acredito que a guerra é própria da natureza humana e se técnica e culturalmente se avançou muito, talvez ainda não deixámos de ser os mesmos selvagens de sempre, principalmente quando se trata das nossas relações com os outros, esses são sempre os malandros e os culpados de tudo.

- Será que somos afinal uns animais especializados simplesmente em matar e que mataremos tanto até acabarmos com a nossa própria espécie? Perguntou, por fim, o aspirante Piotr.

Os preparativos da companhia não permitiram muitas conversas, tudo tinha de ser organizado, distribuído o armamento e fardamento e os recrutas tinham de receber os primeiros ensinamentos e treinos em poucas semanas antes da partida para a frente.

Foram pois directos à frente. O batalhão de infantaria do coronel Nikolai Petrovitch apeou-se na pequena cidade de Przemysil nas margens do rio San, a umas oitenta verstas da frente, que então acompanhava o rio Visloka também. Chegaram no alvor da primavera, nos primeiros dias de Maio. Vinham convencidos e preparados para participarem na grande ofensiva final russa que os iria conduzir à vitória, apesar de só metade dos seus elementos estarem devidamente armados.

De madrugada ainda, Piotr deveria conduzir metade da companhia do capitão Igor em linha de atiradores. Na sua frente, os granadeiros rastejariam silenciosamente, só iluminados pelas clarões das explosões das granadas e pelos feixes dos holofotes de campanha. Depois seriam as muitas meias companhias a atacar ao longo da frente, todas com comando individualizado de modo a evitar os problemas havidos com comandos de batalhão em ataques pela terra de ninguém na escuridão. Obedeceriam ao novo sistema de ataque "à francesa". Os granadeiros deveriam cortar o arame farpado e responder ao fogo das trincheiras inimigas lançando granadas de mão.

Devidamente instruído, Piotr saiu protegido pela escuridão, ordenando aos seus atiradores siberianos para cerrarem fileiras e não se deixarem intimidar pelo fogo adverso. A cavalaria cossaca atacava em numerosos pontos da frente, aproveitando o facto de os austríacos estarem demasiado ocupados com as acções dos granadeiros e dos atiradores da infantaria siberiana. Não decorreu assim o plano concebido pelos russos. As metralhadoras austríacas "Schwarzlose" ceifaram, a uma cadência de 400 tiros por minuto, as pernas da cavalaria, e não só, também os corpos dos orgulhosos lanceiros cossacos que não conseguiram aproximar-se à distância das suas obsoletas lanças de ataque. Corpos de cavalos e cavaleiros ficaram estendidos por toda a parte para gáudio das gigantescas formigas amarelas dos Cárpatos.

Os homens de Piotr e dos resto da companhia de Igor, além de outras unidades semelhantes, procuraram o obrigo de uma pequena elevação de terreno encimada por alguns arbustos e restos de árvores. Procuraram escavar algo parecido com pequenas trincheiras e permaneceram aí até ao raiar do dia. O capitão Igor praguejava com toda a sonoridade das suas cordas vocais e a Piotr disse: - Ao levantar do sol, passaremos a ser uma espécie de patos para o tiro austríaco. Sim, patos incapazes de voarem para serem caçados mesmo no chão.

Um estafeta ainda prometeu reforços, mas os obuses austrohúngaros não os deixavam aproximar-se daquela ilhota em plena linha que separa a morte da vida. Piotr ainda pensou a que reino pertenceria já, ao dos vivos ou ao dos mortos. Deitados, Piotr e os atiradores siberianos procuravam alvejar as trincheiras adversas ali ao pé, a poucas dezenas de metros de distância. Só o tiro siberiano impedia os austríacos de acabarem com aquela nova frente de homens quase desprovidos de protecção. Piotr não se cansava de dizer para atirarem aos metralhadores e às poucas cabeças que se atreviam a subir aos parapeitos das trincheiras. Dos obuses estavam quase salvos, já que a proximidade da trincheira austríaca fazia com que as granadas explodissem lá mais para trás. De resto, Piotr não deixava de dizer a palavra mais ouvida daquele dia, "gavno", merda, muitas vezes. Mesmo o aparecimento de alguns reforços que deixaram muitas baixas no terreno não levantou o ânimo daqueles combatentes. Apesar das ordens dadas pelo alto-comando para se lançarem ao assalto das trincheiras inimigas não se moveram, a grande ofensiva russa do general Brussilov estava ali a soçobrar inteiramente.

E foi mesmo a grande desilusão, os alemães e austríacos tinham iniciado a sua ofensiva mais a norte e atravessado as linhas russas, cruzado o Visloka e avançaram em direcção ao San, a umas cem verstas de distância. Depois de se retirar para as suas antigas linhas e destas para uma nova linha de emergência à retaguarda, Piotr viu espantado as unidades de artilharia em retirada para postarem os seus canhões de 107 mm mais para trás, enquanto a infantaria recebia ordens para avançar e colmatar as brechas. O desastre parecia ser total; a 14 de Maio, a unidade de Piotr retirava-se de Jaroslav com muitas baixas e sempre em combate, deixando as forças germano-austríacas atravessarem o rio San. Nos arrabaldes daquela pequena cidade, outra linha de trincheiras e fortins de terra estava já a ser construída por milhares de chineses contratados no oriente e que trabalhavam seminus para não estragar a pouca roupa que traziam, enquanto a infantaria ia ocupando as novas trincheiras e os maqueiros não paravam de trazer feridos e mortos para a retaguarda. Um pouco para trás ficavam alinhadas as roupas dos chineses que ninguém tirava por respeito para com tão valentes trabalhadores. De repente uma granada austríaca explodia no meio dos "coolies", ceifando umas dezenas de vidas. Os outros continuavam o trabalho, enquanto decidiam entre si numa espécie de jogo incompreensível quais seriam os herdeiros das roupas dos mortos.

O espectro da morte estava aí aliado à possibilidade de uma grande derrota. O capitão Igor de revólver em punho e sabre quis levar os seus homens a saírem de uma trincheira para enfrentar os "boches". Mais de um terço dos membros da companhia de Piotr ficaram estendidos no chão e o capitão apanhou um tiro num braço, antes de se retirarem para as novas linhas.

Apressadamente, russos e chineses cortavam troncos para escorar as novas trincheiras muito estreitas e pouco profundas, sem estrados. Quando chovia, ficavam frequentemente com água até ao joelho, o que era um tormento para Piotr que não queria ver as suas botas de bom cabedal estragadas com tanta água. Sempre que podia untava-as com todos os tipos de gordura para as tornar o mais resistentes possíveis à água. Nos dias secos, quando lustravam, eram o orgulho de Piotr.

. O início da primavera não proporcionou ainda uma temperatura amena, o vento que percorria as montanhas dos Cárpatos era gelado. O que valeu a Piotr foi terem equipado a sua companhia siberiana com gorros de astracã e casacos almofadados do tipo chinês abotoados até ao pescoço como os dolmens de hussardos. As calças também eram almofadadas, sendo as botas dos não graduadas mais curtas que as dos oficiais. Essa roupa substituía o grande capote e proporcionava um excelente acréscimo de mobilidade, mas os oficiais mantinham o capote em todas as circunstâncias. Só a preocupação com o fardamento, mantimentos e armamento, sempre restritos e em falta, é que entretinham o espírito de Piotr, reduzindo a náusea sempre sentida quando pensava que tudo aquilo era para matar outros cidadãos. Como tinha antes confessado à Olga, não estava preparado para matar quem quer que seja, até porque considerava-se como que um cidadão do mundo sem inimigos.

"Não devo pensar no que será feito agora, devo preocupar-me com o trabalho geral da companhia e esperar que a guerra acabe. Pena que seja cada vez mais descrente de todo e qualquer deus, se não rezava a um qualquer omnipotente do além para que faça terminar esta loucura dos homens e não permita que nos transformemos todos em carniceiros de nós mesmos", pensava frequentemente Piotr. Ainda disse para os seus botões: "como podemos nós, tão encarniçados assassinos em massa, ter sido criados à imagem de Deus?"

- Apesar da retirada, ainda vamos aguentar isto, gritou-lhe o capitão Igor, acrescentando: dos austríacos nada temos a temer, as suas "Mannlicher" não prestam para nada, mas o pior são os alemães com as suas "Mauser"; mesmo assim, as nossas novas "Mosin" quando disparadas com coragem sustêm qualquer ofensiva.

Piotr não estava convencido disso, mas uma vez instalado nas novas trincheiras achou que o ímpeto do inimigo podia ser sustido, principalmente porque chegavam à frente metralhadoras novas. Competia a Piotr precisamente a ligação à companhia de metralhadoras do seu batalhão, comandando um pelotão de infantaria que ladeava outro de metralhadores e que deveria avançar logo que estes tivessem conseguido uma cobertura suficiente no terreno. Aquilo era uma arma fatal para Piotr, a nova "Maxim 08/15", superior à "Maxim 1908". Podia levar um cunhete de 50 balas e um bipé portátil, o que dava uma facilidade de manobra em termos de montagem muito rápida em deslocação, ou então ser colocada num tripé e alimentada por cintas de 250 balas, susceptíveis de serem disparadas em menos de meio minuto. Com quatro serventes, aquilo era terrível e mais uma vez uma série de novas metralhadoras paralisaram o avanço germano- austríaco.

Em acção, Piotr nunca chegou a pensar que era o Anton D. deixado na Sibéria, pelo que não sentia nada de especial por lutar contra os compatriotas do "falecido" . A presença da morte era tão constante de ambos os lados que não podia daí tirar qualquer conceito de moralidade. Piotr começou a suspeitar, a ter a certeza mesmo, que dali não sairia vivo, aparentemente ninguém poderia sair vivo de uma guerra tão tremenda, pensou, quando a trincheira foi bombardeada infernalmente pelos obuses austrohúngaros. Com meticulosidade, os artilheiros inimigos procuravam neutralizar os postos das "Maxim" e Piotr encolhia-se todo na trincheira com a sua "furachka" de pano na cabeça. Os capacetes de aço não tinham chegado ainda àquele sector da frente ou a todo o exército russo, o que tornava difícil o tiro de parapeito de trincheira com as "Mosin". O capitão Igor disse um dia: - Não tenham medo, o mais difícil que há é acertar na cabeça de alguém e, de resto, é quase uma felicidade morrer com um tiro na cabeça, é instantâneo, não se sente nada. O pior são os gases e nós aqui ainda não temos máscaras antigas em quantidade suficiente. maldito estado-maior.

- O gás não faz mal, - contradisse o tenente Fadeiev - no fim do Inverno fomos bombardeados com gás e nada aconteceu.

- Não aconteceu porque aqui fez um frio dos diabos e parece que o gás gelou, mas agora, na Primavera, não sei! - retorquiu o capitão Igor.

Nos momentos calmos, principalmente nocturnos ou nas poucas horas que dormia na retaguarda numa casa de camponeses, Piotr sonhava então com Anton D., e só por causa da linda Olga Alexandrovna de que nada sabia e que desejava voltar a sentir nos seu braços com uma necessidade cada vez mais imperiosa. Nas trincheiras, a família assume uma importância tremenda e é assunto de discussão. Claro, neste aspecto Piotr não mentiu, disse só que como ex-anarquista não tinha casado, mas vivia com uma senhora da qual até tinha filhos. O capitão Igor e o tenente Fadéiev acharam isso natural nos tempos que corriam, chegando o tenente a dizer: - Vocês os intelectuais e estudantes têm mesmo que ser diferentes. Os estudantes de Moscovo são quase todos assim, pena que vão deixar essas moças sem homem, já que as nossas perdas em oficiais têm sido tremendas. Mas tu, Piotr, és tão anarquista como eu, ou seja, nada. Um anarquista nunca podia ser um militar tão consciencioso como tu e, mesmo, tão valente. Ontem não tiveste medo das balas "boches"; com o teu exemplo conseguiste pôr todo o pelotão meio fora da trincheira a disparar com eficácia. Não deixaste os "fritzs" chegarem até nós. Quantos é que ficaram lá estendidos, chegaste a contá-los?

Apesar dos bombardeamentos quase contínuos, a companhia de Piotr, tal como as restantes unidades, aguentaram a frente e com a notícia de que a Itália entrava na guerra ao lado dos Russos ficaram moralizados. Obviamente que os austríacos tinham de desviar forças para outras frentes. Mas, foi sol de pouca duração, umas duas semanas depois, a 3 de Junho de 1915, às primeiras horas da madrugada, o mundo parecia que ia acabar. Por toda a parte explosões acompanhadas por aquele horrível cheiro doce do gás mostarda. Piotr, coberto apenas com a sua "furachka" de pano e pala na cabeça mal se atrevia a pôr-se direito e disparar a sua "Mosin" e, menos ainda, saltar da trincheira com revólver numa mão e sabre na outra, apesar de ter pensado nisso ao admitir que o gás não estaria a ser disparado sobre as linhas do inimigo. Aí, talvez conseguisse um "abrigo" conquistado a tiro. Piotr tapava a boca e o nariz com um lenço molhado, enquanto procurava despertar os seus semimortos soldados que no fundo da trincheira iam jazendo inânimes por terem respirado aquela nuvem de gás que se apoderou da trincheira de Piotr.

Meio tonto, com uma fortíssima dor no pulmão, Piotr ainda viu uns "monstros" aproximarem-se deles. Caras com gigantescos olhos de vidro e umas bocas disformes de onde pendiam línguas em forma de latas redondas e todos traziam a língua de fora, talvez para fazerem troça daquela soldadesca de carne e osso. Por cima, gigantescas cabeças de aço com um ponta metálica apontada aos céus. Os seus braços eram metálicos em forma de cano terminado num faca comprida. Um desses braços remexeu o corpo de Piotr e por uma razão qualquer, talvez por saber que o ex-anarquista ainda vivia, gritou-lhe em alemão "Gefangen". Estou preso nos infernos, afinal não há só um diabo, há muitos, pensou ainda Piotr antes de perder de vez os sentidos. Nem o capitão Igor, nem nenhum dos camaradas de Piotr conseguiram dar uma informação correcta sobre o que aconteceu a Piotr. Registaram-no como desaparecido em combate.

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