Paquete Fuerst Bismarck antes de se tornar no Moskwa da Frota Voluntária da Rússia ao largo de Libau em 1907
O Navio
O “Moskva” aí estava, ancorado ao largo de Libau, a capital da então denominada Curlândia, província báltica do Império do Czar, hoje Letónia, naquele ano de 1907. Foi uma alegria para o “professor” Mossei, sua jovem mulher Katia, e para o casal Dmitri Yazov e Irina, verem naquele dia cinzento de Outubro o velho paquete da Frota Voluntária de Rússia que os iria levar a Nova Iorque, a porta da tão sonhada América, depois de uma longa e extenuante viagem de comboio desde Rostov-no-Don, em pleno sul da Rússia Imperial, até aquele porto da bem nórdica costa báltica das terras de Nicolau II.
O ar elegante do velho paquete a vapor, mas ainda com mastros para velas redonda à vante e latinas à ré, encantou-os, saltou-lhes mais aos olhos as linhas da proa de veleiro com o pau de bujarona a lembrar um belo “Clipper” e a popa bem desenhada de paquete daquele ex-navio alemão, construído em 1891 em Stettin, com um casco negro terminado numa cintura branca que marcava o exterior da amurada. As três grandes chaminés não destoavam do conjunto, pintadas de amarelo claro terminado por uma pintura negra no topo
Os dois casais, um judeu e outro cossaco, nada tinham em comum, mas encontraram-se acidentalmente numa carruagem verde da terceira classe dos caminhos-de-ferro imperiais. A simpatia e a amizade nasceu do reconhecimento de que ambos tinham o mesmo destino, a América, e do ar sofredor com que cada um dormia nas longas noites passados num comboio que nunca mais parecia chegar à estação final em S. Petersburgo
Efectivamente, os bilhetes e a papelada final foi tratada na capital daquele imenso império russo, mas o navio não zarpava do porto no rio Neva, antes da baía de Libau, mais aberta e mais disponível para receber os emigrantes polacos, russos, judeus, lituanos, estónios e finlandeses que emigravam para a terra prometida da Liberdade e tolerância, no entender dos cidadãos europeus das grandes monarquias imperiais. O casal cossaco tinha comprado por um bom preço a autorização para emigrarem; o general-Ataman cossaco concedeu-lhes a licença sob o pretexto de Dmitri Yazov não servir para o serviço militar e não possuir terra para cultivar.
O “professor”, evidentemente não possuía qualquer grau académico e nunca ensinou numa escola, mas foi alcunhado com esse título por Dmitri durante a viagem de comboio por ter começado a ensinar inglês aos seus dois companheiros de viagem. Moissei tinha uma cultura invulgar e falava inglês e muitas outras línguas europeias. Natural de Odessa, era oriundo de uma família tipicamente judaica de antigos camponeses de Kershan, uma das regiões russas em que aos judeus era consentida a actividade agrícola, mas a troco de uma enorme insegurança, pelo que os pais de Moissei acabaram por emigrar para Odessa onde esperavam estar livres dos contínuos ataques por parte das “centúrias negras” que naqueles tempos se entretinham a fazer sortidas contra as comunidades judaicas, matando sempre uns tantos cidadãos inocentes e pacíficos. Mesmo assim, a relativa prosperidade alcançada pela família Moissei com um negócio de sementes e alfaias agrícolas acabou por suscitar a ira dos anti-semitas e ser destruído num assalto nocturno. Logo após a morte do pai em 1907 e já sem mãe, Moissei vendeu o negócio e investiu na compra de um visto de saída do Império e dos bilhetes para a longa viagem para os Estados Unidos da América, um país livre de preconceitos anti-semitas no qual esperava fazer fortuna.
Um sudoeste frio enchia aquele dia cinzento de Outubro, enquanto a corrente despejava na baía uma massa castanha de lamas e algas arrancadas às costas baixas e frágeis da Prússia Oriental. O piloto e o comandante olhavam com preocupação o tempo. Sabiam que aquele vento quase forte de proa iria dificultar a marcha do navio, pois os tubos das caldeiras da velha máquina de tríplice expansão estavam muito cheios de calcário e precisavam de ser substituídos, mas o navio tinha ainda de fazer uma viagem antes da chegada do Inverno gelado para aproveitar o que restava da quota de emigração para os Estados Unidos da América.
Quando chegaram, passaram pelos escritórios dos serviços de emigração da Rússia Imperial e depois de regulada a papelada foram informados pelo agente do navio que só ao fim do dia é que poderiam embarcar. Sem mais que fazer, os dois casais deram à guarda a sua bagagem e foram dar uma volta pela cidade, mas como estava desagradável o tempo; ora chovia ora fazia frio resolveram passar um tempo no Café Bonitz e aí ler, à boa maneira europeia, os jornais do dia e algumas revistas da semana.
Moissei já se tinha informado de quase toda a história do navio no Almanaque Russo da Marinha Mercante, pelo que começou a explicar aos seus companheiros que se tratava de um navio solidamente construído para a “Hamburg América Line” com o nome de “Fürst Bismarck”, tendo sido vendido à Rússia por volta de 1902. O Moskva deslocava 8.242 toneladas e podia transportar 400 passageiros na primeira classe, 120 na segunda e uns 600 na terceira. “Mais de mil passageiros num espaço tão reduzido é obra, quase tudo à custa do pessoal da terceira classe, aboletados como gado humano abaixo da linha de água em camaratas enormes cheias de beliches sobrepostos em torno de uma mesa sempre suja e escorregadia com restos de gordura e comida de muitas refeições.
Quando o ajudante do comissário que estava no portaló a receber os passageiros verificou pelos bilhetes que os dois casais se destinavam à terceira classe, o seu semblante anteriormente risonho adquiriu uma faceta desdenhosa e altiva e, já sem boas maneiras, indicou a escada por onde devia descer até ao “inferno” do navio. Mesmo assim, Moissei com os seus óculos de aros metálicos a fingir ouro e o ar doutoral impressionou favoravelmente um dos criados de bordo que lhes arranjou sem problemas um “camarote” interior de quatro beliches e uma mesa quase limpa; um luxo reservado só a uns poucos privilegiados da terceira classe.
Se Moissei fugia a um passado de perseguições ao povo judeu e a uma sociedade preconceituosa em excesso na sua irremediável divisão entre ricos, nobres por demais e pobres de uma miséria insusceptível de ser descrita, Dmitri e Irina fugiam quase de si mesmos. Num período de desavenças conjugais, Irina enamorou-se de outro quando o marido andava em exercícios militares. No momento da reconciliação, Dmitri não quis ficar na aldeia perto de Taganrok, onde o portentoso rio Don desagua no pequeno Mar de Azov, um lago, uma antecâmara de outro lado bem maior que dá pelo nome de Mar Negro. Não quis sentir o preconceito e aos maldosos murmúrios dos seus conterrâneos que chegavam a levar a mão à testa sempre que passavam por ele. Quatro espíritos divididos entre o receio do futuro e a esperança, a caminho da América, fazendo parte dos 80 milhões de cidadãos que de 1820 a 1920 trocaram a mediocridade social da velha Europa pela sociedade de todos os sonhos nem sempre concretizados.
Em segredo, o “professor” tomara nota de tudo o que Dmitri e Irina lhe contaram para escrever mais um dos seus muitos contos que, tal como os anteriores, nunca seriam publicados. Moissei não tinha ideia da qualidade da sua escrita e sabia que não era um Tchekov, pelo que nunca teve a audácia de contactar uma editora. Por vezes, Moissei passava por ser um esbirro da polícia secreta do Czar devido à sua mania de indagar as pessoas, saber tudo o que lhes tinha acontecido e perguntar o porquê de tudo o que o rodeava. Dmitri chegou a pensar nisso e inquietava-se porque na sua qualidade Cossaco do Don estava ligado a um Regimento de Cavalaria do Czar, ao qual tinha de prestar anualmente umas semanas de serviço militar. A sua emigração podia ser considerada uma deserção, mesmo com os papéis em ordem e pagos com bom dinheiro, mas reconsiderou a questão e dizia para si mesmo que um judeu nunca podia ser um agente da Okrana.
Ellis Island - O Centro de Recepção de Emigrantes
O “Moskva” na Guerra
Depois de instalados ainda esperaram um dia inteiro até verem o navio levantar a âncora e iniciar a marcha sob o ruído estridente das suas buzinas de vapor. A azáfama do embarque de pessoas, bagagens, cargas e mantimentos tinha sido aparentemente interminável no meio da desordem tão característica de tudo o que se fazia no Império do Czar Nicolau II.
Mas, o “professor” não perdeu o seu tempo, começou logo a fazer perguntas e foi à casa da máquina e das caldeiras ver como se trabalhava e falar com o mestre, os fogueiros e os serventes, enfim aquilo que nos navios da época era a escória, o carvão humano que fazia arder o carvão mineral. Depois falou com alguns marinheiros até encontrar um mais solicito e de momentos menos atarefado pois era um dos mestres de manobra das velas, as quais nem sempre são içadas, já que o navio era mais vapor que veleiro se bem que os seus construtores o fizeram com misto ou híbrido. Moissei pensou em escrever um conto com o título “Dmitri e Irina”, mas depois e enamorou-se pelo navio, o “Moskva”, e resolveu escrever um conto um título simples e despretensioso, apenas “O Navio”.
Logo de início, Moissei foi informado que o navio recebera recentemente esse nome, pois fora antes o “Don”, pelo que foi informar os seus companheiros de viagem que o navio tivera o nome do seu rio, o Don, que sempre viram desde que nasceram, tranquilo, gelado, agitado e saltando para fora das suas tradicionais margens. No Rio Don, Dmitri iniciou os primeiros passos de navegação num pequeno escaler à vela, enfim o Don que para eles nunca foi mais que o rio, serviu quase de berço e é o que de mais grato levavam na memória.
Com o nome de “Don”, o elegante vapor-veleiro esteve ao serviço da Esquadra da Marinha Imperial Russa que, dois anos antes, deu meia volta ao Mundo para chegar de S. Petersburgo no Estreito de Tsushima, ao largo do Japão, onde foi derrotada pelas forças navais nipónicas.
- O “Don” – disse o mestre de velas Piotr – foi armado em cruzador auxiliar e zarpou de Libau depois do grosso da esquadra russa ter saído, pelo que não contornou o continente africano, mas rumou directamente ao Mediterrâneo e Canal de Suez para se encontrar com os navios sob o comando do almirante Rojestwenski ao largo de Madagáscar. Seguiu depois com a “Grande Armada Russa” em 1905 que deveria derrotar as esquadras japonesas e libertar o Port Arthur, a cidade portuário sob o domínio russo no Mar Amarelo, e parte da Coreia e Manchúria que os russos disputavam com os nipónicos como zonas de influência. Por alturas de Xangai, o “Don” foi enviado com outros navios auxiliares para aquele porto chinês, pois achava-se que esses navios não tinham condições para participar na batalha. Curiosamente – acrescentou Piotr que já estava no navio nessa altura – o iate “Almaraz”, ainda mais auxiliar que o “Don” e mais pequeno, acompanhou a esquadra e foi o único navio que alcançou o porto russo de Vladivostoque no Mar do Japão.
Enquanto Piotr contava isso, Moissei anotava tudo, principalmente os nomes dos navios.
Moissei, esperto como era, instalou logo no seu “camarote” uma espécie de escola de inglês e dava lições a grupos de quatro a cinco alunos de cada vez. Muitas vezes, Dmitri deitado no seu beliche acompanhava as aulas e ia aprendendo umas tantas palavras de cada vez. Todos os emigrantes daquele barco queriam conhecer antecipadamente umas tantas palavras de inglês, pois sabiam que não teriam ninguém a recebê-los na língua russa. Mas, era difícil ensinar a língua inglesa porque muitos eram analfabetos e nem sabiam o que era um verbo. Os dotes de Moissei foram tornando-se conhecidos e Moissei foi chamado à primeira classe para dar aí aulas de inglês a pequenos burgueses que também emigravam para os EUA e que na maior parte eram judeus Kasans como Moissei, ou seja, cidadãos oriundos do antigo império caucasiano Kasan, cujo Imperador converteu-se a si e ao seu povo à religião judaica na sequência de algumas curas conseguidas na família imperial por médicos judeus no Século VIII. Mas, havia outros alunos. Um deles era um rico comerciante que abatera a tiro um seu rival e pagou bem à justiça para poder emigrar e não ter mais problemas. Nos momentos livres e sempre muito invejado pelos restantes passageiros, Moissei ia escrevendo a história do barco e das pessoas com que contactava. Moissei e a mulher partiram pobres, mas à chegada já tinham um pecúlio que dividiram em parte com os seus dois companheiros cossacos.
O “Moskva” deveria fazer a viagem directa para Nova Iorque com uma única escala em Rotterdam. Quando novo era barco para cruzar os mares a dezoito nós, mas agora com os tubos das caldeiras gasto não ia além dos dez.
Noutro momento de lazer, Piotr voltou como que a ditar para o caderno de Moissei a história do “Moskva”, enquanto cruzador auxiliar Don.
- Efectivamente, foi a 90 milhas de Xangai que abandonámos a nossa linha de formação na esquadra e, juntamente, com o cruzador auxiliar “Dniepr”, acompanhámos quatro navios de transporte que se abrigariam naquele porto chinês sob controle internacional enquanto nós voltaríamos ao mar largo para fazer guerra de corso contra a navegação nipónica.
Quando largámos a esquadra, chovia às catadupas com visibilidade reduzida a uma milha ou talvez nem isso e mal se ouviram uns sinais de despedida. Sabíamos o que estava reservado àqueles nossos companheiros de armas. Uma esquadra imensa e fantasmagórica, extenuada por quase sete meses de navegação e paragens em mares tropicais sob um calor sufocante impróprio para os russos tão habituados aos longos períodos de intenso frio, gasta e atulhada de carvão com os convés a rasar a água e sem treino de tiro. Uma esquadra assim não podia levar a melhor a um inimigo que lutava quase em casa e nunca antes uma esquadra navegou tanto para enfrentar um inimigo nas antípodas da sua base de largada e sem quaisquer apoios por perto.
Em Xangai, o “Don” e o “Dniepr” meteram rapidamente carvão e largaram as amarras para não serem internados, pois a condição de navios beligerantes só permitia estadias de 24 horas em portos neutros. Toda a costa da China estava dominada pelos ingleses, ainda aliados dos japoneses, mas não em guerra com a Rússia. Por isso, o rigor era toda contra nós; - continuou Piotr – saímos para o Mar Amarelo com a continuação do mau tempo. Pela rádio esperávamos ordens para actuar e procurávamos algum navio japonês para afundar, mas não se via quase nada.
Navegámos dois dias entre o 25 e o 27 de Maio de 1905 e já ao cair da noite fomos informados pelo telégrafo sem fios que a batalha se desenrolou sem êxito e que deveríamos esperar pelo cruzadores da Divisão do Almirante Enquist, pois iam meter carvão em Xangai e tentar de novo a passagem para o porto de Vladivostock, contornando o arquipélago nipónico pelo Norte. Os cruzadores eram o “Aurora”, o Oleg” e o “Blejatsch”, além dos transportes “Anadir”, “Coreia” e “Swir”. Antes mesmo de aportar a Xangai, a divisão recebeu ordens do Czar para retirarem para o Sul, já que os navios do almirante Enquista necessitavam mais de 24 horas para meter carvão e reparar as avarias resultantes da batalha. O Czar não queria perder os últimos dos seus cruzadores protegidos ou blindados.
Moissei continuava a anotar tudo o que Piotr dizia, o que tornava a conversa um pouco lenta, mas estava fascinado com o navio em viajavam e que já tinha feito uma viagem tão longa para de longe saber a poderosa esquadra do orgulho autocrata de todas as Rússias, o Czar Nicolau II, foi para o fundo depois de violentos combates de artilharia com os navios do almirante japonês Togo.
Mas, Piotr, continuou o relato noutro dos momentos livres, e disse: “Assim foi, acompanhámos os navios do almirante Enquist até às Filipinas onde ficaram um ano internados, segundo as leis internacionais que regulamentam a presença de forças beligerantes em países neutros como eram então os EUA, a potência colonial das Filipinas. E nós seguimos para o Báltico num autêntica proeza de navegação pois estivemos mais de um ano no Mar, quase sempre a navegar e foi graças às velas que podemos poupar a máquina a vapor no regresso para evitar que as caldeiras rebentassem devido à usura.
Entretanto, o “Moskva” navegava rumo a Rotterdam onde a escala foi breve; alguns passageiros saíram; outros entraram. Seguiu-se a rota habitual pela Mancha, Golfo da Gasconha e Atlântico Norte directamente aos cais de Mannhatan. No Golfo, a borrasca foi violenta, toda a gente sofreu de enjoo, até o cossaco Dmitri, que julgava nunca vir a padecer desse mal, habituado como estava desde a mais tenra infância a navegar no Don. Dmitri foi um exímio pescador, enfrentando com frequência as águas revoltas do rio após os degelos da Primavera. Mas, aquilo no Golfo da Gasconha, não era a mesma coisa. Ali na ré do navio, a hélice fazia um ruído ensurdecedor sempre que as vagas a obrigavam a rodar no vazio, enquanto tabuado do chão não proporcionava um mínimo de descansos aos pés e ao corpo na sua vã tentativa para encontrar um equilíbrio adequado à nossa postura vertical. O chão enchia-se com os vómitos de todos aqueles polacos, finlandeses, estónios, ucranianos e russos que o Império expulsava do látego da pobreza. Mas, tudo era suportado pela esperança radiosa num futuro melhor depois de passarem pelos pavilhões Ellis Islands em Nova Iorque. Todos queriam estar e parecer de boa saúde, temendo ser-lhes recusada a entrada por uma doença qualquer que possa surgir durante a viagem. Alguns guardavam no fundo dos seus sacos uns dólares que deveriam servir para comprar o funcionário da imigração americana para os deixar passar sem se submeterem a um exame médico.
A travessia outonal do Atlântico foi assaz tormentosa. Nos tempos áureos em que o “Moskva” se chamava “Fuerst Bismarck” viaja na Primavera e Verão para Nova Iorque via Sothampton e no Outono fazia cruzeiros no Mediterrâneo com ricos industriais e comerciantes alemães mais as suas famílias que assim passeavam pelas costas solarengas do Sul da Europa. O turismo marítimo tinha nascido recentemente para garantir um retorno comercial aos paquetes que deixavam de atravessar o Atlântico quando este se mostrava muito agitado e frio. Mas, não para os responsáveis da frota voluntária do Império Russo que queriam tirar o máximo proveito das travessias atlânticas quase até ao fim do ano. O “Moskva” tinha de chegar no dia 1 de Novembro a Nova Iorque para aproveitar a quota do mês e de preferência às 0 horas e 1 minuto por causa da concorrência de outros navios muito maiores.
De resto, a vida a bordo do “Moskva” na terceira classe é quase insuportável. As refeições sempre iguais faziam lembrar a dos “mujoques” pobres e andrajosos: sopa de couves, papas de trigo mourisco e, por vezes, batatas e alguma carne salgada. Para beber, o chá do Samovar ou o sbiten, uma bebida à base de mel e o kwas fermentado. Muito pouco, pois, nada comparado com o que era servida nas outras classes.
Depois da borrasca no Golfo, o mar amainou, enquanto o “Moskva” penetrava decididamente no Atlântic; saborearam-se alguns raios solares, mas a terceira classe na tinha no deck espaço suficiente para espairecer verdadeiramente as pernas. Moissei e Dmitri mais as esposas ainda subiram e tentaram marchar um pouco, mas estava tudo atravancado de bagagens, e muita gente, tanto adultos como crianças numa balbúrdia indescritível. Só depois, quando o barómetro começou a descer e a sentir-se um vento rijo borrifado de água do mar e chuviscos é que foi possível aos dois casais desentorpecerem as pernas no deck balaustrado da ré. Nesses passeios continuavam as conversas anteriores sobre as suas terras e trabalhos porque passaram e até sobre a situação dos judeus na Rússia. Dmitri tinha aprendido na família cossaca e no exército a desprezar os judeus, mas frente a frente, a sua opinião mudou completamente. Afinal eram gente como outros, talvez um pouco mais cultos e inteligentes.
A viagem chegou ao fim quando ao longe se vislumbrou a Estátua da Liberdade envolta no nevoeiro outonal que não deixava ver com nitidez os seus contornos. O coração de todos aqueles emigrantes palpitava com força; ninguém tinha a certeza de passar no escrutínio dos funcionários de Ellis Island. Após as manobras de acostagem sobem a bordo os homens dos serviços de saúde para iniciarem a inspecção dos candidatos a residentes nos EUA; ver a boca e os dentes como se cavalos fossem; auscultar o peito e o coração e examinar outras partes do corpo. Moissei e Dmitri com as respectivas esposas passam rapidamente no exame. Podem desembarcar e seguir para os grandes hangares alpendroados da Ilha de Ellis, onde as autoridades de emigração dão os respectivos vistos de entrada na sonhada terra da “abundância” e “liberdade”. O inglês de Moissei impressiona vivamente os funcionários e menos o de Dmitri, mas que pouco falou. O funcionário perguntou logo se querem tornar-se cidadãos norte-americanos. Responderam prontamente que sim, nada os ligava à velha Europa cheia de preconceitos. Então têm de mudar de nome. Qual é o seu nome perguntou o funcionário ao judeu? Moissei. Então tem de passar a Moses; Katia passou a Katherine, Dmitri a Donald e Irina a Irena, na falta de melhor e sem darem tempo para pensarem. Convencidos não estavam, mas o que poderiam ter feito, o funcionário não queria perder muito tempo e havia uma enorme fila atrás.
Não foi a última viagem do elegante paquete “Moskva” que continuou a ir a Nova Iorque até 1913. Então, já bastante envelhecido, foi comprado pela Marinha Austríaca que o utilizou no Adriátio como o navio depósito “Gaea”. Em 1918, o ex-“Moskwa” foi capturado pelos italianos e vendido à “Casulic Line” que o reconstruiu quase todo para ser o “San Giusto” e voltar a fazer a linha de Nova Iorque. Só fez uma viagem de ida e volta pois avariou-se tanto que ficou paralisado até 1924 quando foi finalmente para as mãos dos sucateiros.
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