Adalberto regressou a casa um pouco toldado sem ligar àquela noite algarvia, muito clara, nada fria, nem sequer fresca, simplesmente amena. Tinha estado no bar do Clube da Sociedade Columbófila a beber umas cervejas com o Tó Zé, o patrão da traineira que tripula como pescador. Além do Tó, esteve o Manuel, também da campanha, o velho pescador agora reformado Joaquim Madeira, primo do Adalberto, e mais uns tantos clientes habituais da Columbófila.
Quase nenhum dos presente tinha algo a ver com os pombos, mas reuniam-se ali no único estabelecimento de porta aberta do Bairro Social de Vila Nova. Só os casados jantavam em casa e depois iam ao bar, os outros, solteiros, separados ou divorciados não jantavam. Adalberto comia um pão com queijo e nada mais, ia depois ao bar completar o jantar com cervejas e tremoços. Estava separado da mulher, a Ana Maria, há uns meses, com quem mantinha um diferendo azedo quanto à guarda do filho de dez anos, Saúl, que passava então da casa do pai para a da mãe e vice-versa em função dos presentes e da aceitação de todas as suas vontades.
O miúdo tinha já duas bicicletas e um computador, além do telemóvel, da "play station" e não sei o que mais? Mesmo assim, continuava a exigir tudo o que lhe viesse à cabeça, tanto de um como do outro dos seus progenitores que quase lhe obedeciam cegamente com medo daquilo que o petiz pudesse dizer à juíza da Família na audiência marcada para daí a muitos meses. Adalberto queria a guarda do filho só para aborrecer a mãe. Para o efeito contava com a ajuda da avó do miúdo e sua mãe que vivia no mesmo prédio e cozinhava grande parte das refeições para o puto, vigiando-o quando o Adalberto ia à pesca.
A cavaqueira no bar da Columbófila durou até altas horas da noite, era Sábado e na madrugada seguinte não sairiam para o mar, podiam pois dormir até tarde. Falaram do costume, da pesca, do preço do pescado, das agruras do quotidiano familiar de uns e outros, das malandrices dos filhos e irritações das mulheres, do futebol e da viagem a Espanha que o Orlando fez. Adalberto até nem falou muito, esteve quase sempre calado, absorto nos seus pensamentos.
Já depois das duas da madrugada despediram-se, abalando cada um para as suas casas. Adalberto foi a pé, subiu a pequena ladeira que o conduzia à estrada antiga e daí a uns metros no caminho municipal estava em casa, no segundo andar de um prédio incrivelmente pintado de azul e varandas nuas providas de um fino gradeamento preto.
Bem perto de casa, Adalberto parou, olhou para um Uno verde já cheio de pó e com os pneus quase em baixo; olhou, recuou um pouco, parou e permaneceu assim durante uns longos dois ou três minutos. De repente deu como que um salto, aproximou-se da viatura e escolheu a parte mais mole, as portas laterais do "bicho", e pregou-lhe um par de violentos pontapés, a seguir voltou-se contra o retrovisor lateral e começou a tentar quebrar a ligação à carroceria, o que conseguiu com êxito fracturando-a e partindo de seguida o próprio vidro.
Passada a primeira fase da surra, parou um pouco e disse para a viatura; -Estás aí? À espera de quê? Dela não? Da tua dona? Não, não estás, eu tenho a chave, ela pode ter os documentos, mas daqui não sais. E continuou a investida com pontapés e socos, estes sem fazerem grande moça até ao momento em que se agarrou à antena e partiu-a. Depois foi ao contentor de lixo, retirou uma série de papéis sujos de todas as imundices e colocou-os junto ao pneu da frente. Tirou o isqueiro e pegou-lhe fogo.
A D. Helena, proprietário do restaurante do lado, que observou tudo a rir-se, assustou-se e gritou: - Não Sr. Adalberto, o carro está junta às casas, se lhe pega fogo, acabamos por ter uma tragédia, o incêndio passa do carro para o meu restaurante e daí para o seu prédio. Adalberto não se importou e encostou os papéis a arder ao pneu, mas a D. Helena correu e num instante retirou-os, o Adalberto agarrou-a; não se largaram, Helena evitava que o Adalberto chegasse aos papéis a arder e os empurasse para junto do pneu, ao mesmo tempo berrava: - Chamem a Guarda, telefonem ao 115 ou 112, que venham aqui prender este tresloucado.
O gajo precisa de ir para um hospital de malucos. - Cala-te porca, "respondeu o Adalberto "ainda deito fogo a toda a rua. Vocês são todas uma merdas, putas sim, como a Ana Maria. - Olhe, D. Helena, gritou o Zé do bar, já vem aí a Guarda, disseram que dentro de alguns minutos estão cá. Adalberto olhou com fúria para o Zé. Largou a D. Helena, aproximou-se do jovem e deu-lhe uma valente bofetada que o deixou atónito e praticamente imobilizado. - Toma que é para saberes quando deves chamar a Guarda. E agora vou-me deitar, cambada de cabrões e cabronas.
Efectivamente, passado algum tempo, apareceu o UMM da GNR. Três praças apearam-se e com os seus ares calmos e arrogantes dirigiram-se ao povo que rodeava o Uno e perguntaram qual a ocorrência. D. Helena começou a explicar que um tal de Adalberto queria largar fogo ao carro. - Isso é grave, - disse o guarda Monteiro. - Não, não é tanto assim, Senhor guarda, o carro é dele, ou do casal, não se trata pois de atentar contra a propriedade alheia.
- Bem, isso é diferente, mas, mas, não sei, mesmo assim há a questão do desacato, perturbação da ordem pública e fazer fogueira na via pública. Ele pode ser dono da viatura, mesmo assim, não, não pode ser.
- Que é isso, que barulheira é essa? Gritou o Adalberto da sua varanda no segundo andar. Estava de tronco nu e calça de pijama, acrescentando: - Não se pode dormir com este barulho todo, eu sou um homem de respeito, um trabalhador, tenho de ir para a pesca dentro de duas horas.
O guarda Monteira olhou para um dos colegas e disse: - Temos de ir lá acima falar com o homem, o gajo está a fazer pouco de nós. E assim fizeram. Bateram à porta, no segundo esquerdo. Relutantemente o Adalberto abriu a porta e perguntou o que queriam.
- O Senhor sabe bem o que queremos, temos de levantar um auto aqui ou levá-lo para o posto. - Bem, eu não fiz nada, ou quase nada, só um pouco de barulho, o carro já estava estragado e aquela coruja do restaurante é que se meteu a fazer barulho e a gritar que eu queria lançar fogo ao carro. Não, senhor guarda, eu só quis ir para a cama como fiz e limitei-me a dizer uns palavrões e dar uns pontapés no carro que é meu e da cabra da minha mulher. Como não tenho carta, o carro não anda, está parado. Mas, isso não é proibido, não.
- Parece que não. Mesmo assim, tenho de levantar um auto e tomo nota nos termos em que disse. Talvez seja notificado para comparecer no posto para dar algumas explicações. Boa noite, pois, senhor Adalberto Madeira. É esse o seu nome, não é, está escrito na porta. - É isso mesmo, sô guarda, e boa noite, até à próxima.
Adalberto ficou arreliado, o álcool estava a passar e a dar lugar a uma depressão. Gritou, merda, fodam-se e foi para a cama, acrescentando, maldito dia da mulher. Foi mesmo no dia da mulher que a Ana Maria foi-se embora, evitando assim apanhar mais uma surra do marido.
Aquilo andava mal há bastante tempo, Adalberto criticava tudo o que a mulher fazia, opunha-se e proibia-a de fazer o que ela queria. Primeiro foi a amizade com a Rita do Talho, a morena divorciada que explorava o talho da praça. Ana Maria começou a trabalhar para a Rita, ajudando-a de manhã nas tarefas do talho, cimentando-se entre as duas uma amizade profunda que as levava a estar quase sempre juntas. Ana Maria ia muito à casa da Rita e por vezes levava o marido.
O Adalberto nada tinha contra a amizade entre as duas, mas a dada altura verificou que aquilo não parecia ser só amizade, mas uma verdadeira paixão, uma loucura mesmo. As duas andavam sempre juntas, telefonavam-se a qualquer hora, viviam como que uma para a outra. Não se tratava de uma paixão lésbica, apesar de que a diferença entre uma amizade profunda e o amor é quase nula. Ana Maria costumava mesmo dizer que a amizade para com a Rita era tanto que até podia ser lésbica se a amiga quisesse, talvez até tivesse concretizado essa ideia. Mas, não, ambas gostavam muito de homens e o tema principal das suas conversas era, sem dúvida, os homens.
A Rita do Talho já divorciado procurava alguém, um homem verdadeiro, como dizia, e desesperava de não o encontrar. A Ana Maria tinha perdido o amor pelo marido e farta dos seus ciúmes talvez procurasse já outro parceiro, ou então queria ser como a Rita, livre, separada ou divorciada, talvez, mas não para sempre. A Rita tinha uma bela viatura na qual frequentemente davam algumas passeatas. Iam a Espanha, à Isla Cristina ou a Lepe. Por vezes aventuravam-se até Huelva e mesmo até Sevilha. O pessoal da vila é que começou a falar, acusavam as duas de serem lésbicas e isso chegou aos ouvidos do Adalberto pela voz do Marquês, um indivíduo meio mongolóide que, por isso, tinha a liberdade de dizer o que lhe apetecia. Um dia disse ao Adalberto: - Adaal, coolega de escola, a tua mulher é fuufas. E é com a Riita. - Porra, cala-te lá, não sabes o que dizes. Não sabes o que é isso, nunca fodeste, sacana, ainda me levas uma cornada - respondeu-lhe o Adalberto que foi conhecido pelo Adal ou o A na escola. - Uma cornada fufa, mas há isso? - Filho da puta, - respondeu-lhe o Adalberto.
A Ana Maria fazia amizades com muita facilidade e tinha uma conversa fina, muito inteligente, apesar de que os estudos não foram muitos. Pouco mais fez que o sexto ano da escolaridade. Não era propriamente bonita, mas não se pode dizer que fosse feia. Era baixa com um aspecto de quem virá a ser gorda, mas fazia uns esforços para se manter magra, pelo que era uma quase magra com bastante largura de anca. A cara também era magra ou antes do tipo quase afiado com um perfil razoável. A sua beleza muito relativa não estava tanto no aspecto físico como numa mistura de vivacidade e boa disposição, além do trato fácil e fino, e, naturalmente, alguma juventude de idade e de espírito. Os cabelos encaracolavam muito, pelo que durante muito tempo mudava de penteados sem encontrar algo que lhe servisse, parece que só muito mais tarde é que conseguiu alisar um pouco o cabelo e ficar com um aspecto bem mais agradável. Enfim, a Ana Maria era ela mesmo e nada mais.
O marido, o Adalberto, um tipo magro, fumador inveterado, com uma cara prematuramente envelhecida pelo sol algarvio, o pior, o do mar. Talvez tivesse sido um jovem interessante, mas agora na casa dos trinta e muitos, estava envelhecido, como que gasto. Conheceram-se lá em baixo, perto da praia, onde a Ana Maria ainda muito jovem vivia com a mãe. Ela não era rapariga para ser utilizada e deitada fora. Tinha muita valia, apesar de Adalberto não saber o quê, nem por que razão. Mas, enfim, as pessoas são qualquer coisa mais do que ser simplesmente pessoa e a Ana Maria era isso, mais que pessoa e sem explicação. Por isso, Adalberto propôs-lhe casamento naquele dia em que ela disse que namorava para casar, não para brincar. Toda a gente perguntava o que é que a Ana Maria viu no Adalberto, um tipo de poucas palavras, nenhuma leitura, por vezes violento e incapaz para muita coisa, menos para pescar, coisa que ele fazia desde miúdo, na praia ou nos botes dos tios. Adalberto esteve na tropa. Como era pescador colocaram-no na marinha, mas viu-se aflito para tirar o curso de marinheiro. Se não tivesse sido a guerra nas possessões ultramarinas, teriam-no chumbado e mandado embora. Mas não, foi para a Guiné. Viveu aventuras violentas e passou medos, mas o Adalberto era e continua a ser uma espécie de fortaleza, alguém que pouco ou nada teme, ou que não aparenta ter medo. Talvez fosse essa a característica que prendeu a Ana Maria.
Mas, depressa a Ana Maria cansou-se dos ciúmes e das tentativas de sova que Adalberto queria dar e raramente conseguia. O casamento começou a acabar quando Ana Maria quis ser actriz do grupo de teatro amador da terra. Ainda estudou um papel, mas acabou por desistir, já que o Adalberto não queria e berrava sempre que a via ir à sala da Junta de Freguesia onde faziam os ensaios.
Mas, o final foi mesmo o dia da mulher. As mulheres mais amigas de Vila Nova decidiram organizar um grande jantar. Só elas, maridos nada. Adalberto disse que a proibia de ir ao jantar, mas Ana Maria não ligou, foi mesmo. No regresso, apareceu-lhe o Adalberto meio toldado e em fúria. Pregou-lhe um violento bofetão, ela deu-lhe um pontapé bicudo e ele empurrou-a. Ana Maria quase caiu, mas levatou-se, tirou os sapatos e correu para fora aos gritos, dizendo que o marido a queria matar. Adalberto envergonhou-se e não e perseguiu, deixou-a ir, mas foi depois atrás sem a conseguir encontrar. Ana Maria refugiu-se no velho apeadeiro do caminho de ferro e daí telefonou pelo telemóvel à amiga Rita que a veio buscar. Nunca mais regressou a casa. Nem para buscar os seus pertences, Até o carro ficou abandonado à porta. Fim
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