Quinta-feira, 20 de Agosto de 2009

A Terra del Gatopardo e del Pizzo

 

           

 

 

 

 

       

 

            Há um rol de anos que conheço o Giuseppe Salinas Grillo, parmesiano da parte do pai e siciliano da mãe que diz ser descendente do príncipe de Salinas, o fundador da pequena vila de Palma di Montechiaro, perto de Agrigento, no sul da Sicília, e tão bem descrita no romance “O Leopardo” imortalizado pelo também Giuseppe, mas Tomasi di Lampedusa. Nasci em Parma, dizia-me Giuseppe Grillo; a minha mãe e as minhas tias com os meus primos é que  vêm da “Terra del Gatopardo”, também conhecida por “Terra del Pizzo” no sul da Sicília.

            Quando me contou isso, ia eu ao volante do Mitsubishi para visitar um cliente em Cantanhede e estava um pouco aflito com uma certa falta de visão. Sem saber porquê, andava com uma catarata no olho direito e degenerescência macular no esquerdo, como me disse depois o oftalmologista. Estas reduções de visão não são bem sentidas e parece-nos que continuamos a ver normalmente até bater em algo. Por isso eu continuava a conduzir armado em valente até quase bater num camião. Passei o volante do carro para as mãos do Grillo com quem andava a vender sementes para pastos cultivados. Já então ocupavam-me da alimentação animal por via de misturas de espécies pascículas para os mais diversos terrenos, climas e épocas do ano. Giuseppe Grilo tinha uma empresa produtora das sementes que eu vendia em Portugal e Espanha.

            Sempre julguei que o meu amigo Giuseppe fosse sardo, pois falava muito da Sardenha onde vendia toneladas de sementes para todos os pastos da região, pelo que no início não associei a “Terra del Gatopardo” com o romance de Lampedusa e, menos ainda, com a Sicília e o termo “pizzo” não me dizia nada. Mas, nestas conversas ao volante não prestava muita atenção, razão porque não conseguia inteirar-me das suas histórias, apesar de ser um coleccionador fanático de histórias.

            Todos os anos, pelo Natal, Grillo mandava-me um imenso pacote com um gigantesco queijo da Região de Parma que acabava por não consumir totalmente porque aquilo servia mesmo para massas, “la pasta”, coisa que não como com frequência, mas era o símbolo de Parma, onde se localizava a empresa do Grillo que, não sei porquê, tinha o nome francês de “Atlantique Semences”. Talvez para apagar qualquer sinal da sua origem siciliana já que aquilo pertencia ao Giuseppe, às irmãs e a dois primos maternos.

Este verão fomos almoçar a Castelo Branco depois de o ter levado a umas terras na Serra ele ver com se alimentam em Portugal as ovelhas com Erva do Sudão, uma espécie vegetal pouco conhecida no resto da Europa e que aqui se aclimatizou muito bem com sementes seleccionadas oriundas dos Estados Unidos da América.

            Conversa puxa conversa e eis que Giuseppe conta-me que tinha a mãe em casa, em Parma, pois tinha literalmente fugido da Sicília depois de lhe terem incendiado o carro, mesmo à porta da casa onde vivia com duas irmãs, todas viúvas, pois achava o clima de Parma muito frio. “Sim, a minha mãe é uma viúva natural, - dizia-me o Grillo -  pois o meu pai morreu de cancro, mas os maridos das minhas duas tias não. Um deles foi assassinado no barbeiro com a cara ainda toda ensaboada por um tipo que entrou com uma “shot gun” e ninguém viu nada, apesar da barbearia estar cheia de gente. O tiro foi tão violento que a cabeça saltou para fora e o barbeiro ficou com a navalha na mão, mas sem cara para escanhoar e a loja toda vermelha de sangue. Ao outro tio colocaram-lhe uma bomba no carro e foi ele com o carro todo despedaçado.

            A minha mãe – continuou o Giuseppe – fugiu de Palma porque não pagou o “pizzo” e não foi porque não quis, mas sentia-se adoentada naquela noite em que tinha de depositar a quantia exigida pelos mafiosos locais.

            Então o “pizzo” é o quê? Perguntei-lhe.

            Sabe naquela zona siciliana era hábito exigir dos comerciantes, industriais, agricultores e gente mais ou menos rica em geral uma taxa de protecção. Como muita gente, tal com a minha família, não estava para isso emigrou para o Norte de Itália ou, mesmo, para outros países da Europa, o número de pessoas a espremer tende a ser diminuto e, além disso, os grandes da “cosa nostra” ou das “máfias sicilianas” dedicam-se cada vez mais à globalização, organizando o tráfego internacional de droga, prostitutas e os assaltos multinacionais e são donos ou sócios de muitos negócios legais, pelo que se tornou perigoso exigir dessas empresas o “pizzo”. E foi, talvez, em 2004 que alguém se lembrou de impor o “pizzo” a toda a população de uma vila e depois a uma região e, hoje, estou convencido que todos os sicilianos pagam o “pizzo”.

            As pessoas recebem em casa uma pequena carta com a indicação da quantia que devem colocar em determinado local, geralmente um sítio ermo e a altas horas de noite. Devem embrulhar as notas no papel que receberam para que os “colectores” do “pizzo” saibam bem quem paga ou não. As quantias não são muito elevadas e geralmente são iguais para toda a gente, mesmo para reformados, trabalhadores manuais, empregados de mesa, trabalhadores da remoção do lixo, etc.

            Aqueles que não pagam recebem depois a “multa” respectiva. O carro é incendiado ou colocam-lhe à porta uma lata com combustível a arder, queima-lhe a vinha e sei lá o que mais.

            Então a justiça não funciona na Itália, não há polícia? Perguntei ao Giuseppe Salinas Grillo.

            O homem olhou espantado para mim e disse: “mas alguma vez ouviu falar em justiça na Itália, em polícia ou qualquer coisa parecida. Sim, existem unidades especiais para receberem ordenados altos, belíssimas fardas e velozes Alfa-Romeos, além de horas extraordinárias, mas para proteger os cidadãos não há nada na Itália. Então não temos o maior bandido no poder. Os juízes das “Mani pulite” na Itália andaram mais de dez anos a incriminar o pobre do Andreoti de ser um mafioso para chegarem à conclusão que não havia o mais pequeno indício da pertença dele a qualquer máfia, apesar de haver políticos locais de todos os partidos ligados a diversas máfias, mas aí, calma, ninguém quer meter-se. Um presidente de Câmara paga bem os seus “pizzos”, um para ser eleito e outros para continuar no poder. Olhe, meu caro, Palma de Montechiaro é toda construída ilegalmente; os prédios e moradias não obedecem aos planos de urbanização e se o edil se opuser há sempre alguém para fazer o serviço de o despachar para o outro mundo o mais rapidamente possível e ninguém viu nada.

            Sabe, meu caro Dieter, disse ainda o Giuseppe. A Itália vive na moderna post-democracia. Os partidos tradicionais desfizeram-se sob o impacto de uma televisão privada liderada por um bandido, o Berlusconi, e pela neutralidade absoluta da televisão estatal, toda proibida de dizer bem seja de que governo for. Os partidos foram-se embora e deixaram as chaves nas portas; Berlusconi com um falhado ex-estudante de medicina, o Bossi da “Lega Norte”, entraram e ocuparam o poder. Voltaram a sair, mas regressaram de novo, apesar de substituírem gente muito honesta, mas que não se entendia muito bem entre si.

            Sim, a Itália de hoje não é uma democracia, mas ainda não é uma ditadura porque Berlusconi não tem sentido e apetência pela posse do Estado; é um empresário brincalhão para quem o poder é praticamente um divertimento e um meio de conquistar jovens beldades, sendo que muitas são colocadas em listas para deputadas devido ao sistema de quotas.

            A Itália – continuou Guarnieri – faz lembrar o fim da República Romana e está cada vez mais decadente. Repare que o intelectual mais famoso é um tal Giuliano Ferrara, conhecido pelo “Elefantino” devido à sua obscena obesidade enfeitada com uma barba nojenta. O homem, ex-comunista, foi ministro do “Cavaliere Burlosconi” e é o director do jornal “Il Foglio” financiado pela Verónica Lario, a ainda “signora” Berlusconi, agora separada do marido. Foi ele que inventou a tese da post-democracia e acredita que o modelo vai espalhar-se por quase toda a Europa como aconteceu com o fascismo de Mussolini em que também a Itália foi pioneira. Daqui a dez anos, os principais países europeus terão os seus Berlusconis ou alguém mais duro e sério como o Bossi. Só que, Ferrara acha que a post-democracia exige outra figura que não o “Cavaliere” que não sabe distinguir o público do privado. Por enquanto, Ferrara fala da Itália como uma “ditadura do riso” em que tudo se resolve com umas gargalhadas e, naturalmente, uns cheques ou pacotes de notas. Ninguém leva nada a sério e, por isso, os grandes e pequenos mafiosos andam à vontade em toda a parte menos no norte e a justiça na funciona na terra do “Buffo-Duce” como o meu amigo Guarnieri apelida o Berlusconi, acrescentando: principalmente a justiça não funciona e os juízes italianos causam um prejuízo anual de uns 2,5 mil milhões de euros à economia pela sua inoperância.

            Olhe, um conhecido desenhador e caricaturista do “Corriere de La Serra” conta que criou há trinta anos atrás uma marca de doçarias diversas com embalagens de grande estilo e excelentes formulações. Aquilo foi copiado por industriais importantes e o processo ainda hoje está na justiça, acreditando-se que talvez daqui a mais umas décadas esteja resolvido.

            Berlusconi foi capaz de utilizar a televisão e o Inter de Milão como verdadeiros instrumentos de poder, sucedâneos dos partidos e com isso conquistou o poder. Claro, aliado a juízes corruptos que têm sido ricamente recompensados e que tudo fizeram para destruir os partidos democráticos.

            A Itália é a decadência absoluta. Já não tem um compositor, um cineasta de jeito, nem criadores de novas indústrias. Ninguém é capaz de compor uma ópera nova, não há um Gaetano Donizeti e, menos ainda, um Rossini nem um Victor de Sica. Uma tristeza. Tem o passado e os seus melhores técnicos e cientistas fogem para o estrangeiro. Ficaram os mafiosos a cobrarem o “pizzo” da Nápoles para baixo e o populista “Cavaliere” que mobiliza todas as energias quando se trata de exibir trabalho como fez com o lixo de Nápoles e com a reconstrução de Aquila, apesar de que muitas ajudas destinadas às vítimas foram parar aos bolsos de autarcas e construtores mais ou menos mafiosos.

            A Itália, terminou o meu amigo sicilio-parmesiano, vive de algumas paixões e apaixonados pelo automóvel, pela técnica e “design” e pela paixão da moda. São estas paixões que fazem funcionar uma economia que ainda não morreu do “umbigo” para cima, ou seja, de Roma para o Norte. Temos uns dez mil desenhadores, criadores e artistas de tudo e vivemos dessa gente. Se um dia fossem embora, o país entrava na completa ruína.

 

 

 

             

 

 

 

publicado por DD às 22:13
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