Segunda-feira, 23 de Fevereiro de 2004

A Fábrica dos Memes

A casa rústica e ampla foi mandada arranjar pelo velho Professor Lopes da Silva para instalar aquilo que designaria por «Fábrica dos Memes», um clube de pensadores da chamada terceira idade ou quase.

 

Queria pôr aí as pessoas a pensar filosofia em termos puramente práticos e teóricos com a ideia de que a filosofia é uma espécie de consciência do saber de todos os dias, prático e teórico, a procura da resposta a qualquer pergunta sobre o que é e porque é.

 

Mas, fundamentalmente, Lopes queria descobrir os memes que povoam os circuitos neuronais e não há que escolher cérebros especiais ou muito cultos para isso; todos, sem excepção, replicam ideias culturais básicas; todos encerram em si milhares ou milhões de anos de sensações neuronais susceptíveis de serem replicadas de mente em mente e, como tal, transmissíveis nesse imenso biótopo húmido que é o meio cerebral universal constituído pelos cérebros humanos actuais, passados e futuros.

 

Chamou-lhe fábrica não tanto porque pretendesse fabricar memes ou ideias replicáveis ou produzir algo de novo, uma teoria, uma mundo-vivência ou outra coisa qualquer.

 

Não, Lopes limitou-se a reproduzir o nome de um local perto da casa, denominado «Sítio da Fábrica» por ter lá estado em tempos idos uma fábrica de tijolos sobranceira à arriba baixa que dava para um braço da ria.

 

Para justificar ainda mais o nome, foi lá buscar tijolos espessos abandonados aí em grande quantidade e fez com eles uma espécie de lareira e uns enfeites rústicos para a sala de reuniões.

Aqueles tijolos espessos eram muito antigos, provavelmente seculares, deveriam ter servido para erguer paredes-mestras muitos anos antes de aparecer o cimento armado e antes do uso de pilares e barrotes de madeira.

Aqueles inquebráveis tijolos davam paredes fortíssimas e parece que serviam também para construir qualquer coisa como lajes sólidas sobre as quais se ergueriam as casas, talvez, ou se ergueu apenas a antiga fábrica de tijolos.

Efectivamente, foi de um solo atapetado desses tijolos que o professor Lopes os foi retirar ao cair de uma noite de inverno. Quando se dedicava a esse trabalho de rapinagem pensava que aquela fábrica tinha uma justificação nos tempos em que não existiam meios de transporte terrestres, excepto o carro de bois. Daí a necessidade de estar à beira da Ria Formosa para carregar o material para barcos que o levariam a outros pontos da costa.

Os tijolos vermelhos fascinavam o professor, tal como as tijoleiras brilhantes e vermelhas. Por isso, cobriu o chão da sua «fábrica» com tijoleiras pequenas. Além disso, mandou igualmente revestir uma parede com tijolo ornamental que depois cobriu com um verniz brilhante.

Aquilo ficou lindo, segundo a sua apreciação estética, nada exigente, por sinal. Comprou mobiliário de pinho claro e arranjou uns candeeiros rústicos, tipo roda de carroça. Lopes pretendeu organizar seminários.

 

Para o efeito, enviou convites às mais diversas pessoas, tanto nacionais como estrangeiras, incluindo organizações como «clubes de leitura filosófica» ou «clubes de escrita criativa».

Queria ligar a filosofia à escrita criativa e obter um desiderato mémico nas suas palavras. O professor estava obcecado pelos memes e pelas suas paixões literárias e filosóficas. Dizia que eram tudo assuntos para gente graúda, gente com a coragem necessária para serem velhos sem se despedirem de nada do que é a vida, a começar por saberes novos.

Fascinava-o a ideia de memes juvenis em cabeças idosas ou o inverso, memes antigos em cabeças juvenis. Tanto o sentido do ser como do nada como ser ou ente também fascina qualquer cabeça e representa para todos um autêntico quebra-cabeças.

 Lopes costumava dizer nas suas aulas que aos 71 anos de idade, Kant escreveu «A Metafísica dos Costumes» e com 81 anos Goethe escreve o «Faust II», enquanto que aos 80, Verdi escreve a ópera «Falstaff». E aos 100 anos de idade, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, autor de «Verdade e Método» ainda continuava a escrever, assistir a congressos, seminários e muitas reuniões internacionais. E a dizer que «a retórica é o único método filosófico», deixando assim entender a Filosofia como uma questão de memes , unidades culturais fraseadas, e nada mais.

Só os memes replicáveis, isto é, os retóricos passam e cimentam o pensamento cultural da Humanidade.

Para o professor Lopes, os memes explicam o passado e o presente, tal como revelam o futuro, já que todo o pensamento do futuro não deixa de ser a replicação de memes anteriores, eventualmente sujeitos a pequenas mutações como acontece com o código genético, ele também uma sequência de informações.

Os memes conquistaram os espaços neuronais do planeta terrestre, preparando-se para extravasarem para o espaço sideral, explicam a filosofia, nomeadamente a gnoseologia, ou teoria do conhecimento, pois os memes são isso mesmo, o conhecimento humano, e funcionam com uma lógica própria, as lógicas da filosofia, além das que se vão descobrindo pouco a pouco.

 

 - Os Memes , pázinhos, - costumava dizer o professor Lopes nas suas aulas, - são a estrutura pensante da civilização virtual que estamos a erguer com a Net, a TV e sei lá com o que mais há de vir. Reparem, pázinhos, foram os memes que levaram uns tipos nas selvas a inventar uma espécie de tambor para sincopadamente transmitir à distância um tam-tam significante.

Antes disso, deram todo o tipo de flexões às cordas vocais para emitir sons com sentido que deveriam ser replicados com fidelidade, fecundidade e longevidade de umas pessoas para outras e de gerações para gerações.

Mais tarde, arranjaram uns signos gráficos para traduzir os memes e os sons susceptíveis de serem compostos em memes . Depois vieram os sinais ópticos transmitidos à distância de torre em torre até os senhores Galvani e Volta descobrirem que o fenómeno quase inexplicável a que chamaram electricidade e que produzia uma faísca num circuito interrompido e que, estranhamente, produzia o mesmo fenómeno noutro circuito igual colocado no extremo da sala e sem que alguém tivesse tocado ou feito algo nesse segundo anel provido de um pequeno corte.

 

Os memes nunca mais pararam; saltavam por sinais Morse para passarem à própria reprodução da voz num electroíman e depois com a imagem do falante numa válvula de raios catódicos.

Chegou, enfim, o Terceiro Milénio com os Memes a povoarem o Mundo dos servidores da Net.

Pázinhos, acabava o professor Lopes por dizer, talvez em breve o sistema neuronal que temos no interior da caixa craniana deixe de ser necessário, a Net encarregar-se-á de pensar por todos os nós. Bem, pázinhos, espero bem que não, mas nunca se sabe. Lopes da Silva gostaria de conquistar para a sua iniciativa os grandes filósofos mundiais.

Para isso pôs a sua iniciativa em circulação na Internet mas ninguém respondeu, aquilo perdeu-se no mais de um milhão de documentos respeitantes às ciências do pensamento. Daí que resolveu orientar as suas actividades num sentido mais modesto, chegou a chamar-lhes Clube de Leitura Filosófica. Assim, no seu entender, em vez de um grande filósofo poderia estar um livro que seria lido e comentado pelos presentes.

 E resolveu começar pelo princípio, ou seja, a evolução mémica, o darwinismo da psique cultural.  Lopes convidou várias personagens, mas poucos vieram, alguns professores e assistentes universitários declinaram os convites com sorrisos nos lábios.

O mundo dos filósofos e pensadores desconhece os memes , é assunto da biologia e, talvez, da sociobiologia. Os memes surgem na obra de Richard Dawkins «O Gene Egoísta» como explicação da cultura em analogia com o código genético. Efectivamente, a molécula de ADN que forma o código genético é ela mesmo o conjunto das peças de informação determinante da vida.

O meme é a unidade genética do pensamento, portanto, da cultura, fazendo a analogia com o gene. Mas não se trata só de memes analógicos, mas sim da tomada de consciência que há algo de semelhante entre a construção do Mundo do Pensamento e a do Mundo Biológico, ambos fazem parte da vida e são interactivos entre si. Os circuitos neuronais são o suporte plástico do pensamento, logo foram os genes que determinaram o aparecimento dos memes .

 

Lopes da Silva resolveu  organizar um seminário. Mandou imensos convites, mas só sete pessoas responderam e predispuseram-se a participar. Lopes acabou por dizer aos amigos que o destino compôs as coisas como deviam de ser, já que sete participantes é mesmo um número correcto. O número cabalístico próprio para um seminário mémico. Com mais, as discussões tornar-se-iam impossíveis.

Preparou três computadores ligados à Internet e arranjou os quartinhos necessários na sua mansão fabril. O seminário deveria decorrer de Sábado a Sábado sob o tema «Os Memes na Formação da Mente Post-Pleistocénica».

Veio o Diogo Sotto Maior e o Luís Monteiro bem como o Luís de Almeida e o Rodrigo da Silva, além do Júlio César e duas senhoras, a Mariana e a Rita do Talho. Tudo gente da escrita, mas nenhum génio, nem sequer alguma personalidade famosa. Escreviam em blogs,  na revista «Literatura Estrela» e nalgumas publicações pouco ou nada conhecidas.

Alguns tinham publicado livros, mas à sua custa e quase sem distribuidor. Levaram as suas publicações para as trocar. Apesar da falta de sucesso dos participantes e de ninguém de fora do país ter aceite participar, não havia aí espíritos amargos, rancorosos a pretender que são uma espécie de génios, mas a sociedade, a globalização, a política, a corrupção e não sei que mais não os deixam vir à tona.

Não, nesse grupo reinou sempre um invejável optimismo e uma consciência de que o que não se consegue pessoalmente não necessita de ser culpa da sociedade.

- Eu sou o meu maior inimigo -, costumava dizer Lopes da Silva, referindo muitas das suas falhas e erros causadores de não poucos insucessos na sua vida.

 

Vieram todos com uma alegria juvenil apesar estarem na casa dos sessenta, excepto o Luís de Almeida que só tinha cinquenta e cinco anos de idade. Lopes da Silva recebeu-os de braços abertos durante todo o Sábado, informando que o Seminário começaria na segunda-feira.

No Domingo teria uma pequena reunião de apresentação mútua e depois iriam passear nas redondezas, devendo passar a fronteira e ir a Huelva e alguns sítios do Coto do Doñana.

 

Efectivamente, o Seminário começou na segunda-feira logo pelas 9 horas da manhã. Toda a gente estava bem disposta e a primeira sessão começou por um período mudo de meditação seguida da tomada de palavra por quem quisesse dizer algo. Depois o professor Lopes iria expor a sua teoria do evolucionismo da mente, seguindo-se os debates.

O silêncio instalou-se na sala, Diogo Sotto Maior olhava para o tecto de olhos semi-cerrados, pensava em algo que ninguém sabia, ou não pensava em nada, preparava a mente para receber novos memes . Fazia uma espécie de purificação mental pela ausência total de qualquer pensamento, começando por fixar a vista numa mosca. Depois quando esta desapareceu manteve os olhos fixos no local sem nada querer saber ou ouvir.

O sistema de recepção mental estava como que isento de qualquer actividade, os circuitos neuronais descansavam, aparentemente não estavam a tratar mais informação. O resto do pessoal entretinha-se na meditação nirvana, na busca do nada como era habitual nas sessões de psicologia da mente. Passados uns quinze minutos, Lopes levantou-se e muito sério disse que tinha algo de importante a comunicar, mas que só o fará depois dos presentes usarem da palavra, se assim o entenderem. O silêncio voltou à sala, ninguém quis usar da palavra. Por fim, o Diogo fez um pequeno sinal com a mão e disse.

 - Estamos à espera dos memes , eles que venham. Não sei ainda bem o que são os memes , mas imagino.

- No fundo, estava a pensar que se não tivesse fala nem qualquer tipo de capacidade de expressão digital, os memes seriam só imagens e, provavelmente, eu teria muita dificuldade em os recordar e replicar. Vejam! Na minha mais tenra infância, os meus pais ensinaram-me a falar. Um dia voltaram-se para um cão e apontaram com o dedo, dizendo cão, cão, cão. Eu deveria ter passado a dizer ão, ão, sempre que via o bicho. Terá sido um dos primeiros memes que recebi ou a nossa máquina de circuitos neuronais já traz algum software de origem?

- Tens razão, - disse, por fim Lopes da Silva.

 - A Humanidade fez uma importante descoberta, talvez a mais fundamental de todas. A de que existe uma segunda vida no nosso limitado planeta. A dos memes que povoam as mentes, o biótopo húmido, que numa dada fase da evolução das mentes humanas deixaram de estar ligadas ao modelo genético molecular dos homens e bichos. Os memes são os genes das ideias que povoam as mentes.

 

Seguiu-se outro longo período de silêncio. Os memes largados pelo professor replicaram em cada uma das mentes ali presentes.

- E os memes apareceram com a fala ou são anteriores? - Perguntou Diogo Sotto Maior.

- É evidente que as recentes descobertas na mina de lignite de Bilzingsleben na Alemanha mostram um vasto conjunto de restos deixados pelo "Homo Erectus" há uns 400 mil anos atrás. Descobriram-se ossadas do género Homo bem como restos de comidas, dardos com pontas afiados e até machados com facas de pedra coladas com pez de folhas de bétula, um produto químico nada fácil de fabricar a partir da destilação controlada de folhas da referida árvore.

- Assim, o «Homo Erectus», nascidos há mais de milhão e meio de anos em África, evoluiu na base da inteligência e da técnica, tendo dominado o fogo, curtido peles e caçado os grandes animais da tundra fria da Europa glacial. Tudo sem dominar a fala, emitindo apenas sons guturais. Desapareceu inexplicavelmente fora de África.

A Europa e partes da Ásia foram sendo povoadas a partir do continente africano por grupos de indivíduos do género Homo como o Homo antecessor, Homo heidelbergensis que não seriam mais que raças regionais do Homo Erectus.

Só muito poteriormente é que apareceu o primeiro Homo sapiens, igualmente vindo de África, o chamado Homem de Neandertal que também não dominava a fala, mas transmitia memes » pela extraordinária capacidade de imitação que o género Homo possuiu, realiazável pelas duas mãos livres associada à posição erecta e bípede.

- A fala, meus amigos, deve ter aparecida muito mais tarde; talvez há pouco mais de 50 mil anos em resultado de uma mutação que fez baixar a laringe e permitir modular os sons emitidos pelas cordas vocais das mais diversas maneiras. Mas, o modelo cultural já se tinha imposto ao género Homo, mesmo que quase mudo. Há quem diga que antes da fala havia já uma pré-escrita e que o Homo Erectus de há 400 mil anos deixou ossos de elefante com marcas e sinais que revelavam, entre outras coisas, algo que poderia ser um calendário lunar e possuiu mesmo uma espécie de altar ritual em que foram encontrados fragmentos de crâneos abertos artificialmente para extrair a massa cerebral. Faziam-no como um rito aparentemente sagrado ou por fome de fósforo. Pois é sabido que os componentes fosfóricos são determinantes para a inteligência humana e que o uso da mesma provocou uma certa carência de fósforo que resultou na utilização em grande escala do tutano dos ossos como alimento.

Os presentes ficaram boquiabertos com tais revelações do prof. Lopes da Silva.

Instalou-se o silêncio. O pessoal tinha de digerir esses novos memes antes de entrar de novo em comunicação. Diogo preparou-se para dizer algo e pediu a palavra.

 

 - É verdade amigos. O enorme cérebro do homem de Neandertal com cerca de 100 cm3 a mais que o nosso não foi capaz de conseguir as mesmas realizações do «homo sapiens sapiens» ou Homem de Cro-Magnon, apesar de não lhe faltar inteligência?

- Simplesmente porque tinha o palato muito baixo e a abertura entre a laringe muito reduzida, o que não permitia fazer entrar ar na traqueia de uma forma modulada. Mas, dizem os especialistas que os últimos homens de Neandertal teriam já evoluído no sentido de alguma fala e já exprimiam bastantes sons significantes.

Mesmo assim desapareceram e foi o «Homo sapiens sapiens» que, por razões puramente fisiológicas, inventou a fala.

Sim, mentalmente as espécies homo já poderiam ter falado há mais de um milhão de anos.

Nós os «sapiens sapiens» inventámos a linguagem oral e, principalmentente, a mentira. E com ela fizemos e fazemos muito. Juntamos populações em nações, impérios e religiões e conseguimos congregar esforços de milhões no domínio da natureza terrestre e, agora a iniciar-se, no domínio do espaço interplanetário.

Fazemos da mentira grandes verdades porque inventamos memes que se replicam e tornam-se reais, mesmo quando desprovidos de qualquer verdadeira materialidade.

Veja-se a ideia de Deus? Deus é, sem dúvida, um dos memes mais bem sucedido que a Humanidade inventou. Sim, a ideia de Deus e do Sagrado que nada tem a ver com uma realidade exterior ao Homem, mas que passou a existir em milhões de arquitecturas neuronais como se fosse algo de verdadeiro, comunicado directamente do «além» para o cérebro humano.

Ora, sabemos que os nossos neurónios não recebem comunicações inconscientes e fora dos meios sensitivos exitentes como visão, audição, olfacto e tacto.

- Mas em concreto o que são os memes ?- perguntou a jovem Mariana.

O professor Lopes respondeu com uma longa explicação, dizendo:

 - Costumo começar pelas teorias do filósofo norte-americano Daniel Dennet que descreveu todo o processo da evolução como um algoritmo, isto é, um processo mentalmente não muito complicado que uma vez seguido na sua ordem produz um resultado. Assim, Dennet descreve a teoria de Darwin como esquema criador de «design» a partir do caos sem uso da mente.

O objecto criativo tem de resultar quando milhões de criaturas durante milhões de anos produzem resultados em maior número que os de outros. Isto, graças ao processo replicativo da genética. E resultou. Por isso estamos aqui, agora para almoçarmos e depois continuarmos a discutir o que mais podem ser os memes .

publicado por DD às 21:23
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Segunda-feira, 9 de Fevereiro de 2004

O INTELLECTHUS ARCHETYPUS

     Fui à padaria procurar o Prof. Viana para lhe falar de Kant. Não é que o professor de filosofia se dedique ao negócio da confecção de pão. Nada disso. A padaria transformou-se num espécie de café onde o professor costuma ir ler qualquer coisa, enquanto espera pela chegada do pão fresco do fim da tarde.

    Logo que o vi disparei. Faz hoje duzentos anos que as arquitecturas neuronais de Immanuel Kant degradaram-se repentinamente para um estado de matéria caótica em putrefacção. O biótopo húmido que foi o notável cérebro de Kant deixou de fazer parte daquela única matéria que conhecemos no Universo que se reconhece a si mesmo e diz eu.

    Viana sorriu e respondeu, - lá vem você com a sua teoria dos memes.

    - É verdade.  Disse-lhe. E de certo modo, Kant descobriu os memes, ou não foi ele que abriu a razão ao Mundo, afirmando que não há razão pura sem razão prática. Sim, mas não se esqueça dos filósofos gregos e de Abelardo, esse notável pré-escolástico teorizador dos universais, e não são os conceitos universais verdadeiras bases da genética mental das ideias e do pensamento. Claro, todo o pensamento é mémico desde o homo habilis ou antes mesmo. Por isso Kant, sem ter conhecimento da evolução e, menos ainda, da existência das espécies homo que povoaram durante mais de dois milhões de anos o nosso pequeno Planeta, inventou aquilo que designou por conceito limite, o intellectus archetypus.

    E é extraordinário que um pensador tenha conseguido dizer, há mais de duzentos atrás, que aquilo é um conceito limite, que não limita apenas, mas que remete também para o que limita, acrescentando ainda que não é uma construção fantástica, antes uma analogia com o entendimento discursivo do homem, como sintetizou Heinemann em A Filosofia no Século XX. Kant morreu em Königsberg sem saber ao certo o que era o intelecto arquétipo, portanto, mais que os arquétipos definidos por Platão, ou seja, sinónimo de ideia, já muito próximos dos memes ou genes do genoma mental.

    Kant conhecia, naturalmente, a definição dada pelos filósofos estóicos ao conceito de arquétipo como sendo a alma universal da qual resulta a alma individual e que encerram a consciência de Humanidade replicada para o indivíduo.

    Para Kant, o intelecto arquétipo seria uma forma de entendimento divino ao qual o Homem não pode penetrar pois não lhe foi concedida uma intuição supra-sensível.

    Tem razão, - diz-me o Viana, - mas eu confesso a minha ignorância, nunca tinha ouvido falar em memes antes de me falar deles.

    - Sem os memes não estaríamos aqui a falar sobre Kan, - retorquit.

    -  É que antes dos memes, segundo a minha percepção da estrutura mental, havia já a função cálculo, sem a qual quase nenhum animal poderia sobreviver, procurar comida, saltar obstáculos, correr, apanhar presas ou procurar vegetais para comer.

    Mas, a capacidade mémica vem do efeito de imitação que pode ter sido determinante para o processo de selecção que conduziu ao desenvolvimento do neo-córtex frontal. E o nosso intelecto arquétipo não é mais que o resultado da replicação do número extraordinário de unidades mémicas que construíram as nossas estruturas neuronais. Já Darwin argumentava que existe uma certa variação genética na habilidade que as pessoas têm em imitar. Da imitação do gesto anterior à Humanidade e que terá tido um ponto de viragem há uns 2,5 milhões de anos quando o homo habilis passou a talhar o sílex para fazer uma ferramenta de corte de animais e peles, o género homo passou à imitação da simbólica traduzida pela expressão oral, ou antes, a própria palavra é uma função mémica, remete para o princípio enquanto é já o limite final.

 

    - Deve ser verdade isso, - respondeu o Prof.Viana. Por replicação imitativa deverá ter-se chegado ao Homo psychologicus no dizer de Nicholas Humphrey, portanto, os humanos capazes compreender que outros possuem mentes e auto-consciência de si mesmo, tornando-se também no ser duplicado como qualquer entidade existencial do tipo heidegeriano. Ser exterior e ser perceptível ou replicante, diria você. Mas, a teoria mémica, a meu ver, provocou a crise dos transcendentais kantianos, já que Kant não conseguiu explicar como conseguimos ter conceitos empíricos.

    -  A resposta é muito simplesmente por replicação mémica, - respondi, antes de tomar a bica e comer uma empada..

 

 

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publicado por DD às 23:00
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REVISTA "Sol XXI"

Grande parte dos contos aqui insertos foram já publicados na revista "Sol XXI" fundada pelo poeta Orlando Neves.

Infelizmente, a revista terminou a sua publicacção e só vai sair um número com o índice de todas as participações.

É pena, porque se tratava da única revista existente em Portugal que apenas publicava textos de autores portugueses ou que escrevessem originalmente em português. A revista não se destinava a divulgar traduções de autores estrangeiros, mas a incentivar a escrita nacional.

As condições de assinatura tornaram-se gravosas pelo alto custo dos portes de correio e nunca o Instituto do Livro proporcionou qualquer apoio a tão valioso instrumento de divulgação e entrada na cultura portuguesa.

Enfim, não havendo editores que editem sem que lhes pague, os muitos amantes e praticantes da escrita em português retiram-se para os blogs onde ainda podem publicar algo sem pagar.

Bem hajam os blogs do "Sapo".
publicado por DD às 16:51
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Domingo, 8 de Fevereiro de 2004

O SUBSÍDIO NÃO VEIO

O empresário Rui de Melo acordou estremunhado. Sonhou que o subsídio não viria mais e, sem qualquer alternativa financeira ou comercial, foi ao seu escritório doméstico. Subiu a uma cadeira e retirou a pistola da caixa de sapatos colocada no cimo de uma estante, carregou-a com uma única bala e disparou no osso frontal. Ficou logo estatelado sobre a sua artística secretária de madeira, exalou o último suspiro enquanto sangrava abundantemente da ferida provocada pelo disparo. As suas últimas palavras foram Pedip, Pedip.


- Não, não pode ser, - disse para consigo - estou apenas a sonhar, os cinquenta mil contos hão-de vir, o projecto que entreguei é bom e está assinado por um especialista na matéria, o doutor Faria dos Santos. Bem, não vale a pena entrar em pânico, vou levantar-me para ir trabalhar.


Mesmo assim, Melo chegou ao escritório acabrunhado e triste. Foi logo ver se tinha chegado algum fax do Ministério, mas nada, só um extracto de contas de um fornecedor estrangeiro com asteriscos nos últimos números e uma frase a dizer que essas contas estavam por saldar.

- Porra, sempre a mesma porcaria, os gajos querem o dinheiro. Não tenho, porra, não tenho; gritou para consigo. A secretária Arlinda ouviu-o a falar e perguntou se estava a dirigir-se a ela.

- Não Arlinda e bom dia. Estou a gritar com os gajos da Gustafson. Querem o dinheiro das duas últimas facturas. Logo que vier o subsídio pago, não sou caloteiro. Estou à espero do Ministério ou do Governo, ou sei lá de que porra.

Arlinda não se admirou muito com o mau humor do patrão, estava habituada e nos últimos tempos era cada vez mais evidente que as coisas não corriam nada bem. Rui de Melo saía cada vez menos de visita a clientes e desesperava, os ordenados dos dois colaboradores, a Arlinda e o Vicente, era pagos com atrasos. Não sabiam onde o empresário ia buscar dinheiro. Os fornecedores tinham deixado de vender seja o que for, queriam o pagamento adiantado. Tanto a Arlinda como o Vicente procuravam já novos empregos, respondiam a todos os anúncios dos jornais.

Os negócios de Rui de Melo há muito que andavam mal, o escritório importava de tudo um pouco e, por vezes, realizava exportações, mas sempre sem a consistência necessária e à custa de muitos descontos que lhe comiam os lucros. Quase sempre o negócio tinha a ver com matérias primas, nomeadamente químicas para a indústria transformadora de plásticos e outras indústrias. Mas, de vez em quando, o Rui de Melo tentava vender máquinas para diversas indústrias e, mesmo, alguns produtos acabados, mas quase sempre sem êxito ou com um sucesso muito relativo. Aquilo não tinha saída alguma, o Melo não era um habilidoso na arte do negócio ou talvez lutasse sempre com falta de capital.

Um dia, Melo estava só no escritório e recebeu um telefonema.

- Aqui fala da empresa Projectopedip, - disse uma voz feminina.

- Estou a falar com a Melo-Ideias e Realizações, Lda

- Sim, minha senhora, e com o gerente em pessoa.

- Pois nós conhecemos a sua empresa desde que recebeu a Estatueta X de Qualidade do Instituto de La Gran Calidad de Madrid. Pelo estudo que fizemos, a sua empresa está apta a ser aconselhada por nós num Projecto Pedip de desenvolvimento industrial. Seria bom termos uma longa conversa pessoal para estudarmos o V. Problema.

Aquilo da estatueta de qualidade foi uma espécie de embuste, Melo foi contactado por um grupo espanhol, preencheu uns formulários e recebeu a resposta que tinha sido qualificado para receber a estatueta de qualidade se pagasse uma verba apreciável para a cerimónia em Madrid e o jantar de recepção.

A reunião com a Projectopedip teve lugar passados uns dias. Melo que não chefiava propriamente uma empresa industrial trouxe à baila um seu velho projecto de fabricar escovas de plástico e agora pensava que seria óptimo conseguir um subsídio para isso. Já sabia onde encontrar máquinas de segunda mão, ou terceira ou quarta, e como arranjar propostas para máquinas novas, matérias-primas, etc. que dariam ao Projecto a consistência necessária e o valor pretendido. Sim, a sua empresa, Melo-Ideias e Realizações, Lda passaria a fábrica de escovas especiais segundo a patente alemã da Bürstenfabrik com as máquinas da Bürsten Maschinen GmbH.

Para a Projectopedip aquilo eraouro sobre azul; um projecto de raíz, como disse o doutor e lançaram-se todos ao trabalho, isto é, à redacção de um projecto de instalação e de viabilidade de uma pequena fábrica de escovas, uns cinquenta mil contos apenas de subsídio mais um crédito bancário de trinta mil para cobrir o plafond exigido.

Melo e a Projectopedip prepararam os orçamentos e o estudo económico de implantação bem como o estudo de impacto ambiental. O fabricante alemão de máquinas forneceu-lhe todas as propostas de máquinas novas com desenhos e esquemas de implantação bem como a listagem de matérias primas e semi-fabricados com nomes e endereços de fornecedores. Além disso, deu-lhe a conhecer o nome de um fabricante de Cáceres que poderia vender em segunda-mão a máquina S 20 destinada, no dizer de Melo, a ensaios de fabrico e iniciação do pessoal.

Sem perder tempo, Melo visitou o fabricante espanhol e reparou que este já tinha algumas máquinas para o ferro velho. Melo interessou-se e prontificou-se a aduirir uma velha S 10 por pouco mais de cem mil Pesetas. Imaginou a instalação de uma pseudo-fábrica com aquela máquina e uns tantos materiais e componentes semi-fabricados.

- Esta merda não me vai custar mais de que uns tezentos contos e saco aos gajos do governo uns cinquenta mil ou mais. È negócio! Claro, vou ter de dar uns dois ou três mil aos tipos do Projectocatano mais und juros ao banco. Disse Rui de Melo para consigo, acrescentando mentalmente: Compro uns lotes de escovas já feitas e se alguém for inspeccionar, vê tudo, matérias primas, semi-fabricados, máquina toda pintada e coberta de óleo e umas caixas do produto acabado. Não vê a funcionar porque, naturalmente, a máquina está avariada. Até posso comprar mais escovas aos gajos de Cáceres e vou vendê-las no mercado nacional como se tivesse sido eu a fabricá-las, apresento as facturas e até os Ivas. Sou um gajo bestial, só desta cabeça é que podia sair um projecto assim. E a propósito de Iva; saco dos gajos como se tivesse investido de novo e entrego só os valores das poucas escovas que vou vendendo. Formidável!

Efectivamente, Rui de Melo passou a andar entusiasmado com as suas ideias e o Mundo passou a sorrir-lhe todos os dias. Sentiu-se como o dr. Pangloss, o sol parecia brilhar mais e a chuva era como que azul. Depois de entregarem o projecto acabadinho e feito no computador com títulos a cores, azul, vermelho e amarelo, tudo encadernado numa bela capa plástica, Rui de Melo ficou exultante de alegria, estava a ver os cinquenta mil contos serem depositados na sua conta mais os trinta mil de empréstimo do banco. Oitenta mil! Nunca tinha sonhado vir a ter tanto dinheiro de uma só vez. Toda a sua vida foi ganhar, receber e pagar logo no dia seguinte. Raramente ficava com mais de dez por cento e, mesmo assim, era para pagar mais e mais contas, ordenados e impostos. Conseguia mandar vir mercadoria a crédito de sessenta ou noventa dias, para a vender também a crédito. O dinheiro era a água numa torneira aberta, passava sem parar.

Antes mesmo de receber o chamado cacau do Ministério, resolveu mandar vir a tal máquina em sucata de Cáceres e, no último momento, adquiriu as duas S 10 aos hispânicos e uma série de materiais e escovas já feitas. Negociou um prazo de noventa dias, pois o doutor tinha-lhe garantido que nesse intervalo de tempo teria o dinheiro. Os espanhóis não se importaram pois estavam a vender sucata.

Dito e feito, Rui de Melo alugou um espaço num vasto armazém de um fabricante de detergentes em Odivelas. Aí colocou o seu material e mandou cobrir tudo com folha plástica depois de besuntar as máquinas com massas lubrificantes para dar um ar de reparação e manutenção. Um amigo, especialista em edição computorizada, prontificou-se a elaborar impressos falsos de facturas de um fabricante de máquinas do Lichtenstein para dar a impressão que as tinha comprado por grossa maquia no exterior.

Tudo parecia de vento em popa para o empresário. O seu maior prazer era folhear a sua cópia do projecto, acariciar-lhe as folhas, ler vezes sem conta a memória descritiva e os estudos técnicos de implantação industrial, económica e ambiental. Uma perfeição, no seu entender. Bem-ditos os quinhentos contos que pagou à cabeça à Projectopedip e mereciam mais, costumava pensar. Aquilo tinhas mesmo de dar resultado, ou não precisava o país de escovas. Sim, milhões de portugueses têm cabelo, além de roupa, etc. Escovar é uma necessidade diária, pelo que não há motivo para que o Ministério da Indústria não aprove mais uma fábrica de escovas, tanto mais que aí nas lojas está tudo cheio de escovas importadas, sim, da China, Alemanha, Espanha e sabe-se lá que países mais.

Começou assim a lenta agonia da espera. Semanas e mais semanas, depois meses. Veio o mês de Julho e dissera-lhe para esperar por Outubro, já que o pessoal do Ministério entrou de férias.

- Bem, - disse-lhe o doutor Santos, isto não é como nos tribunais com as férias judiciais, em que tudo o que não é feito até Junho passa para Janeiro e Fevereiro do ano seguinte. Não, na Indústria trabalha-se, mas enfim, entre Julho e Setembro há muita gente de férias, o expediente não funciona. Por vezes, falta só o contínuo para levar o processo de uma secretária para outra, ou levá-lo lá acima a despacho final. Outras vezes, falta a secretária para redigir os termos do despacho, ou mesmo um ajudante de tesouraria, enfim, sabe como é a Administração. Não é como o Castelo do Kafka, mas olhe que acaba por haver algumas semelhanças.

Faria dos Santos não lhe falou na possibilidade de as verbas previstas no Quadro Comunitário poderem estar esgotadas já e, como tal, o seu projecto ficar adiado para a vigência do Quadro seguinte, o que poderia levar mais de um ano a ser concretizado. Melo ia pedindo pequenos empréstimos, primeiro a um banco depois a outro para pagar os tais quinenhtos contos mais alguns ordenados do seu pessoal e outras despesas do escritório. Aquilo não estava mesmo a dar, não tinha dinheiro para comprar mercadoria, limitava-se a angariar algumas vendas à comissão, o que mal cobriam as despesas, mas o Rui de Melo não desesperava, esperava receber o dinheiro e pensava em fechar tudo, o escritório e despedir os dois a Arlinda e o Vicente. Depois, iria começar uma nova vida com um negócio novo e mandar passear os tipos do Pedip e da União Europeia;que se lixem todos, pensava para consigo.

O tempo quente chegou e com ele as férias. Claro, as férias do Ministério também. Melo ficou como que destroçado. Sem dinheiro, iria ter de passar o verão a pensar no Outono, ou mesmo no Inverno, à espera dos cinquenta mil contos. Ainda tentou junto do doutor Faria para ver se conseguia uma solução mais rápida, mas nada. Faria dos Santos disse-lhe que o pessoal do Ministério é incorruptível, quando se trate de acelerar o trabalho, despachar, principalmente no verão. Não, se não estiver toda a gente a trabalhar, não há nada que faça outros trabalharem mais, nenhum dinheiro mesmo.

O empresário foi também de férias; foi com a mulher para o pequeno apartamento que possui no Algarve, em Vila Nova. Triste e com pouco dinheiro, sem dizer que estava praticamente falido. Arranjou mais um empréstimo para pagar meio subsídio de férias à Arlinda e ao Vicente e foi para o Algarve alimentar-se de sandes no mês do Agosto. Reencaminhou as chamadas do escritório para o seu telemóvel e as do fax para um outro aparelho colocado na sua casa algarvia. Mas, nada, praticamente ninguém telefonou ou mandou faxes ao empresário Rui de Melo. Já quase não tem clientes e os fornecedores estrangeiros desistiram de o procurar. Melo entristecido contemplava todos os dias o fax inerte sem qualquer luzinha acesa. Mau presságio, costumava dizer para os seus botões.

Finalmente, as férias acabaram, regressou à capital e logo no primeiro dia de trabalho disse à Arlinda e ao Vicente que não esperassem muito da sua empresa, procurassem já emprego pois não tinha meios para os despedir com indemnização nem para os manter empregados até ao fim do ano, a não ser que venham os cinquenta mil contos, mas até lá não há dinheiro.

Ambos compreenderam a situação e até disseram que já estavam em campo para tal. A situação os uniu naquele momento e isso apagava um pouco as dificuldades que estavam a enfrentar. Afinal eram duas pessoas no mesmo barco a navegar nos mesmos mares e à procura de um porto de abrigo com o dobro da esperança. Vicente era vendedor, agora sem nada para vender, e enfrentava algumas dificuldades em arranjar novo emprego, pois era um negro de S. Sebastião da Pedreira, português de gema como gostava dizer, dado ter nascido numa freguesia onde só se pode ser português qualquer que seja a cor da pela ou o formato da cabeça. Arlinda não, era branca pálida como um toucinho e esperava arranjar emprego, já que o Vicente lhe ia ensinando a trabalhar com o computador para além do simples processador de texto. Ambos estudavam inglês para melhorarem as suas possibilidades. Rui de Melo desconfiava que havia caso entre os dois, mas ao certo nunca chegou a saber.

O Outono veio e com ele os primeiros chuviscos, bem tímidos por sinal, depois o bom tempo com o ar mais fresco até ao Natal e nada do Ministério. Rui de Melo esforçava-se junto da Projectopedip para esclarecer a sua situação. Santos e uma vez foi lá falar com um responsável. Nada lhe foi dito, os projectos eram muitos e ninguém sabia o que estava a acontecer com o seu.

Depois do Natal veio o Ano Novo e Janeiro. A situação de Rui de Melo continuava a piorar e o seu humor oscilava entre a euforia de uma esperança desejada e a depressão de admitir que nada viria. E quanto mais o tempo passava mais se prolongava a depressão de Rui de Melo. Ainda conseguiu vender o pequeno apartamento algarvio para se aguentar durante algum tempo e pagar algumas dívidas. Nisso esgotou o dinheiro quase todo, voltando a situação de penúria quando a Primavera se aproximava.

Um dia, Rui de Melo voltou a contactar a Projectopedip e foi informado que as verbas do Quadro Comunitário para o Pedip esgotaram-se. O doutor Santos garantiu-lhe que estava a ser negociado um segundo Quadro Comunitário e que o seu projecto passaria para o novo sistema de incentivos às empresas logo em primeiro lugar. O empresário disse que sim com uma cara triste e agradeceu os esforços do doutor.

Sem pensar em nada mais, Rui de Melo foi para casa, entrou sem descalçar os sapatos e fechou-se no seu escritório doméstico. Subiu a uma cadeira e foi buscar a caixa de cartão. Pouco tempo depois ouviu-se um disparo forte, a mulher foi ao escritório e viu Rui de Melo exangue sentado á secretária com a cabeça caída sobre o tampo.








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A Pastilha Elástica




A pastilha elástica, - dizia o professor de Semiótica e coordenador dos seminários de Exegese e Hermenêutica ao seu auditório – desenvolve a inteligência e não só.


Fez uma pausa, olhou lentamente para as muitas caras que o contemplavam com um olhar quase sempre atónito, apesar de habituadas a ver no professor uma figura descontraída nos seus jeans e sapatilhas negras com a barba geralmente atrasada de alguns dias. Parece que ele fazia a barba uma vez por semana, mas ninguém se lembrava em que dia, talvez até variasse em função das contingências da vida privada do professor, um tipo característico, quase alto, um pouco careca e sempre com aquele olhar de meio míope ou algo do género que nunca alguém seria capaz de classificar ou traduzir por palavras.


O professor tentava justificar-se pois envolto nos seus pensamentos entrara na sala a mascar a pastilha, ou antes duas pastilhas longas, com sabor a morango e sem açúcar, que mal o deixavam balbuciar as palavras. Vira-se aflito, não queria deitar a pastilha para o chão, como o teria feito na rua antes de entrar na Universidade. Não, aquilo seria um péssimo exemplo e, em termos comportamentais, desqualificava-se, mas onde deveria colocar as pastilhas já bem mastigadas. Ainda pensou, nos seus tempos de jovem não teria problemas, o mais engraçado era colá-las bem na cadeira do professor de maneira que este as levasse depois agarradas ás calças, ou então, na impossibilidade de conseguir tal proeza, colocava-as em qualquer sítio, na parede, no tampo da secretária, no vidro da janela e talvez tentasse atirá-las ao teto para ficarem aí a lembrar que passara por aquela sala de aula. Ainda sorriu um pouco ao pensar nisso enquanto se sentava na secretária frente aos alunos e tirava uns apontamentos da pasta. Por fim, recorreu a um método mais simples, agarrou no lenço e levou-o ao nariz, primeiro, e à boca depois, como se estivesse a assoar e limpar a boca. Disfarçadamente cuspiu as pastilhas para o lenço e enfiou-o rapidamente no bolso das calças de ganga azul, as mais coçadas e rotas do seu parco guarda-roupa.


- Professor! Queres outra pastilha? – Perguntou com ar trocista um dos alunos da primeira fila, um tipo com uma grande cabeleira que lhe tapava a testa e os olhos, as orelhas e o pescoço.


O exegeta e semiólogo aceitava o tratamento por tu pelos alunos, agradecendo só que o não mandassem a algo mal cheiroso, e que se criassem relações de empatia susceptíveis de solidificarem uma amizade entre todos e com a filosofia da linguagem.


- Não, obrigado, pá! - Respondeu-lhe enquanto tentava recordar o nome do aluno, mas nada, ainda estava no começo do ano escolar e não colocara à sua frente a folha com os nomes dos aluno e a respectiva posição na sala. Só tinha uma folha com os nomes por ordem alfabética. O que era pouco e não o deixava resolver o seu maior problema como professor; memorizar o nome dos seus alunos, apesar de fazer um esforço para tal, mas nunca tivera a coragem de pedir fotos aos seus alunos para as colar numa folha com os respectivos nomes, como é hábito no ensino não universitário. Sentia que era uma vergonha para o hermeneuta e exegeta de grande calibre, como se considerava, não fixar imediatamente o nome dos alunos quando ensinava o sentido das palavras, a interpretação dos textos como o deus intérprete grego Hérmes, o hermeneuta. Mas, enfim, filósofo era, mas de fraca memória e naquele dia iria ler mais umas páginas do “Tractatus Logico-Philosophicus” do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, figura dominante do neo-empirismo do Século passado, nascido em Viena em 1889 e falecido em Cambridge em 1951.


- A aula deveria debater o sentido da “proposição” na obra de Wittgenstein, nomeadamente na continuação dos enunciados do filósofo britânico Bertrand Roussel e grande amigo de Wittgenstein.


A leitura começou a ser feita em inglês, pois da obra não foi feita ainda tradução para o português. O hermeneuta e semiota iniciou a leitura com uma frase crucial de Wittgentstein. “Toda a filosofia é crítica da linguagem”, daí pois ter colocado à discussão outra das frases célebres do austríaco; “A língua coloquial é parte do organismo humano e não é menos complicada que este é” e “é humanamente impossível conhecer a lógica da língua”, continuando: “A língua veste o pensamento, mas de maneira a que da forma exterior do que se veste não se pode inferir a forma do pensamento que é vestido”.


“A frase determina um lugar no espaço lógico” leram os alunos para continuar: “O ponto geométrico e o ponto lógico coincidem com o facto de ambos serem determinantes de uma realidade existente” e “apesar de a frase ou proposição só poder determinar um lugar do espaço lógico, a totalidade do espaço lógico é dada pela mesma frase”.


“... a frase salienta-se como resultado de uma operação que a faz resultar de outras frases (bases da operação)”.


“A operação só pode ocorrer onde uma frase resultar de outra por uma forma logicamente significativa”.


Um dos alunos lia o texto quando o exegeta levantou-se repentinamente da cadeira e elevou os dois braços e perguntou quase aos berros. Que significado têm estes enunciados de Wittgenstein? Quem sabe, quem pode dizer algo?


Os estudantes assustaram-se e ficaram mudos perante a atitude repentista do mestre. Ninguém respondeu e poucos estavam mesmo a ver o significado das palavras de Wittgenstein.


- É natural que ninguém saiba, - respondeu o hermeneuta, continuando, - pois o próprio Ludwig Wittgenstein nunca chegou a vislumbrar o alcance e o significado absoluto dos seus textos e nunca pensou que algum exegeta viesse a descobrir, muito anos depois, o verdadeiro significado das elucubrações do teórico da linguagem.


- E porquê? O seu Tratado foi publicado em 1921 e só muitos anos depois num texto quase escondido iniciou o processo que nos levou ao entendimento da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein


- Reparem vocês. No Século passado, em 1976, Richard Dawkins publicou a sua obra magistral, sabem qual foi?


- Ana, a inteligentíssima Ana, respondeu logo; foi “O Gene Egoísta” e Dawkins é biólogo, não sei o que tem ele a ver com a Teoria da Linguagem de Wittgenstein?


- Ter, não tem, quer dizer, directamente não há implicação com a obra daquele que poderá ser visto daqui a anos como um novo “Charles Darwin” do Pensamento do Século XX., já que explanou aí a ideia inicial dos chamados Memes do pensamento, permitindo ver o fenómeno cultural como evolucionista também, tal como a vida. De alguma forma, ambos os autores inseriram nos seus textos a ideia de que o pensamento funciona em termos de memes, unidades de conhecimento e raciocínio susceptíveis de habitarem os nossos cérebros e de se replicarem como acontece com os genes materiais do tecido biológico. Só que Dawkins não o fez como tema central da sua obra, mas quase como acessório, dedicando apenas 16 páginas ao tema. Talvez por isso, hoje ainda, a cultura universitária não reconhece devidamente a existência de memes, mas devia fazê-lo, já que uma esmagadora quantidade de textos filosóficos mesmo muito antigos, podem ser lidos à luz da teoria mémica e serem como tal entendidos. Reparem, a “frase” ou “proposição” de Wittgenstein não é mais que um genoma mémico e a operação lógica que o filósofo refere é a replicação dos genes.


- Os genes biológicos são uma extraordinária estrutura molecular que transportam a informação necessária à construção das proteínas que vão edificar o corpo animal ou vegetal de toda a vida na natureza. Com isso, constroem igualmente réplicas para voltar a produzir novos organismos sensivelmente iguais aos anteriores mas susceptíveis de pequenas alterações ou mutações que podem ser aprovadas pelas condições ambientais como de sucesso, logo de evolução.


- Mas que tem isso a ver com o pensamento? Perguntou um tal de Diogo da Cunha sentado na segunda fila.


- Analogia, pázinho, por analogia é que vemos no pensamento um processo de replicação dos genes mentais ou memes. E é assim, reparem na evolução da criança até ao domínio da palavra. O seu cérebro quase vazio absorve memes visuais na forma de objectos e pessoas para depois os identificar pela palavra e, por fim, passar a relacionar o objecto, substantivo, com o verbo e os nomes predicativos para se tornar numa proposição, num meme de memória ou mente e gene. Os memes ocupam o seu espaço vital nos circuitos neuronais do cérebro na mais completa independência de uma necessária realidade material. Eles tornam-se na realidade e determinam a evolução do próprio sistema biológico do homo sapiens. Dão-lhe instrumentos úteis como a linguagem e o intelecto, levam-nos a que o género homo conquiste o planeta e invente máquinas para iniciar a conquista do espaço. Os memes de sucesso replicam-se de tal maneira que deles acabará por ser o espaço interplanetário e galáctico.


- Para Susan Blackmore que escreveu “The Meme Machine”, o cérebro não passa de um biótopo húmido para proporcionar a replicação dos memes. De todos os memes, tanto nas línguas nacionais como estrangeiras. Reparem a facilidade com que adoptamos termos estrangeiros numa significação causal do processo operativo onde os fomos buscar. Fundamentalmente um meme veicula uma ideia relativamente simples que pode ser transmitida de uma mente para outra milhões de vezes. E não se trata sempre de um meme simples, mas de uma espécie de genoma como todo o ensinamento das religiões que de vários modos se desdobram numa multitude de memes que vão originar a fé, ou a crença, termos tautológicos e, como tal, desprovidos de sentido lógico no entender de Wittgenstein. Fé ou crença são tautologias sinonimais de conhecimento, abrangendo o significante de fidelidade e convicção. As tautologias estão fora da lógica na opinião do empirista da Escola de Viena. Efectivamente, se Deus existe sabe-se e se não existe não se sabe, não há que escolher o que é, o que existe ou o universal, por via de uma convicção ou fé, sinónimos parciais de saber ou conhecer. Eu não acredito nem tenho fé, mas sei que Deus existe; disseram-me na catequese, ou, pelo contrário, sei que não existe ou que não há nada que prove a sua existência ou sei que Deus morreu. Nietzsche escreveu isso.


- Pázinhos! O problema existe porque o cérebro nada sabe à partida, mas os memes que o povoam acabam por ser toda a sua sabedoria. Assim, uma pessoa quando diz que acredita em Deus, são os memes que lhe dizem existir Deus. Dizem-lhe também que um jovem nazareno afirmou ser filho de Deus e de uma virgem engravidada pelo Espírito Santo, tal como 570 anos antes dessa “traição” matrimonial, na ilha de Samos, Apolo, o filho de Zeus, desceu à terra para fecundar a bela Pártenes, mulher de Mnesarcos. A bela de Samos gerou assim um deus entre os homens, Pitágoras, o pai da filosofia, o reformador do Orfismo e portador de um novo roteiro espiritual para os homens, enquanto Maria, a mulher do carpinteiro, gerou alguém que quis reformar o judaísmo, acabando por fazer com que os seus discípulos fundassem uma nova religião.


- Reparem aqui, dilectos discípulos e companheiros de aula, - disse o exegeta – os deuses engravidaram mulheres terrenas, ou antes os memes dessas histórias engravidaram durante milénios cérebros humanos que fizeram replicar essas histórias até aos nossos dias e continuarão a fazê-lo por um largo futuro. Os sistemas neuronais acabam por ser umas autênticas “barrigas de aluguer” para as ideias, portanto os memes, os quais reflectindo as condições materiais das sociedades não deixam de ser produto da criatividade original da inteligência humana.


- Sabem, pázinhos! Claude Levi-Strauss escreveu que “não queria mostrar como os homens pensam os mitos, mas como é que os mitos são pensados nos homens, mesmo sem o saberem”. E sem saber da existência dos memes chegou ao estruturalismo, também mémico na sua essência. É disto que se trata, os memes vestem-se de mitos para assim parasitarem os cérebros humanos que são como as células que albergam os vírus parasitas que obrigam a mecânica celular a funcionar para eles. Claro, a relação causal é inversa, os memes existem porque os sistemas neuronais os criaram como tal, independentes do seu criador e permitiram que se replicassem eternamente. Talvez seja uma questão de investimento em criatividade. A verdadeira criação é demasiado consumidora de tempo e energia para que a rede neuronal seja criadora de tudo quanto pensa. Que tipo de civilização poderia existir se cada um de nós tivesse que inventar de novo todos os processos e mecanismos que usa.


- Estamos quase no fim da aula, pázinhos, querem dizer algo ainda.


- Porque não convences o Conselho Administrativo a fundar aqui uma cadeira de “Memética Filosófica”. – perguntou-lhe o Gustavo.


- É boa ideia pázinho, mas talvez não a chamasse filosófica, já que isso é também uma tautologia, pois a “Memética” é, em si mesmo, filosofia, entendida como tendo como função distinguir o pensável do impensável. Pensar o pensável é a tarefa fundamental da filosofia, entendido aqui o pensável como integrante dos sistemas lógico-racionais..


- Professor, pá! Afinal qual o motivo porque disseste no início da aula que “a pastilha eléstica desenvolve a inteligência e não só.”


- Estão a ver, pázinhos! O gajo está a replicar o meu meme. A mastigação quase ruminante da chamada goma de mascar parece que provoca um aumento da irrigação cerebral na zona de Broca onde pululam os memes da fala, provavelmente integrados nos neurónios e saxónios dessa zona. Por estarem mais irrigados funcionam melhor, favorecendo a inteligência já que o modelo codificado da fala é estruturante da própria inteligência. Resolver o problema onde colocar os pés para chegar a certo local é o mesmo que procurar a palavra certa para exprimir a ideia mémica que uma dada percepção faz surgir nos ápices neuronais, trata-se de inteligência ou seja, relações entre memes de distinção, estratégia e associação. Os primeiros identificam por divisão uma dada realidade, os segundos chamam à colação memes susceptíveis de identificar o objectivo ou efeito a alcançar e os últimos associam-se numa espécie de programa global da nossa cultura e inteligência. Para além disso, a pastilha mantêm-nos acordados e aguça a atenção.
- Pázinhos! Não sei se isso é verdade, mas bonito é e os memes não precisam de ter algo a ver com a verdade. Ouvi isso num canal alemão de televisão e nem cheguei a fixar o nome do respectivo autor. Só o meme passou para o meu cérebro através do satélite “Eutelsat” e agora está nas vossas cabecinhas. Adeusinho, até para a semana que vem.



fim



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Sábado, 7 de Fevereiro de 2004

o Drama do Boy



Na segunda-feira seguinte às eleições, o doutor Lima entrou no serviço, esforçando-se por apresentar a cara o mais normal possível. Previamente tinha estudado a pose e o modo de se apresentar para dar a impressão de que nada de especial tinha acontecido. Até escolheu a roupa mais utilizada, a de sempre, sem gravata e sem fato completo. De pouco serviu, logo à entrada foi cumprimentado pelo porteiro:
- Parabéns doutor, o seu partido ganhou bem, não é verdade, então agora vai a ministro.


- Obrigado Mateus, - respondeu-lhe o Lima.


A cena repetiu-se mais umas tantas vezes, no elevador e depois lá em cima, a secretária Lurdes, toda pepedisto e daquilo, foi das primeiras a cumprimentar.


Nem lhe deu os parabéns, chutou logo: -Temos ministro, não é verdade doutor?


Lima esperava este tipo de reacção, até porque não eram as primeiras eleições em que participava como militante, se bem que a vitória nem sempre sorriu. Já conhecia o acolhimento pretensamente efusivo, mesmo dos adeptos dos outros partidos, ou principalmente desses. Iam bater-lhe nas costas e perguntar se já estava ministro, como fez o seu colega no gabinete jurídico, o doutor Serra, um homem sempre do partido do seu interlocutor de momento. Não que o confessasse abertamente, mas falava com um tom pretensamente secreto e confidencial, como se estivesse ligado ao interlocutor por um pacto secreto, a pretensa adesão comum ao mesmo ideário e o conhecimento das mesmas pessoas. Até o secretário-geral do ministério lhe telefonou a dar os parabéns, imagine-se um dos seus maiores inimigos. O recém-promovido “Boy”, apesar de trabalhar naquele serviço há dez anos, não esperava isso. O secretário já lhe tinha feito antes algumas alusões à possível vitória do seu partido numa ocasião em que ambos se encontraram no elevador. Claro que foi entendido mais como uma pequena provocação ou brincadeira, mas altamente irritante para o assessor jurídico do ministério, farto como estava de ser posto de lado pelo secretário-geral.


A equipa jurídica daquele ministério há muito que nada fazia, lia os Diários da República e da Assembleia da República, faziam um sumário de legislação, mas para a verdadeira consultoria jurídica era sempre chamado pessoal de fora, por vezes pago a peso de ouro, sem que aos próprios serviços do Ministério fosse dada a oportunidade de mostrar qualquer tipo de trabalho, para não dizer, reconhecimento de competência. Lima e os colegas Serra e Duarte com o respectivo pessoal auxiliar passavam o dia numa indolente ociosidade, aproveitada por todos para fazer algo para fora. Os colegas trabalhavam na advocacia e Lima dedicava muito do seu tempo livre a escrever artigos para jornais diários e semanários.


Além disso, Lima foi candidato a deputado pelo círculo de Lisboa, mas em lugar de todo inelegível, quadragésimo tal, lugar adequado a um idealista que não acalenta nada mais do que ver concretizados os seus grandes ideais democráticos.


Naquele primeiro dia pós-eleitoral começou a tortura diária do Lima. Todos os dias os colegas perguntavam quando ia a ministro. Outras vezes, perguntavam quem ia mandar no Ministério, fingindo não duvidarem de que ele, doutor Lima, sabia quem vai ser ali o novo ministro, o novo chefe daqueles devotos fiéis da causa pública. Lima carregava o seu semblante até ficar com um ar enigmático e, com toda a sinceridade, dizia que não sabia, obtendo sempre um sorriso de dúvida do respectivo interlocutor ou uma afirmação, está tudo ainda no segredo dos deuses. Claro que Lima desconhecia tudo a respeito do novo governo. O novo primeiro-ministro nada lhe tinha dito e nunca o poderia ter feito, já que Lima não faz parte do círculo dos seus íntimos. Toda a gente no Ministério sabia disso, mas fingiam que não, perguntando constantemente como ia a formação do novo elenco executivo. Procuravam dar a entender que tinham o doutor Lima por personagem muito influente no partido que agora saiu vencedor das eleições.


Durante alguns dias, o secretário-geral e o pessoal do gabinete cessante ainda o cumprimentavam, mas a partir de um dado momento, deixaram de o fazer. O poderoso secretário-geral passou pelo Lima frente a toda a gente na entrada e nem se dignou cumprimentá-lo, no que foi imitado pela serigaita que fazia de secretária no gabinete do ministro cessante. O porteiro percebeu logo o sinal, Lima não ia a ministro nem a lado algum, só andaram a brincar com o doutor. Passou a dizer isso a todos os que trocavam algumas palavras com ele sobre o momentoso problema da formação do novo gabinete ministerial. Lima sentiu isso quando o secretário-geral lhe pediu com toda a urgência uns tópicos sobre a legislação comercial de uns produtos tutelados pelo Ministério. Teve algumas dificuldades em despachar o pedido em poucos minutos, o que seria normal, mas o secretário-geral não quis saber e mandou a sua secretária telefonar-lhe de cinco em cinco minutos a pedir os tais tópicos. Por fim, foi o próprio secretário-geral que berrou ao telefone como nunca o tinha feito.


Lima sentiu-se enxovalhado. Acabou por mandar um contínuo entregar os tópicos e pensou, “claro, o tipo já sabe quem vai ser o próximo ministro”. Um independente, ou uma independente, que os vai deixar a mandar como se tivessem ganho as eleições. Sim, já deixaram de fingir com perguntas idiotas. O elenco sai amanhã. A culpa é minha, andei por aí a pavonear-me com o partido e depois com a candidatura a deputado. No quadragésimo lugar não tinha razão para isso.


Efectivamente, no dia seguinte saiu nos jornais o nome do novo titular. Uma independente de todos os costados. Lima não tinha ilusões, não seria chamado ao gabinete para uma qualquer consulta jurídica quanto à nova legislação. Ninguém na chefia do Ministério saberá que está ali um destacado militante do partido vencedor. Dias depois veio a portaria com as nomeações para o gabinete do Ministro e para alguns postos. Todos militantes do partido derrotado. Até o poderoso secretário-geral ficou de pedra e cal.


Lima ficou cilindrado quando soube que a sua famigerada inimiga, a doutora, foi promovida e ele, o jurista Lima, nem sequer foi consultado sobre os problemas jurídicos que envolvem o trabalho passado da doutora. “Ela deveria estar na prisão”, pensou Lima quando lia a lista das nomeações, “depois de ter comprado um produto que provocou a morte de muitas pessoas, mas acabou premiada e viva o velho”. “Vão todos rir-se de mim depois do mal que disse da doutora e da tentativa frustrada de a fazer comparecer em tribunal”. “Mas, também é minha culpa, fui cobarde, não fui capaz de tomar uma medida a sério contra a doutora e as suas chefias, fiquei calado, obedeci à lei da rolha do antigo primeiro, agora pago-as. Melhor fora que o meu partido não tivesse ganho as eleições ou que eu nem sequer fosse candidato.







publicado por DD às 21:24
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Quinta-feira, 5 de Fevereiro de 2004

Os Supérfluos

- Madeira, hoje vens atrasado três minutos.

- Estás a gozar com a minha tristeza e ris-te. Mostras o teclado, ainda bem que continuas com boa disposição, mas digo-te, Tavares, daqui não saímos inteiros, os gajos querem dar cabo de nós.

- Não digas isso. Estamos à espera de uma justa decisão, e ela virá porque somos teimosos e estamos unidos. Repara que batemos já o recorde, vinte e sete dias na sala branca, 16 trabalhadores a ver as moscas e as paredes numa sala, oito horas por dia e ainda rimos. Olha, quando deixarmos de rir, estaremos prontos para o caixão. Eles estão desesperados, mas sabem que somos nós que os estamos a proteger, pois quanto mais cedo cedermos, mais depressa virá também a hora deles.

- Talvez pá, mas olha, pelo menos descansamos e não respiramos aquele ar imundo do fundo da Oficina 7. Ainda não puseram o ventilador de ar para fazer sair os fumos dos motores dos carros na oficina. Aquela porcaria de médico do trabalho diz que sim, aquilo faz mal aos pulmões, mas nunca fez nada.

- Já disseste isso, quinhentas vezes, Azevedo, não serve mais de consolação. Esperamos, esperamos, estamos à espera de quê afinal? Do Godot, como naquela peça do não sei quantos que vi há anos na televisão. Não, aqui lemos os jornais e jogamos às cartas. Os gajos não nos deixam trabalhar. Deixem-nos trabalhar! Podemos gritar aqui. Salta para cima da mesa e faz um trombone com os jornais e grita para fora, deixem-nos trabalhar.

- Vocês fazem é figura de malucos e o meu marido já anda lixado, quatro mulheres no meio de tantos homens, sempre fechados na mesma sala. Já me disse: Olímpia! Vê lá o que fazes com aqueles colegas, o melhor é aceitares a guita e vires para casa. Julga que acabamos por nos dar uns com outros. Pelo contrário, acabamos é todos à porrada. O Zé diz que a Marca Francesa deveria, ao menos, pôr-nos em duas salas, uma para mulheres e outra para homens.

- Sim, sim, como nos meus tempos da escola primária. Só rapazes e a das raparigas ficava muito longe. Olha, eu, o Madeira, que aqui está em vias de enlouquecer, andou na Machado de Castro. Só rapazes e na Mocidade Portuguesa também. As raparigas tinham a Mocidade feminina ou o quê, a minha irmã aprendeu lá costura. Eu não aprendi nada.

- Então e não acabaste o curso. És um bom mecânico, mas não és encarregado ou mestre. Com o curso eras capaz de o ser.

- Se não estivessem aqui mulheres, dizia uma asneira das grossas. Mecânico, sempre. Já disse, nunca descerei de categoria como me propuseram e não aceito o despedimento com vinte e tal ordenados.

- Pázinho, Madeira, não é isso. Quiseram fazer de ti um preparador de viaturas novas. Polir, tirar as nódoas dos vidros. Não vês isso? Um trapinho, um pouco de cuspo e tiras a caca de mosca do vidro do conta-quilómetros.

- Não, Olímpia de um marido ciumento, eu sou mecânico, não sou preparador de carros e não brinques com isso. Somos doutores pelos cursos comunitários, fechados num campo de concentração da Marca Francesa. Aqui é a "casa branca", na Cabos Ávila é a "casa amarela" daquela freira ou monja católica do carago, Teresa d' Ávila. Que porra de democracia é esta com casas de concentração para os trabalhadores que não aceitam ser despedidos.

- É isso, os nazis punham o pessoal em campos de concentração. Agora os gajos das empresas põem-nos civilizadamente numa sala de paredes brancas, sem direito a café, sem fazer nada. É também como aquela tortura da Pide. Só que em vez de sermos estátuas em pé, somos estátuas sentadas, oito horas por dia até darmos em malucos durante semanas e semanas. A Marca Francesa é pior que a Pide! E não há um sacana na Assembleia da República que faça uma lei a proibir isto, porra!

- Está bem Madeira, já sabemos que és o doutor aqui, viajaste, sabes de história e não sei quê. Mas nós sabemos de futebol e carros, carrinhos e carrões. Já não os posso ver. Lá na Damaia estão por toda à parte. Nem posso entrar em casa com uma mala ou caixa, está sempre a porcaria de uma viatura a atravancar a minha entrada. Porra, odeio os automóveis. Deveríamos sair todos aqui armados de matracas e ir para a porrada aos carros, amachucar as latas, partir os pára-brisas, riscar as pinturas e destruir os escapes. Os carros deveriam ser utilizados como caixões. Sim, deveria haver uma lei que obrigasse cada gajo a ser enterrado no seu carro, a uns dez metros de profundidade e depois outros por cima. Já viste, a dois metros de altura por viatura, davam cinco carros com os presuntos lá dentro por cada cova. Aqueles gajos que colocam uma latinha de gasolina a arder junto ao pneu de um carro é que têm razão. São os justiceiros do futuro. Os revolucionários, anarcas ou sei lá o quê. Abaixo o automóvel. Pás, vamos fundar o partido anti-automóvel. Olha! Os gajos talvez arrepiassem caminho.

- Cala-te lá, Mateus, estás mas é virado. Os carros ainda são a nossa profissão. Mas que estamos afogados neles todos os dias é verdade. Eu também já não os aguento, por isso ando com uma velha Quatro quando ando. Se houvesse eléctricos rápidos, preferia-os bem. Mas os gajos das câmaras andam ao contrário. Quanto mais carros, ruas mais estreitas, passeios mais apertados e prédios mais altos. Para o pior está tudo sempre na mesma. Já viste como está isto aqui à volta.

- Olhem lá, o Mateus tem o seu quê. Lá no meu bairro, havia uma tipa, engraçada até, que detestava os carros. Andava sempre com um ferro a riscar as pinturas. Uns vizinhos meus apanharam-na e lavaram-na para a esquadra. Foi o mesmo que nada, os polícias já a conheciam e, por isso, não a prenderam. Talvez dessem razão à miúda, ela até era gira.

- Eu vou desistir, não aguento mais, vou aceitar os dois mil e oitocentos contos que me oferecem e vou gastá-los. Depois atiro-me da ponte abaixo. Pá, até posso vir a ser o primeiro gajo a suicidar-se da Ponte Vasco da Gama. Estás a ver, no dia da inauguração com o meu cadáver todo estendido e ensanguentado lá em baixo. Sim, não me vou atirar à água, mas antes ao cais junto ao pilar. Levo um cartaz a protestar contra o desemprego, serei o Jan Palak do desemprego, sabem, o gajo checo que se suicidou pelo fogo a protestar contra a invasão soviética.

- Nada disso, Domingos, estás muito intelectual, mas aqui jurámos todos aguentar até ao fim e repara que o Natal já passou, tempos de receber o décimo quarto. Olha, eu fiz as contas, para receberes o equivalente à reforma mínima tens de ter umas dez mil brasas em conta a prazo no banco, faz as contas aos juros que os Champas e outros estão a pagar. Essa porcaria de indemnização de que falas dava para dez ou doze meses. E depois, ias viver com a miséria do fundo de desemprego?
- Madeira, não armes em chefe. Tenho aqui uma pistola e vou dar cabo de mim, já. Não aceito ser um trapo, aqui perdi uma vista a endireitar chapa e fiquei quase surdo de um ouvido. Lá fora ninguém me aceita. Não quero ser um objecto, supérfluo, descartável como as seringas dos drogados. Fomos utilizados uma vez e agora deitam-nos fora, quebrando primeiro os nossos nervos nesta sala de concentração e paredes brancas. Não, porra, dou um tiro aqui no coração.

- E o gajo disparou mesmo. Chamem o 115! O calado! Nunca dizia nada e quando falou, deu um tiro no coração, fodam-se!

- Ajudem, deitem-no em cima da mesa, o Tavares foi chamar o médico e o 115.

- Olha, o Domingos ri, nem desmaiou, só ri, parece feliz ou está a fazer troça de nós? Deve ter dado um tiro de alarme, mas a pistola parece a sério. E está a sangrar, mas continua rir.

- Está aí o 115. Ponham a maca aqui.

- Pronto, não precisa de soro. O ferido está lúcido e aparentemente bem disposto.

- Vamos com ele?

- Não! Se sairmos daqui perdemos o direito à paga, é como faltar ao trabalho, percebes Madeira!

- Percebo sim, o Domingos não morreu, pelo menos agora. Ainda bem, seria trágico. A bala não deveria ter pólvora, era velha, certamente. Sei dum gajo que deu um tiro com uma pistola que tinha lá a bala há mais de dez anos. Foi só fumaça, a bala ficou quase à flor da pele. Deve ter acontecido o mesmo ao Domingos, o gajo nunca tinha disparado aqu
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Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2004

O CURSO


-Ó Madeira, não te esqueças que para a semana tens o curso do Fundo Social Europeu, é na Oficina 3, vais lá, assistes a umas aulas, é pouco tempo! O principal é assinares o papel, depois voltas na carrinha com o resto da malta.


- Está bem, senhor engenheiro, mas se é como da outra vez acho que não vale muito a pena. Recorda-se do curso das caixas de velocidades? Eu sabia tudo aquilo, trabalho todos os dias com os carros, provavelmente já desmontei mais de mil caixas, aqui e nos doze anos que estive em Moçambique como mecânico.


- Não ligues, assina os papéis e pronto.


António Madeira voltou ao trabalho na Oficina Central da Marca Francesa sem pensar mais no assunto. Não lhe parecia que algum curso lhe pudesse ensinar mais do que já sabia. Trabalha ali há uns vinte anos, quase desde que regressou de Moçambique, mais concretamente do Lumbo, frente ao canal que separa o continente da Ilha de Moçambique. E recorda sempre com saudade aquela terra onde trabalhou um rol de anos; terra fértil de cajueiros e gigantescos embondeiros com praias como a das Chocas onde tinha uma pequena casa que alugava de vez em quando. Um dia, o Madeira contou como o macaco-cão é o melhor trabalhador daquela costa, pois limpa a noz do cajueiro dos restos da flor e do pericarpo, deixando-a pronta a ir para a grande fábrica de descasque que funcionava ali perto.


Ao Lumbo chegava diariamente a automotora de Nampula o que dava ainda algum vida à região, pois o tráfego marítimo já tinha passado para Nacala. Mas, para o Madeira não faltava trabalho. Ele gostava mesmo daquela vida com muito gente a ajudar por pouco dinheiro e com poucos conhecimentos. Mesmo assim, ainda treinou o Tamimo Otiselo que se tornou no seu “braço direito” e o Armando e o Saíd para se ocuparem das reparações menos exigentes. Adorava aquela condição de branco, sempre a mandar e a zangar-se com eles que não aprendiam o que se lhes ensinava.


Quando foi obrigado a regressar à terra que o viu nascer, o António Madeira teve a sorte que a sua qualidade profissional lhe proporcionou. Empregou-se na Marca Francesa e chegou a ir para a fábrica lá para os lados de Setúbal. Mas aquilo não era trabalho para um especialista, montar sempre as mesmas peças. Nos tempos áureos em que o dinheiro corria como um "caudal" do Orçamento de Estado para as contas bancárias da Marca Francesa, o Madeira foi nomeado inspector, mas só do lado esquerdo das viaturas. No lado direito estava o Tavares. Inspeccionavam o rodado, os painéis, os travões, as braçadeiras e bucins e não sei o que mais, além dos pneus.


Sempre que falava da época em que inspeccionava, António Madeira não pode deixar de sorrir e contar a história dos pneus. Eram trezentas viaturas que deveriam embarcar para Génova na Itália. O Madeira inspeccionou tudo muito bem, viu mesmo as jantes e os pneus "Mx"; tudo nos conformes e registado nas fichas. O Tavares, do lado direito, fez o mesmo e registou os pneus "Fir". E lá seguiram os carros para o cais onde deveriam embarcar numa caixa flutuante tão grande como feia. Por sorte, um dos condutores da estiva reparou que as viaturas tinham um comportamente ligeiramente diferente do habitual. Resolveu olhar para as rodas e, com espanto, reparou o que havia algo de anormal; uma marca de pneus de cada lado. Foi tudo chamado à baila. Ali mesmo no cais, começaram a trocar os pneus de uns carros para outros, mas o barco não esperava, trabalharam de noite e, por fim, o Madeira e uns colegas tiveram de embarcar à pressa com macacos e tudo para continuarem o trabalho durante a navegação para Génova. O Madeira nunca tinha estado na Itália, pelo que a viagem foi excitante, viu um pouco de Génova e depois um naco de Milão para onde foram à pressa apanhar o avião para Lisboa.


Quando chegou foi o bom e o bonito, quiseram assacar as culpas ao Madeira e ao Tavares, mas não podia ser, estava tudo nas fichas. E não é que o francês tinha proibido o pessoal de falar durante o trabalho e só duas mijas por turno. - Mas não! - disse o engenherio depois, - isso não era para os inspectores. Tinham de trocar impressões para que as viaturas saiam da fábrica "comme il faut"- .


Andou tudo à bulha, o francês mais os dos fornecimentos e gestão de produção e stocks, preparadores de trabalho e sabe-se lá quem mais. O francês, que tinha inventado o processo "taylorista" de inspecções à direita e à esquerda, continuou no posto, muito enfiado nos primeiros tempos e arrogante como sempre depois. O Madeira e o Tavares é que foram enviados para a Oficina Central como se fossem culpados, tendo-lhes sido comunicado já no fim do dia trabalho para que deixassem a impressão que tinham sido castigados. Para o Madeira até foi melhor, sempre ficava mais perto de casa e preferia o trabalho de mecânica que a repetição infinita das mesmas tarefas. Mas não foi para melhor que mudou, estava pegado pelo chefe, o engenheiro, e tinha os tipos do cronómetro sempre atrás dele. O trabalho era tão infernal como o da cadeia de montagem; um carro a seguir ao outro, geralmente revisões em que um certo número de tarefas tinham de ser feitas em meia hora para serem debitadas por hora e meia ao cliente. Trocava as correias de transmissão, afinava os platinados e substituía as velas e passava a outro que afinava os travões. Qualquer problema que houvesse passava despercebido e o experimentador também estava instruído para não dar por nada. Não estava escrito na ficha do pára-brisas, logo não era problema. Aquilo era repetitivo e esgotante; o maldito cronómetro deixava-o ainda mais prostrado. Só aos fins de semana é que o Madeira descansava um pouco ao arranjar alguns carros de amigos e clientes conhecidos, o que fazia com o vagar necessário para fazer obra bem feita. A ideia do Madeira era ter uma clientela fixa suficientemente grande para um dia abrir uma oficina na Damaia. Faltava-lhe o capital e há anos que procurava o local cerro. Tinha discussões em casa com a mulher que receava o desconhecido. Preferia o certo ao incerto do trabalho por conta própria, mas já estava convencido..


Para a marca francesa, o Madeira era visto como um velho, mas com os seus cinquenta e pouco anos, considerava-se ainda no auge das suas forças e senhor de uma vasta experiência no automóvel. Até mesmo as modernas técnicas electrónicas não o deixavam de lado; tinha uma sensibilidade prática para tudo o que fosse técnico, pelo que raramente saía algo de errado das suas mãos. Ainda pensou que o tal curso deveria ter algo a ver com a electrónica nos carros e chegou a dizer para com os seus botões que talvez até fosse útil. Agora com os computadores ligados ao escape e ao distribuidor e entrada de ar faz-se rapidamente a análise do estado em que se encontra uma viatura quanto ao funcionamento do motor. Talvez nesse campo haja algo de novo que possa aprender. Mas duvidava e tinha um interesse relativo, já que na oficina que queria montar não entrarariam tais engenhocas por falta de verba, evidentemente, e por, no seu entender, serem totalmente desnecessárias. Para o Madeira, o ouvido e a experiência registada cerebralmente fazem mais que o computador dos gáses.


A segunda-feira chegou e logo de manhã, mais cedo do que habitualmente, o Madeira, o Tavares e outros tomaram os seus lugares na carrinha que os levou à Oficina 3 onde ia ser dado o curso. Entraram todos e, como sucedera em ocasiões anteriores, foram logo preencher as fichas individuais e assinar uns recibos a constatar uns pagamentos que que ninguém receberia. Mas, não faz mal, sempre altera a monotonia do trabalho - pensou o Madeira - e os franceses aqui em Portugal têm agora de mamar na teta da Europa; já mamaram muito do nosso estado.


Preenchidos os "requisitos legais" foram todos para a grande sala de aulas. António Madeira ficou espantado ao ver alguns carros sujos e viu muitas escovas, baldes, agulhetas de alta pressão e ao fundo estava a máquina de lavar automóveis da Oficina 3 da Marca Francesa.


- Mas que raio de curso é este? - Perguntou o Madeira ao seu amigo Tavares.


- Ó pá, eu não sei, mas talvez o Coelho Antunes aqui nos pode explicar, o gajo está sempre a par com os acontecimentos. Não é verdade "Lapin"? O Tavares gosta de mostrar o seu francês; aprendido em Paris onde trabalhou como lubrificador de carros numa "Garage". De vez em quando traduzia os nomes dos colegas para francês. O Madeira passava a ser o "Bois" e o Coelho Antunes o "Lapin Antunés".


- Então vocês vêm a um digníssimo curso pago pela Europa e nem sequer sabem qual a sabedoria que vão beber, o que a Europa vem ensinar aos portugueses toscos e ignorantes. Não viram na Televisão, uma porcentagem muito importante de nós todos é o quê? Já não me lembro, iliteratos ou qualquer coisa no género. Quer dizer, segundo os gajos do Governo ou sei lá o quê, sabemos ler e não sabemos ler, tudo ao mesmo tempo. Por isso temos que voltar aos bancos da escola para aprendermo o que a Europa tem para nos ensinar. E vivam os franciús ensinadores. Como é que se diz isso em franciú, ó Tavares?


- Diz mas é lá que curso é este com escovas e baldes. Olha pá, está ali detergente também. Não me digas que é um curso de lavar cozinhas.


- Bem, cozinhas não, porque a Marca Francesa não as vende, mas é um curso de lavar carros.


António Madeira ficou branco, petrificado mesmo, não conseguiu balbuciar qualquer palavra e pensou, eu com trinta e seis anos de mecânico venho frequentar um curso de lavador de carros. Na verdade estão aqui muitas caras quase imberbes, uns putos arranjados não sei onde, até estão duas gajas, mas eu, o Tavares, o Coelho Antunes e o Silva Cavaco. Todos profissionais altamente cotados aqui. Não pode ser. Vou falar com o chefe destes cursos.


Rapidamente dirigiu-se à mesa onde uma secretária ia dando e recolhendo as fichas e perguntou quem estava ali a chefiar o curso.


- É o engenheiro Martins - respondeu a rapariga - está ali ao fundo, vê aquele senhor com um telefone portátil na mão, é ele mesmo. Mas olhe que o curso está mesmo a começar, o monitor já chegou, o melhor é falar com o engenheiro no intervalo.


Desconsolado, António Madeira voltou para o seu lugar ao lado do Tavares e do Coelho Antunes. Ambos riam desalmadamente, levavam aquilo a brincar e começaram a gozar com o Madeira.


- Então o que foste dizer à menina, pá?


- Olha, eu queria protestar, não venho aqui aprender a lavar carros, de resto não é coisa que se aprenda, o gajo mais tosco do mundo aprende isso em minutos. A tipa disse que o chefe desta porra é aquele gajo que está sempre a falar no portátil, ela diz que é o engenheiro Martins.


- Sim - respondeu - é o gajo que organiza todos os cursos aqui; aqui e de quase todo o país, é o gajo da Porrex.- respondeu o vivaço do Coelho Antunes.


- É mesmo nome para a porra de uma empresa de cursos de lavadores.


- Não são cursos pá. É sacar massas à Europa com comissão para os gajos do ministério ou do partido.


- Atenção, meus senhores, perdão, minhas senhoras e meus senhores. Estamos aqui para aprender a lavar e preparar viaturas automóveis. Para começar, não se esqueçam que a aparência é tudo e nisto, a limpeza é essencial. Um carro, mesmo saído de fábrica vem sujo, quanto mais depois de andar um certo número de quilómetros ou de fazer um longo percurso de barco ou de camião, vem cheio pó, restos de gorduras, ceras, lamas, folhas de árvores, etc. Tanto por baixo como por cima. Por isso a lavagem tem de começar por ....


Porra, porra, dizia para consigo o Madeira. Não era capaz de ouvir mais nada, nem viu o monitor deitar o detergente no balde e exemplificar com uma escova larga a técnica da pré-lavagem.


O Tavares ao olhar para a cara muito séria do Madeira disse-lhe a rir. - Pá, leva isto no gozo, a vida é demasiado triste para levarmos estas coisas a sério. Não vês que os gajos só querem é que a malta assine as fichas para receberem o cacau, não penses que vais para lavador de carros.


- Não, não é isso, sinto-me enganado, desmoralizado e não é com uns porras que resolvo isto. Olha, vou para casa e digo à minha mulher que os filhos da puta me engataram para um curso de lavador de carros. Vai tudo rir-se lá, a minha mulher e a minha filha e até a vizinhança se souber.


- Não te lixes com isso, diz que o curso é de electrónica, computadores ou internet para automóveis. Elas sabem lá o que é isso, e nós também não, - rematou o Tavares.


Na pausa para o café, o Madeira foi falar com o engenheiro Martins que tinha deixado de falar no portátil para beber café também.


- Não sei, foi a Administração da Marca Francesa que vos escolheu e mandou para aqui. Nós só organizámos o processo e pusemos isto a funcionar - respondeu-lhe o engenheiro Martins.


Quando regressaram à Oficina Central, o Madeira foi logo ter com o engenheiro e perguntou furioso. - Então o senhor manda-me para um curso de lavador de carros?


- É só um proforma, Madeira, já não precisas de ir lá mais, foi só para assinares as fichas.


- Está bem, mas olhe que se haver azar ponho a boca no trombone. Isto é uma aldrabice.


- Não tenhas medo pá, já demos cursos a milhares de gajos e nunca houve problemas.




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Segunda-feira, 2 de Fevereiro de 2004

A Ideia

O anúncio no Diário de Notícias era claro: gestor de produto e planificador com curso superior. Manuel de Almeida respondeu; provavelmente enviava a sua centésima resposta em pouco mais de um ano após de ter completado o curso de Gestão na Universidade Privada S. G. Já não esperava ir a qualquer entrevista, mas, mesmo assim, salientou os seus conhecimentos de inglês que tinha aperfeiçoado recentemente e o castelhano que estava a aprender no Instituto Espanhol. Há tempos tinham-lhe aconselhado. - Já que isto está tudo a tornar-se castelhano, nada como aprender a língua dos capatazes das multinacionais.

 

- Sim, - disse-lhe um dia um dos tios, -  as multinacionais estão todas a gerir os negócios em Portugal através das suas filiais no país vizinho. Portanto, são os "capangas" hispânicos que mandam. Por vezes é melhor saber castelhano que inglês. E cuidado, não convém saber demasiado das duas línguas. É que os ditos espanhóis têm muito pouco jeito para línguas, daí que falam um inglês horrível e, naturalmente, um jovem como tu que sabe inglês e a língua deles pode ser uma ameaça. No mercado do emprego e desemprego há que gerir cuidadosamente a questão das ameaças possíveis ou fantasmagóricas na cabeça daqueles que nos empregam -  rematou o tio.

 

Quando lhe telefonaram, Manuel nem sabia ao certo a que emprego é que tinha concorrido, já que nas últimas duas semanas, desesperado, respondera a tudo; desde o porta-a-porta à venda de computadores, passando por pedidos de contabilista, director comercial, fiscal de obras, apontador, gestor de canal de distribuição, consultor comercial, recepcionista, formador, "acheteur chef de produits", mesmo assim num anúncio em francês, etc. E como tinha lido, Manuel personalizava sempre as suas respostas nunca se esquecendo de dizer que também sabia informática na óptica do utilizador.

 

Foi chamado; teve uma longa conversa com um tal doutor Angel Cuerpo, um valenciano baixote e gordinho que falou muito do grupo que estava a instalar uma filial em Lisboa. Somos a KK Ibérica, filial da KK Europa com sede em Bruxelas, mas na verdade dependemos da KK Mexicana que elabora o que vendemos, à excepção do que começa agora a vir da KK Kaoshing da China. Sabe, a produção da ideia é bem mais barata na China. A KK Mexicana é, por sua vez, subsidiária da KK "High Tech" de Richmond na Califórnia, ligada à "Empresa Moderno" de Bogotá na Colômbia, cujo capital é maioritariamente pertença do "Trust Bank of Texas" - disse o doutor Cuerpo em puro castelhano.

 

Manuel não ficou a perceber bem estas complexas ligações, e mais confuso ficou quando Cuerpo lhe disse que o armazém e arquivo principal ficavam em Schipool, na Holanda, junto a um aeroporto, portanto. Mas a sua personalidade deverá ter causado alguma impressão favorável, o que levou Angel Cuerpo a disparar de repente, - sabe onde fica Richmond ?. - Sei Sim, - respondeu Manuel de Almeida - fica na baía de São Francisco, frente à cidade, do outro lado da ponte do Golden Gate. - Bueno, bueno, usted és listo - retorquiu o valenciano, acrescentando: - e é bom que fale as duas línguas, inglês e espanhol, pois nós somos uma empresa americana, mas com grande penetração no mercado hispano-americano e ibérico.

 

Visivelmente bem impressionado, Angel Cuerpo disse-lhe que voltasse ao escritório daí a três dias, para falar com o doutor Macedo, técnico de pessoal e psicólogo. Manuel de Almeida não conseguiu perceber bem afinal o que vendia a KK. Pode ser que seja uma empresa que vende fundamentalmente uma ideia mais ou menos infantil acompanhada por uma espécie de "poção mágica" a "franchisados" que entram com o investimento e recebem da KK a brilhante ideia e a dita "poção", pensou Almeida. Até porque o valenciano me disse que a função que me vão atribuir é a de "gestor de ideia" que, no dizer dele, significa transformar a ideia em dinheiro. Daí necessitar de capacidade de gestão aliada a um forte poder de convicção.

 

- Mas o principal - recorda Manuel de Almeida das palavras do valenciano - é acreditar na ideia, só assim é que se leva os outros a terem a nossa fé, a certeza de que com a ideia ficarão ricos; bastando para tal investir um capital relativamente modesto, poucas dezenas de milhares de euros.

 

Passados os três dias, Manuel de Almeida foi falar com o doutor psicólogo. Depois de uma longa espera mandaram-no entrar no mesmo gabinete onde tinha sido recebido pelo Cuerpo. Um gabinete bem mobilado com móveis modernos de aglomerado de madeira pintados de branco, negro, verde e amarelo, tudo novo e a cheirar a "leasing". A conversa foi longa, falou-se muito do que era a ideia e como as ideias governam o Mundo. Por fim, o doutor disse que Almeida estava admitido. Como estava desempregado podia começar já a trabalhar, amanhã mesmo, mas primeiro assinava uns papéis como é norma do grupo KK.

 

Manuel preencheu um longo formulário formato "Fanfold" tipicamente americano com perguntas em inglês e castelhano sobre tudo e mais alguma coisa. Fotocopiaram o diploma da privada e, por fim, o doutor disse que tinha ainda de assinar a carta. É só um proforma, uma maçada que a KK de Richmond nos obriga a todos. Almeida ficou admirado, a carta tinha impressa a laser um cabeçalho com o seu nome e endereço escritos no "Word", dirigida à administração da KK Ibérica. Na carta, estava simplesmente escrito que a partir desta data, a branco, ele, Manuel de Almeida, licenciado pela Universidade Privada S. G., gestor de ideia na KK Ibérica, vinha pedir a rescisão do seu contrato de trabalho, declarando ainda que nada tinha a receber da empresa, além do ordenado do mês em curso ou findo. Almeida ficou petrificado, não sabia se devia ou não assinar. Contava com um contrato a prazo, mas nunca com a demissão antes de admitido. "Isto deixa-me totalmente nas mãos destes gajos, pensou Almeida, e eu ainda nem sei de que ideia se trata afinal. Bem, mas não tenho alternativa, se levanto cabelo não me empregam e, se for corrido daqui a uns tempos, pelo menos ganho alguma experiência. Gerir a ideia deve ser aliciante em termos de futuro. Sim, haverá sempre uma, duas, três, sei lá quantas ideias, para gerir até ao fim de minha vida.

 

Manuel de Almeida, um pouco contra a sua vontade, acabou por assinar a carta a pedir a rescisão do contrato de trabalho e só depois é que lhe apresentaram um contrato por seis meses prorrogável sucessivamente por outros meses no qual era claramente especificado que perante um pedido de rescisão do próprio não havia lugar a qualquer indemnização ou pagamento de adicionais. "Pelos vistos, a KK não pensa que eu possa querer mesmo demitir-me por livre vontade quando arranjar um emprego em condições, até porque o salário proposto não é grande, 750 euros por mês mais uma pequena percentagem pela angariação de novos adquirentes da ideia, a qual é sempre transaccionada sob a forma de franquia fixa e participação nos lucros do adquirente, como foi dito pelo Cuerpo.

 

Assinados os papéis, o doutor psicólogo disse que no dia seguinte, muito cedo pela manhã, um doutor espanhol e outro doutor português dariam um curso-seminário sobre os propósitos da KK Ibérica. Almeida foi dos primeiros a chegar, ainda esperou algum tempo até aparecer gente à porta do grande espaço aberto, "open space", como dizem as empresas de mediação imobiliária. Tabicado só estava o gabinete da chefia, estando pessoal a tabicar mais alguns gabinetes. O curso foi dado no espaço a poente com alguma, mas pouca, vista para o Tejo. José Cuevas, o doutor em gestão da ideia e detentor de um mestrado de técnicas de franquia disse que estava ali, não já para explicar a ideia, mas antes, a filosofia existencial do grupo mundial KK. Falou o dia inteiro do que era o grupo KK e do orgulho que cada um devia sentir por trabalhar para um grupo assim. Apresentou folhetos com gráficos a mostrar a progressão das vendas da ideia nos cinco continentes e depois nos mais diversos países. Com Manuel de Almeida tinham começado mais cinco outros licenciados, os quais, como disse, o doutor Cuevas, estavam ali para trabalhar em franca competição.

 

- Na KK Mundial - acrescentou - a concorrência é o nosso próprio sangue, somos todos avaliados pelo resultado dos nossos esforços. Até uma simples secretária tem de fazer a estatística diária do número de palavras que escreveu no computador e no dia seguinte terá que escrever mais ainda e todos os dias assim. Não conhecemos limites à nossa capacidade de competir com os outros e connosco mesmo. Devemos saber quantos passos demos e ultrapassar o respectivo número dia após dia. Fundamentalmente, vendemos a ideia da competição total e global em todo o planeta. Não pode haver território, cidade, província e até aldeia mesmo, onde nós não tenhamos estado a oferecer a ideia.

 

Mas, cuidado, não se trata de vender a ideia como quem vende os preceitos de uma qualquer nova religião, apelando ao foro intimo de cada um e baseado na nossa capacidade de transmitir convicções. Não, a ideia tem que ser vendida com simplicidade, como quem vende um par de peúgas. A ideia deve ser exposta com tanta eficácia que o indivíduo alvo deverà transformar-se num adquirente desejoso, sem mais nada.

 

Depois de devidamente instruídos quanto à filosofia do grupo, passaram ao "Brainstorming" de planeamento. Apareceram os doutores Cuerpo e Cuevas com Terry Hart, um texano que falava o inglês com a pronúncia cerrada da série "Dalas" . Este explicou as bases da estratégia do ataque ao mercado, levando a que os cinco gestores discutissem entre si a divisão do país em zonas operativas, mas ficou esclarecido que dada a tremenda macrocefalia do país, todos trabalhariam o mercado da área urbana da grande Lisboa e Setúbal, mesmo o primeiro mercado a ser abordado. Terry Hart concordou, acrescentando que entendia ser isto uma espécie de Nova Iorque e Nova Jersey juntas. O trabalho começava por contactos telefónicos, procura de endereços de pessoas com o capital suficiente, inserção de publicidade, atendimento a respostas e idas a locais onde fosse possível encontrar clientes.

 

A ideia deve ser vendida por todas as formas, registando-se cada operação no computador. Na sua área cada um é gestor e controlador da sua actividade, devendo saber rigorosamente o que tinha feito desde que iniciara o trabalho na KK. Havia mesmo uma espécie de gestão de stock da ideia. Cada um tinha um objectivo em termos de ideia para vender, acumulada como stock, deduzindo ao total inicial cada venda realizada. Manuel de Almeida começou a organizar o seu departamento como os outros, fazendo no computador folhas estatísticas, folhas de contactos, etc., além de ter de procurar os meios para atingir os fins numa dada área; rádios locais, jornais, agências de informação, espaços publicitários, etc.

 

Os dois doutores, o valenciano e o castelhano, chefiavam tudo. Terry Hart estava geralmente em Madrid, só aparecendo de vez em quando acompanhado por um ou dois castelhanos que deveria estar com os cinco gestores portugueses nas diversas fases dos seus trabalhos. Chegava sempre cedo, Manuel de Almeida, primeiro às oito e meia, depois sucessivamente mais cedo, competiam todos para serem os primeiros a chegar ao trabalho quando não tinham de sair directamente de casa para qualquer ponto do país. Os doutores Cuerpo e Cuevas começavam bem mais tarde, mas de vez em quando um deles fazia a surpresa e aparecia às sete e um quarto. Entrava e via os restantes gestores a entrarem logo a seguir, olhava para eles com um sorriso malicioso, como que a dizer, "se vocês não tivessem assinado a tal cartita não estavam tão cedo a trabalhar. Assim, ainda fazem uma dez horas por dia".

 

Nessas manhãs ocasionais, Cuerpo e Cuevas alternavam, um vinha mais cedo e outro mais tarde, o último a entrar ficava até depois das sete da tarde. Almoçavam todos num restaurante perto que aceitava as senhas dadas pela KK e não dormiam a sesta à espanhola, só os dois ibéricos é que iam não se sabe para onde descansar. Os lusitanos não estavam habituados a isso, recomeçavam logo a trabalhar, já que o lema da KK era trabalhar hoje mais do que ontem e amanhã mais que hoje, sempre, sempre até ao dia do despedimento final. Um dia, o Alonso Casco, que viera de Madrid para acompanhar os trabalhos dos portugueses, disse que ninguém trabalhava na KK mais do que uns quatro a cinco anos a nível de chefia e uns dez a doze meses a nível intermédio. A telefonista Maria da Silva só ficou seis meses; era uma excelente trabalhadora, mas por uma questão de princípio global da empresa foi despedida. Também o Alberto Vara, um dos gestores de ideia que começara ao mesmo tempo que Manuel de Almeida, foi posto na rua, apesar de o seu "score" ser dos melhores, estava mesmo em segundo lugar, muito próximo do primeiro. Também foi por uma questão de filosofia do grupo KK, no qual o despedimento faz parte da vida normal de trabalho, cada um cumpre um ciclo determinado na empresa. Só o gestor europeu de ciclo é que determina quando é que cada um dos empregados do grupo deve ser despedido, isto é, quando termina o seu ciclo de vida. A KK tem um gestor do despedimento, chamam-lhe pois gestor de ciclo.

 

Manuel de Almeida esforçava-se e tudo fazia para alcançar bons resultados na colocação da ideia no mercado. Os clientes eram atraídos por anúncio ou por contacto directo ou por telefonemas em que se prometia um brinde de alto valor se respondessem certo a uma pergunta. Às vezes sorteavam-se viagens ao estrangeiro, mas na maior parte dos casos não. Em termos operacionais, a KK estava ligada a um banco espanhol, o "Barcelona e Catalunha", propriedade do "Trust Bank of Texas", que facilitava listas de pessoas susceptíveis de serem abordadas por possuírem capital e situarem-se sociologicamente nos parâmetros da filosofia KK. Almeida contactava directamente o alvo e convencia-o que a tinha a chave de todos os seus lucros futuros, sob a forma da ideia "franchisada", mas que o principal estava no querer dele como investidor. Mais do que os seus meios financeiros é a capacidade e vontade da sua mente que conta, costumava dizer Almeida aos futuros clientes.

 

O livro do líder do grupo, Kurt Kruppi, "A Força Vital da Ideia" já estava traduzido para português e era logo vendido ao contactado para que se pudesse inteirar do que faz verdadeiramente mover pessoas e bens neste mundo cada vez mais global. Depois dos contactos iniciais, Almeida propunha-se sempre acompanhar o presumível adquirente a qualquer local onde pudessem discutir a ideia; tanto podia ir a casa dele depois das nove ou dez da noite, como encontrar-se nalgum sítio, café, escritório, etc. Desde que um ou mais alvos estivessem à vista, o gestor da ideia tinha de ter uma capacidade de caça felina, perseguir a presa nem que fosse vinte e quatro horas por dia e até aos confins do país. Tanto ia a Chaves como a Vila Real de Santo António, desde que a oportunidade surgisse, mas o ideal era atrair o alvo ao espaço armadilhado da própria KK, o seu escritório. Considerava-se aí como a vitória alcançada. Deixar sair do escritório da KK um cliente presumido sem ter efectivado o negócio era algo de imperdoável e resultava numa multa salarial bastante grave.

 

Manuel de Almeida foi aguentando a pressão sem alternativa, já que as mais de doze horas que dedicava diariamente à KK não lhe deixavam tempo para olhar para as páginas dos anúncios de empregos do "Diário de Notícias" ou do "Expresso". Às vezes dizia para consigo que aquilo não tinha sentido, e quando o Alberto Mendes foi despedido, pensou que ele seria o próximo, também por uma questão de princípio. Estava preparado para isso. Mas o que o irritava mais era aquele sorriso nas bocas tortas do valenciano e do castelhano, o Cuerpo ou o Cuevas. Ambos sorriam da mesma maneira quando chegavam muito cedo ao escritório. Para Almeida eram uma e a mesma pessoa transfigurada nesse sorriso que lhe fazia lembrar a carta, a tal cartinha a pedir a rescisão do seu contrato.

 

Um dia, Almeida julgou ver num dos dois um sorriso mais rasgado e logo pensou "chegou a minha hora, vou ser despedido, é por uma questão de filosofia existencial do grupo KK". Almeida sentara-se na sua secretária naquele espaço quase todo aberto e via o Cuerpo ou o Cuevas de sorriso nos lábios a passar e voltar a passar por perto. Buenos Dias tinha ouvido dizer. Foi o máximo. Almeida não aguentou mais, o sorriso e as duas palavras em castelhano, levantou-se, pegou na cadeira e atirou directa ao alvo, a cabeça do Angel Cuerpo como veio depois a saber. A pontaria foi certeira, o atingido caiu desmaiado, e Manuel de Almeida foi agarrado pelos colegas. Levaram-no a uma esquadra da PSP onde ficou detido para averiguações. O subchefe atendeu o grupo com maus modos e chegou a perguntar se não podiam resolver o assunto entre eles. Depois ao falar-se de agressão, lá se prontificou a levantar um auto para o tribunal de polícia. A cadeira no ar foi o último acto de Almeida na KK. A ideia atingira enfim o alvo, consubstanciara-se na acção essencial. Transformar o sorriso do castelhano num esgar de dor.

 

Dieter Dellinger Copywright

publicado por DD às 01:31
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