Sábado, 2 de Fevereiro de 2019

As Memórias de Kant

 

 

 

                    

 

 

 

           Queres ler as memórias de Kant, um grande “compañero” anarquista da Brigada Thaelman – perguntou-me Josep Herrera, ainda no meio dos girassóis da Andaluzia Ocidental, depois de contar a sua movimentada história de anarquista na Guerra Civil, da qual se salvou por ter vestido uma camisa da Falange, passando no final da guerra por um vitorioso “falangista”.

            Como? Perguntei admirado, então o filósofo alemão do Século XVIII, o autor da “Paz Perpétua” ressuscitou e andou contigo aos tiros?

            -Sim, sim, era um filósofo, também o chamávamos assim por causa dos seus óculos redondos sem aros e do ar distraído. Kant era a sua alcunha e Kurt o nome de guerra oficial.

            - Mas onde o conheceste?

            - Foi num domingo, precisamente a 20 de Julho de 1936; um dia que não me esqueço, mesmo que viva mais de cem anos. Ele apareceu junto ao nosso grupo quando tentávamos desalojar os artilheiros revoltados do coronel López Amor, postado na Praça da Catalunha, no centro de Barcelona. Com um caderninho não mão, Kant balbuciou num mau espanhol o seu desejo de integrar a milícia “roja y negra” dos anarquistas da FAI/CNT. Não tínhamos armas suficientes, mas Kant ou Kurt ficou connosco até lhe passarmos uma velha “Tercerola Mauser” de um dos companheiros caído em combate. Assustado, parecia não saber manejar a arma; num vão de escada ainda lhe demos algumas explicações. Depois, deixou-se contagiar pela valentia das massas proletárias ligadas ao anarco-sindicalismo e portou-se tão bem como cada um de nós.

            Ainda passou algum tempo com as nossas milícias na frente do Aragão; posteriormente foi integrado na centúria Thaelman, organizada em Barcelona com os primeiros voluntários alemães, ingleses e nórdicos. Não sei o que lhe aconteceu no fim da guerra civil; deixou-me um caderno de apontamentos escrito em alemão que nunca cheguei a perceber, mas que empresto para fotocopiares e, eventualmente, traduzires, nem que seja para português.

            Fui assim à casa de Herrera, ali perto do campo experimental dos girassóis híbridos. Uma pequena casa branca encimada por uma platibanda que não deixava reconhecer a natureza do remate: terraço ou telhado; uma casa típica de jornaleiro agrícola andaluz, apenas um pouco melhor que as que se construíam nos caminhos do gado, as “cañadas”, para evitar a expulsão por parte dos grandes latifundiários da região. Casa térrea, caiada e protegida com os típicos mosquiteiros nas portas e janelas, envolvida por aquela quente atmosfera bucólica do Sul da Península. No meio de gatos e outros animais porcelânicos, Herrera encontrou os cadernos Kurt ou Kant.

            - Ele deve falar de mim, estes papéis são os únicos que comprovam a minha presença nas milícias anarquistas, primeiro, e na 26ª Divisão do Exército Republicano, depois. Toda a minha documentação oficial foi destruída e desapareceu na cadeia de Montjuich. Por isso, guardei durante todos estes anos os papéis do Kurt.

            Herrera contou-me que esteve com Kurt na frente de Aragão, mais propriamente na tentativa da tomada de Saragoça. Tal como Herrera, o alemão integrou uma das primeiras “colunas infernales” que, pelas 10 da manhã de 24 de Agosto de 1936, se concentraram no Passeo de Garcia em Barcelona.

            - Com a sua “tercerola”, o já apelidado de Kant estava lá. Ele mostrava um falso ar marcial num “mono” azul; até arranjou um pequeno bivaque militar que lhe conferia o aspecto quase ridículo de um pacifista armado. Sim, ele mais um pacifista que um belicoso guerreiro ou soldado, mas sempre disposto a sacrificar-se por uma causa que considerava justa.

            Sob o comando de Durruti e Perez Farras, partimos em direcção a Saragoça nos camiões que o “Comité de Milícias” organizou quase por milagre; sempre julgámos ter de ir a pé, tal era a falta de meios ao nosso dispor. Fomos até Tardienta, onde, pela primeira vez, enfrentámos o fogo inimigo em campo aberto, sem para tal estarmos minimamente preparados. Mesmo assim aguentámos bem as balas do exército franquista.

            Poucos dias depois, surgiu ali a Centúria Thaelman, a primeira unidade internacionalista formada com anti-fascistas alemães e comandada por Hans Beimler, ex-deputado ao “Reichstag”.

            - Claro que o camarada Kurt, como bom anarquista que era, não se integrou imediatamente naquela unidade dos seus conterrâneos comunistas, - acrescentei ainda.

            - Nessa altura, – disse ainda Herrera – o Kurt já falava um espanhol que se entendia, não muito bem, mas quase, ou antes, um misto do castelhano e do catalão que lhe tínhamos ensinado. Era o que mais faltava à unidade alemã, eles não falavam uma palavra das nossas línguas. Kurt foi um achado precioso e logo o convidaram a ir para lá. Muito a contragosto, o rapaz despediu-se de nós, pois, efectivamente, não nutria uma grande simpatia pelos comunistas alemães, já que os seus ideais se orientavam mais para o anti-autoritarismo.

            - E voltaste a ver o Kurt, depois de ele se integrar na unidade que veio a tornar-se na XI Brigada Internacional?

            - Tempos passados, encontrei Kurt em Barcelona. Contou-me então que tinha ficado fascinado pela personalidade irradiante de Hans Beimler, o ex-espartaquista da Baviera e seguidor da linha comunista de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht que se entrou depois no Partido Comunista Alemão, seguidor da linha mais ortodoxa do marxismo-leninismo. Mas, naqueles tempos, nada disso interessava para nós, o importante era evitar a vitória do fascismo em Espanha. O melhor é leres o seu diário, até porque pouco mais sei de Kurt. E foi então que me deu a guardar os seus cadernos e mais uns livros que tinha deixado numa pensão e que preferia que estivessem em mãos amigas como me disse. Acrescente-se que eu tinha casa em Vich, perto de Barcelona, pois tinha emigrado há muito da minha Andaluzia natal e estava casado.

 

 

 

                            

Aprender Espanhol com os Poetas Andaluzes

 

            Levei as fotocópias dos diários de Kurt e cuidadosamente comecei a ler a sua difícil letra manuscrita a mostrar as condições adversas em que teria sido escrita.

            Kurt escreve pouco sobre a sua pessoa, não divulgando em parte alguma o seu verdadeiro nome, dado que o Kurt não deveria ser mais que um nome de guerra, pois toda a gente então disfarçava a sua verdadeira identidade. Fica assim como um soldado desconhecido da guerra civil espanhola, eventualmente caído e sepultado num qualquer recanto queimado ou destruído pela fúria de homens à conquista do Poder, quem sabe?

            Num dos primeiros papéis, Kurt revela os seus ideais anarquistas, escrevendo que aderiu muito novo, aos quinze anos de idade, a uma organização juvenil da “Freier Arbeiter Union”

(União dos Trabalhadores Livres), inspirada nas tendências anarquistas de Landau, Stirner e John Henry Mckay, mas muito próxima da ala esquerda do SPD dos anos vinte e trinta até à instalação da ditadura hitleriana na Alemanha.

            O anarquismo de Landau era fundamentalmente pacifista e romântico. Com a subida de Hitler ao poder absoluto, a FAU foi logo dissolvida e os seus activistas principais metidos nos primeiros campos de concentração. Kurt ainda foi obrigado a participar numa brigada juvenil de trabalho, devendo posteriormente passar pelo exército nazi. Preferiu fugir para França, escrevendo que trabalhou em quintas como trabalhador auxiliar. O seu maior desejo foi sempre a aprendizagem de línguas estrangeiras, pelo que estudava sempre a gramática da língua do respectivo país e com dicionários e pessoas que contactava procurava aprender o máximo da língua respectiva. Kurt escreveu que o conhecimento de várias línguas estrangeiras podia permitir encontrar bons empregos na Alemanha ou noutro país qualquer, principalmente no âmbito dos negócios internacionais. Kurt quis entrar como aprendiz num escritório de comércio com o estrangeiro, mas a sua saída precipitada para França levou-o a não conseguir o seu objectivo, até porque quando se candidatava perguntavam-lhe logo que línguas estrangeiras falava e escrevia. Na verdade Kurt aprendeu na escola apenas um pouco de inglês e de francês.

            A França, contudo, não o atraiu muito, como nos revela nas opiniões algo malévolas sobre o nacionalismo cultural e político dos franceses. Por isso, pouco depois da vitória eleitoral da Frente Popular espanhola, em 1936, decide ir para Espanha. O seu grande objectivo passou a ser a aprendizagem do castelhano para, eventualmente, emigrar para a América Latina.

            Kurt escreve que desenvolveu uma técnica de aprendizagem de línguas na base do estudo e decoração de poemas, além da leitura de novelas ou pequenos romances com muitos diálogos. Ele escreveu que a rima facilita a memorização, principalmente, quando acompanhada do respectivo significado. Daí que muitos dos seus papéis estejam repletos de poemas espanhóis com particular incidência nas rimas do grande poeta andaluz Gustavo Adolfo Becquer, sem esquecer outros sevilhanos ilustres como os dois irmãos poetas António e Manuel Machado.

            Não posso pois deixar de reproduzir uma das estrofes de Becquer que Kurt tão gostosamente copia para os seus diários sem lhes acrescentar qualquer tradução:

 

           Asomada a sus ojos una lágrima

           y a mi labio una frase de perdón:

          habló el orgullo y se enjugó su llanto

          y la frase en mis labios expiró.

         Yo voy por un camino, ella por otro,

         Pero al pensar en nuestro mutuo amor,

         Yo digo aún: Porque callé aquel día ?

         Y ella dirá; porque no lloré yo?

           

Kart traduz a trigésima rima de Becquer, acrescentando que desejaria traduzir todos os seus poemas para alemão e escrever uma biografia do infeliz poeta andaluz do século dezanove, falecido ainda em plena juventude. Para ele, não obstante a ascendência germano-flamenga de Becquer, trata-se de um poeta que soube revelar como ninguém o arrebatamento romântico da alma andaluza que tanto fascinou Kurt. Até porque o anarquismo ibérico foi acima de tudo andaluz.

Para além da sua admiração por Becquer, Kurt apaixonou-se pela poesia de Manuel Machado, tendo transcrito para algumas páginas dos seus diários uma parte do “El mal poema”:

 

Yo poeta decadente

español del siglo veinte

que los toros he elogiado

y cantado

Las golfas y el aguardiente

y la noche de Madrid,

y los rincones más oscuros

de estos bisnietos del Cid.

 

Kart descreve as ruas hispânicas ao fim da tarde, sobre as quais jorra um mar de gente em permanente romaria, inundando bares, tabernas e esplanadas: - A alegria transbordante dos povos ibéricos eram em si mesmo uma série encadeada de poemas, - escreveu num dos seus cadernos diários.

O seu périplo hispânico foi curto, já que do porto francês de Le Havre seguiu para Cádis de barco, passando para Sevilha, onde permaneceu alguns semanas. Pretendia escutar a alma andaluza nos seus cantares e poemas e escrever sobre o seu espírito anarquista. Kurt escreve num dos seus diários que lhe interessava conhecer as organizações secretas anarquistas da Península, nomeadamente a FAI, cujo carácter secreto poderia ser uma primeira pedra para a construção de uma maçonaria anarquista universal capaz de minar de uma forma decisiva os autoritarismos ditatoriais de direita e esquerda.

Mais de duas horas levou o comboio a percorrer a planície andaluza no trajecto que vai de Cádis a Sevilha. Kurt contemplou admirado a paisagem que começou com a geometria perfeita das pirâmides de sal logo à saída de Cádis.

Ao chegar a Sevilha, à cidade-jardim como a denominou e de se instalar numa pensão barata que lhe tinham indicado no comboio, Kurt transcreveu para o seu diário mais uma estrofe de Becquer que tinha decorado:

 

Hojas de los azahares

Van alfombrando el jardín;

Quieren que las pises tú

Y se desprenden por ti.

 

Nas suas notas sobre a poesia de Bécquer, Kurt insurge-se contra o pseudo-utilitarismo revolucionário que conheceu na Alemanha e França entre muitos homens de esquerda, afirmando que a qualidade, seja na arte ou em qualquer outra actividade, nunca é contra-revolucionária.

“Inimigos do progresso,” escreve Kurt, “são aqueles que recusam as melhores obras do espírito humano, substituindo-as, por vezes, por uma vulgar propaganda desprovida da mais elementar qualidade, pois nada há mais contra-revolucionário que a ignorância e a incompetência anti-cultural”.

Em Sevilha, o jovem alemão queria investigar algo sobre a história do movimento anarquista andaluz, nomeadamente a partir do Congresso dos Trabalhadores da Região Espanhola que teve lugar em Sevilha no ano de 1882, do qual saiu o primeiro grupo anarco-terrorista, “Los Desherdados”, de carácter tão secreto que levou a guarda civil a inventar um nome para a organização secreta, “La Mano Negra”, para catalogar as acções dos “Los Desherdados”, chegando a apontar crimes que nunca tinham cometido. Foram agentes provocadores de organizações da burguesia espanhola que cometeram a maior parte dos crimes atribuídos aos homens de “La Mano Negra”, organização que, afinal, nunca existiu.

Mas, as dificuldades foram muitas para Kurt que pensava encontrar trabalho para se manter durante o período das suas investigações; os empregos eram escassos e os salários de autêntica miséria. Num bar, Kurt conheceu Ramón, sobrinho do proprietário de uma fábrica de rolhas de cortiça situada entre a “Puerta de Córdoba” e a “Puerta de Macarena”, a nordeste de Sevilha. A troco de algumas pesetas diárias foi trabalhar na escolha de rolas.

“Sentados em cadeiras de vime, junto a umas mesas baixas, escolhíamos as rolhas, enchendo uns grandes recipientes de vime conforme as respectivas qualidades”.

“De um lado trabalhavam os homens, essencialmente velhos e adolescentes; do outro, separado por um forte reposteiro de serapilheira, trabalhavam as mulheres, quase todas lindas operárias sevilhanas. Ouvíamos os seus risos e dichotes, mas estávamos proibidos de entrar em comunicação com elas. Nem depois do trabalho, pois eram sempre esperadas à porta da fábrica pelas gordíssimas matronas, suas mães ou tias.”

“Mesmo assim,” continua Kurt, “quando a atenção do contramestre era menor, choviam os dichotes através do reposteiro, frequentemente dirigido a uma ou outra pois sabíamos bem os seus nomes, principalmente das mais bonitas, outras vezes em no geral:

“Mujer hermosa, loca y presuntosa”, diziam os homens de um lado, “me descalzo de riso”, respondiam do outro lado. “Moza galana, calabaza vana”, continuávamos; “cuidado que está el toro en el tendido”, respondían ellas, acrescentando: “qué botarate? quê tio más fresco? Dale ajo, ajo. Pides peras al olmo”, respondia um dos colegas mais engraçado, enquanto o outro cantava:

“Yo quisiera ser el Aire

para mezclarme en tu aliento

y hacer mi nido en tus labios,

y dormir con mis besos”.

 

A cantar em coro, as moças respondiam:

 

“Al garrotín al garrotán,

A la vera, vera, verita van.

Me ha dicho que no me quieres.

Me importa tres caracoles,

Más arriba, más abajo,

Me están queriendo a montones,

Al garrotín, al garrotán,

A la vera, vera, verita van.

 

Olé, olé, olé! Graciosa, oléee! Viva tu madre! Terminávamos em uníssono.”

 

Escrupulosamente, Kurt reproduz nos seus cadernos as chufas mais jocosas da Sevilha daqueles anos, não tão distantes dos actuais, mas muito diferentes quanto ao modo de vida das sociedades, acentuando que o proletariado andaluz, mesmo quando sujeito à mais miserável exploração, nunca perde a alegria e a sua prodigiosa imaginação poética.

As escassas pesetas diárias não davam para o sustento de Kurt, mesmo morando num pequeníssimo quarto numa casa proletária do bairro La Macarena. Daí não ter permanecido muito tempo em Sevilha, tanto mais que o acesso a arquivos antigos era difícil. As diversas fases de repressão do anarquismo andaluz conduzira à destruição de muito do seu historial.

“Em 1936”, escreveu Kurt, “a CNT de Sevilha era muito reduzida pois preponderava aí a UGT. Era nas pequenas aldeias perdidas dos campos andaluzes que dominava a federação anarco-sindicalista CNT. Desprovida de funcionários ou verbas de apoio a grevistas, as suas acções eram combatidas por excelência; na memória de todos, permaneciam as cenas dos duros combates travados anos antes contra os sicários dos latifundiários e a guarda civil nos tempos da ditadura do general Primo de Rivera. O trágico episódio de “Casas Viejas” estava ainda muito vivo na memória colectiva dos anarquistas andaluzes. Mas, em 1936, depois da vitória da Frente Popular, os anarquistas estavam altamente empenhados em ocupar as terras dos grandes proprietários de terras.

Por falta de meios, Kurt não conseguiu acompanhar o processo, partindo para Barcelona, onde esperava encontrar trabalho mais remunerado que permitisse a sobrevivência e regressar depois à Andaluzia para continuar os seus estudos sobre o anarquismo rural.

 

As Primeiras Batalhas

 

Utilizando o comboio e vários autocarros de carreira, Kurt viajou para Barcelona e descreveu muito do que viu e as conversas que teve em numerosas páginas dos seus diários, cuja transcrição só teria cabimento num volumoso livro, não num texto assaz longo para um blog.

Em Barcelona, arranjou emprego numa empresa de comércio internacional como correspondente, mas a sua permanência aí foi curta. Passadas poucas semanas, Kurt lutava voluntariamente nas milícias “roja y negra”

No seu diário escreveu: “A confusão foi total naquele domingo, fui levado pelo contágio, ao ver aquele proletariado fazer frente às armas pesadas do exército em rebelião contra o poder democrático. Ainda cheguei a pegar numa arma e dar os últimos tiros da vitória anarquista de Barcelona.

Não fui valente nem cobarde. Tive medo, mas os camaradas ajudaram-me muito. Conheci pela primeira vez aquele espírito solidário e amigo do proletariado espanhol. Não estava só, éramos irmãos na luta, no sofrimento e depois na vitória.

Como miliciano, passei a receber as 10 pesetas diárias e fui aboletado no quartel Karl Marx, junto ao jardim zoológico da capital catalã onde recebi uma sumária instrução militar e parti para Tardienta.

Aí, acabei por ser incorporado na primeira unidade, centúria, daquilo que foi depois o Batalhão Thaelman, composto por anti-fascistas alemães e de outras nacionalidades norte-europeias. O comandante era Hans Beimler, um notável militante comunista que esteve preso no campo de Dachau, de onde conseguiu fugir, depois de estrangular um guarda SS e vestir o seu uniforme.

Ainda no tempo da República de Weimar, Beimler foi condenado a dois anos de prisão por ter feito parte do governo revolucionário soviético da Baviera em 1919. Durante a I. Guerra Mundial, fez parte da Marinha Imperial Alemã e participou activamente no levantamento revolucionário dos marinheiros contra a guerra e o poder do Kaiser.

“Hans Beimler fez-me ver a necessidade da união de todas as forças anti-fascistas para evitar o avanço do fascismo em Espanha e para levar ao derrube do nazismo na Alemanha.

Assim, das milícias revolucionárias anarquistas, eu, que sou um pacifista anarquista, passei a incorporar uma unidade mais disciplinada, mas não desprovida de ardor militante. Troquei o fato-macaco azul por uma nova farda, bem pouco militar, por sinal. Deram-me umas imensas calças de  bombazina preta que tive de cortar e uns plainitos minúsculos, além de duas camisas quase  militares; depois com a reorganização da unidade e formação das divisões internacionais é que vieram fardas a sério.

O nosso armamento era confuso ainda; continuei a usar a velha “tercerola” sem baioneta. Era a “Mauser” mais curta e, por isso, a mais leve e manejável, se bem que de menor alcance. De resto, com a minha miopia não interessavam os grandes alcances.

Entrámos pela primeira vez em acção junto ao canal de Tardienta com o nosso blindado à frente, um camião protegido por umas chapas de aço que Franz Raab comandava a preceito. O condutor não via nada; do lado de fora ia sempre alguém a dizer por onde deveria guiar aquela barulhenta máquina. O nome da jovem Lina Ordena estava pintado no flanco do nosso “blindado”, em homenagem à dirigente das Juventudes tombada frente a Huesca.

A missão era dinamitar o canal daquela cidade para inundar as linhas fascistas. Durante dias travámos uma furiosa batalha; sempre que nos aproximávamos do canal, os fascistas disparavam a torto e a direito, pelo que nunca chegámos a abrir uma brecha suficientemente ampla nos respectivos diques. O que conseguíamos era molharmo-nos constantemente, até porque os fascistas fecharam as comportas do canal e a nossa frente ficou extremamente cheio de água. Depois lutámos para conquistar uma pequena porção de terreno com algumas casas, denominado “La Ermitã”. A luta foi violenta, muitos dos nossos camaradas caíram ali mesmo.

Beimler era um militante notável e valente, mas conhecia pouco as tácticas militares; juntava-nos sempre em grupos cerrados, o que provocava muitas baixas, pois quando os fascistas disparavam mesmo a mais de quinhentos metros acertavam sempre em alguém, até que o escritor pacifista alemão Ludwig Renn lhe deu umas indicações sobre a dispersão dos homens na linha de fogo e sobre a manutenção de uma linha de reserva um pouco mais atrás. As nossas operações passaram a ter mais êxito e já no fim de Outubro regressámos a Barcelona, esgotados e a carregar numerosos feridos e deixando numerosas campas com os corpos dos nossos camaradas.

 Eu sobrevivi àqueles dois meses de combate,” continuou Kurt, de alcunha o Kant, a escrever nos diários que li com uma imensa curiosidade.

“Em Barcelona”, escreve Kurt, "assisti à entrega da bandeira de honra da unidade pelos membros do governo catalão, a Generalitat. Receberam-na os três irmãos Nielsen, os valorosos dinamarqueses que tanto se distinguiram nas primeiras lutas”.

 

 

 

 

“No Passarán” em Madrid e Morte de Beimler

 

“Tivemos um período de descanso e recomposição, partindo depois para Madrid. Já não éramos uma simples centúria, mas uma brigada com vários batalhões, entre os quais o batalhão Edgar André, nome de um comunista germânico mandado fuzilar por Hitler, e o batalhão Thalman, ao qual eu continuava a pertencer no 2º Zug (Companhia). Passámos a ser a XII Brigada Internacional, comandada pelo general húngaro Lukacz. A 7 de Novembro de 1936 entrámos em acção na defea de Madrid, em plena batalha pela “Casa del Campo”. O nosso grito de guerra era “no passarán”. Além das metralhadoras e da canhonada fascista acompanhada pela tanquetas italianas que arrumávamos com granadas de mão lançadas por cima, enfrentámos a aviação nazi que reduziu grande número de quarteirões de Madrid a cinzas, mas que não frente de batalha pouco incomodava, já que não acertava em nada que estivesse camuflado e tinham medo das nossas poucas metralhadoras anti-aéreas.

A “Casa del Campo” que era um grande jardim no limite da cidade, onde os madrilenos iam fazer picnics aos domingos. Depois de derrotarmos o avanço dos fascistas e de termos deixados muitos deles no terreno, fomos em socorro da Cidade Universitária, na qual travámos combates sem fim. A minha companhia entrincheirou-se numa das faculdades. Chegámos a expulsar com granadas de mão a tropa fascista que entrara pela porta principal da faculdade. Depois fomos cavar uma linha defensiva de trincheiras que fomos guarnecendo ao mesmo tempo que trocávamos um intenso tiroteio com o inimigo.

No dia 1 de Dezembro, Beimler que comandava ainda a minha companhia, apesar de estar destinado ao comando de um batalhão, ouviu os gritos de um ferido na terra de ninguém, gritava em alemão. Hans Beimler saltou imediatamente da trincheira para ir socorrer o camarada e foi acompanhado por Ludwig Fischer e Richard; eu ainda o quis acompanhar, mas ele ordenou que ficasse na trincheira e o procurasse cobrir com o meu fogo e dos restantes camaradas, enquanto procurava trazer o ferido para a nossa linha. Quando Beimler já tinha colocado o ferido na maca e tinha-se levantado, o inimigo abriu fogo e acertou em cheio no valoroso militante. Hans Beimler tombava com a mão no coração, dizendo; vão para a frente.

Foi um choque terrível para todos nós. Acompanhei-o no enterro e vi homens endurecidos por dezenas de combates a chorarem compulsivamente quando o caixão desceu à terra, ao mesmo tempo que o poeta espanhol Emílio Prados declamava:

 

“Nasciste lejos, Hermano,

pêro la muerte, en España,

te hizo nacer en su tierra

para ganarte a su patria ….”

 

Antes de ir para o cemitério, o caixão esteve exposto no cinema Royalty. Na homenagem que então lhe prestámos, o general Miaja fez um discurso emotivo, terminando com a frase, “os vossos mortos são também os nossos mortos”.

“Na verdade,” escreveu ainda Kurt, “desde que em Agosto integrei a centúria Thaelman, mais de metade dos voluntários de então caíram em combate. Estávamos a pagar um preço excessivamente elevado pelos nossos ideais, mas continuávamos.”

 

Termina aqui um dos cadernos de Kurt, o Kant. Obviamente que aproveitou o funeral de Hans Beimler para verter para o papel as emoções que acabava de viver. A exiguidade do espaço da revista “Seara Nova” não permite ir mais além, obrigando-me a deixar para outros números a continuação das memórias do anónimo Kurt, o Kant de alcunha.

 

 

 

 

Publicado por DieterDellinger na Revista Seara Nova.   

 

 

                               

publicado por DD às 19:40
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2 comentários:
De GMaciel a 28 de Fevereiro de 2007 às 18:49
Mesmo desconhecendo a História por detrás da narrativa, esta dá-me a perfeita imagem dos vários cenários que testificam a vida de Kurt, o Kant, e empolga-me nos vários meandros do suspense. Isto para já não falar nos deliciosos trechos da poesia Andaluza.
É por tudo isto que sou fã dos seus contos, amigo Dieter.
abraço
De DD a 1 de Março de 2007 às 22:38
Obrigado por um comentário tão simpático.
Um Abraço

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