O jovem de 15 anos Joseph Engel sempre teve uma predilecção pelo livro “As Aventuras do Barão de Münchhausen”. As histórias aí relatadas faziam-no sonhar e sentir-se outro e não um petiz magro, franzino e louro com um ar sempre distante, talvez um pouco desconfiado, como quem não acredita na sinceridade dos colegas da escola, dos professores e dos vizinhos. Tinha muito do seu nome, Engel, anjo. Sim era quase que um pequeno anjo naquele mundo sórdido dos arredores de Hamburgo em pleno ano crítico de guerra, 1943.
A cidade devastada exalava um permanente cheiro a queimado que não se sabia se era dos prédios, dos interiores ou dos milhares de cadáveres meio ardidos que os Aliados inexoravelmente deixavam após cada bombardeamento com as bombas explosivas seguidas das tenebrosas borboletas de fósforo ardente, pegajoso e terrivelmente mortal. Mesmo assim, as autoridades pretendiam que a vida continuava na normalidade e o cinema das proximidades ainda mantinha as sessões habituais, agora com “As Aventuras do Barão” no cartaz. E ninguém se atrevia a dizer, ou mesmo a pensar, que em cada bombardeamento dos aliados dezenas de milhares de pessoas eram queimadas literalmente vivas por esse monstro, o fogo do fósforo. Ninguém punha luto e as coisas passavam-se quase como se não tivessem passado. Os jornais falavam, mas poupavam nos pormenores e às bombas incendiárias e às borboletas de fósforo ninguém se referia.
A mãe do “pequeno anjo”, Bertha Böhm, judia de ascendência, mas evangélica de confissão e casada em segunda núpcias com um cidadão ariano, não era obrigada a seguir certas normas impostas aos judeus pelo regime nazi como a proibição de frequentar salas de cinema e teatro, adquirir jornais e livros, etc. Normas que faziam lembrar as “Leis de Manu” do Hinduísmo no que respeita à casta dos impuros e intocáveis Chandala e Svapaka na eterna Índia.
Foi pois sem qualquer receio que naquele Domingo de Janeiro de 1943, Bertha e o filho Joseph Engel foram ao cinema e regressaram felizes pelas oito horas da noite à sua pequeníssima vivenda na esquina de uma estreita travessa, já quase nos arrabaldes de Hamburgo. Ao lado, a senhora Henkel vigiava através das cortinas e perguntava a si mesmo o que mãe e filho foram fazer na rua para regressar só aquela hora. “Tenho de saber, se não for hoje, pelo menos amanhã, a segurança do nosso Reich pode ter sido posta em causa,” disse para consigo. Depois de entrarem, a Frau Henkel continuou a olhar para a porta, desde a sua casa, e a espreitar o que faziam em casa.
Bertha tinha ido para a cozinha, enquanto Joseph começava a fazer uns trabalhos escolares ali mesmo ao pé, na mesa da cozinha. A senhora Henkel, raivosa, espiava sem parar. Ainda os viu a comer com o marido e padrasto de Joseph Engel até ver que as luzes se apagavam. “Deverão ter ido deitar-se”, pensou.
No dia seguinte, pela manhã, a senhora Henkel saiu para a travessa com a saca das compras como se quisesse adquirir algo. Passou vezes sem conta pela casa de Bertha Böhm até dar de frente com outra vizinha, a jovem Gabrielle que mantinha algumas relações de amizade com Bertha, apesar da diferença de idade. Depois de um cumprimento ligeiro: - Olá como tem passado – perguntou repentinamente.
- Então não saiu ontem com os Böhm?
- Não, eles foram ao cinema, - respondeu naturalmente a jovem, sem pensar em nada de especial.
- Ah sim! E foram ver o quê?
- Provavelmente foram ao Kino Pallas ver as Aventuras do Barão.
- Não é onde toda a gente vai agora?
- Claro que é, mas como é que você tão jovem e bonita fala com uma judia
- Não, nunca falo, só ouvi qualquer coisa por acaso, - respondeu temerosa a Gaby, como era conhecida entre os familiares e amigos.
- Então está bem, até à vista (“auf Wiedersehen”).
Sem perder tempo, a maldosa foi à esquadra da polícia denunciar a Senhora Bertha Böhm de ter ido ao cinema com o filho e, como judia, isso não lhe é permitido apesar de não ter de andar ainda com a estrela de David cozida ao ombro.
Falou com o guarda Heinrich, um sexagenário que deveria estar reformado mas que fora chamado de novo ao serviço por causa da mobilização do pessoal mais novo. Heinrich tinha regressado recentemente de uma acção do Batalhão de Reserva da Polícia na Polónia. Tinham aí executado alguns milhares de elementos de famílias judaicas, principalmente mulheres e crianças de maridos e pais que foram assassinados antes ou que estão nos campos de trabalho forçado. O guarda Heinrich tomou imediatamente nota de tão importante denúncia e telefonou logo de seguida à sede da Gestapo em Hamburgo, situada no edifício Kola-Fu, como era conhecido no calão hamburguês, na chamada ponte da cidade. E sem perder tempo, o oficial de serviço despachou logo um piquete de agentes da polícia política Gestapo para a casa de Bertha Böhm, onde entraram com grande violência, revistaram tudo, esburacaram colchões e sofás, acabando por levarem a senhora Bertha Böhm e o filho Joseph Engel para as celas tenebrosas do Kola-Fu.
Logo à chegada, umas severas e brutais guardas femininas ordenaram a separação do filho e da mãe, levando cada um para as respectivas celas colectivas que davam para um pátio escuro de onde se ouviam constantemente os gritos de dor de prisioneiros a serem torturados pelos agentes da Gestapo.
O oficial Adolf Kohl que recebeu o processo dos dois e resolveu logo chamar o marido, o senhor Böhm, para lhe impor o divórcio da sua mulher Bertha.
Kohl foi ríspido e quase violento.
- Você não tem alternativa, - disse-lhe o oficial da Gestapo, um indivíduo baixote de cara flácida e meio careca, branco, sempre suado, - ou divorcia-se e adquire o seu completo estatuto de membro da raça ariana ou vai com a sua mulher para Theresienstadt trabalhar numa fábrica sem ordenado e com um naco de pão diário apenas. De qualquer modo, nada poderá fazer pela sua mulher nem pelo seu enteado. Olhe, basta preencher este formulário e assinar. Dentro de uma semana recebe uma notificação a dizer que está divorciado.
Boehm era um homem sério, velho comerciante, e não muito político. Nunca se inscrevera no Partido Nazi e antes simpatizou sempre com o SPD, chegou mesmo a pertencer a uma Associação de comerciantes socialistas. Por isso, talvez, só a palavra Gestapo o deixava transido de medo e pensou que nada podia fazer naquele momento e assinou. Quando saiu do Quartel da Gestapo chorou e recordou a outra vez que tinha chorado também. Tinha sido convocado para os voluntários da defesa civil e depois de um dos maiores bombardeamentos aliados trabalhara mais de uma semana a desenterrar corpos queimados das caves dos prédios destruídos.
Assim foi. Berta e Joseph Engel ainda ficaram umas semanas no Kola-Fu até serem um dia acordados de madrugada para serem levados num transporte especial de deportados. Bertha nunca mais vira o marido e só recebeu a informação de que estava divorciada, não tendo chegado a saber se o divórcio resultara de uma atitude do marido ou antes da Gestapo. Acreditava que sim, tinha sido a polícia nazi a ditar o divórcio.
Logo após o divórcio, Bertha Böhm foi posta à disposição do departamento de trabalho da Gestapo para ser colocada numa fábrica como trabalhadora escrava, ou antes, ir para a “Estação de Hannover” como era referido na linguagem da Gestapo, o que nem era bem um código, pois tratava-se de uma antiga estação de caminho de ferro que servia como local de ajuntamento de deportados judeus antes de serem encurralados em vagões de gado com destino aos muitos campos de concentração.
Aquela prisão da Gestapo era, acima de tudo, um local de tortura e ao longo do dia e da noite ouvia-se continuamente os gritos dos torturados. De vez em quando, o organista da Gestapo tocava umas melodias para abafar os gritos das vítimas. Tocava alguns dos grandes compositores alemães, como se fazia nalguns campos de concentração, na pretensão de que ali estava uma raça culturalmente superior na música, mas, na verdade, profundamente bárbara e abjecta na impiedade assassina.
Passados uns dias, uma das guardas avisou Bertha que sairiam de madrugada para a Estação. Bertha perguntou se o filho também ia com ela. A resposta foi rápida e ríspida.
- Não, não vai consigo, não, vai para outro local.
Ao ouvir isto, a mãe do pequeno Joseph Engel teve um choque e caiu no chão a chorar convulsivamente. A guarda deu-lhe uns pontapés violentíssimos, ordenando com severidade que se levantasse e deixasse de lamúrias e choros, aquilo ali não é lugar para isso.
- Se voltares a chorar parto-te os ossos, – disse-lhe ainda.
- Estamos em guerra, – gritou-lhe a facínora, – temos de ter almas de ferro que não tenham piedade de ninguém, a frente é aqui também, todos somos combatentes e o inimigo está em toda a parte.
Desesperada e chorosa, a pobre Senhora Bertha Böhm levantou-se pelas 4 da Madrugada para ser levada a pé num longo cortejo de presos por motivos ditos rácicos, pois quase todos eram cidadãos de confissão judaica, mas obviamente tão europeus como os restantes concidadãos.
A noite estava escura sem luar e não havia qualquer iluminação. Os presos tropeçavam continuamente enquanto os guardas batiam-lhes com as coronhas das espingardas. Chegaram à estação e tiveram de esperar em pé durante duas horas. Tinha começado para eles aquela interminável tortura executada pelos nazis sobre os povos e pessoas perseguidas. Na sua forma mais benigna eram as longas esperas ao frio, as chamadas nocturnas para contagem, os longos trajectos a pé com pouca roupa e muito frio, as viagens em vagões de gado para os campos de concentração com paragens em entroncamentos e estações devido aos bombardeamentos. Viajavam em vagões sem higiene, onde frequentemente nenhum preso podia sentar-se, por estarem de tal modo concentrados num espaço exíguo. E o pior de tudo era a falta de comida, a fome permanente garantida por um pedaço de pão diário, por vezes com algum sucedâneo de carne e uma sopa horrenda de vegetais intragáveis.
A disciplina exagerada era mantida com agressões contínuas, insultos e toda uma imaginação fértil na descoberta de formas para achincalhar e rebaixar pessoas totalmente indefesas. As crianças não sofriam tanto esses males tratos porque eram rapidamente assassinadas nas câmaras de gás ou morriam muito depressa de fome e doença, sendo não raro acompanhadas pelas mães.
As vítimas do nazismo eram submetidas a tanta tortura que nem tinham forças para odiar ou perguntar a si mesmo, mas que deus as tinha condenado a padecer tanto. Muitos dos judeus crentes sabiam para si que eram o povo eleito e que Deus os estava a pôr à prova, não para uma vida melhor na Terra, mas para o futuro encontro com Deus além da morte. Viviam as provações de Job como foi descrito pelo profeta Isaías. Alguns, por outro lado, achavam que aquela impiedade total era bem a prova que Deus não existe e que uma parte dos seres humanos encarnava sim a maldade diabólica. Satanás dispõe mais dos homens que Deus e a sociedade humana não é deimórfica, isto é, Deus não podia ter criado estes homens, estes nazis, à sua imagem e semelhança, nem o céu pode ser antropomórfico.
A senhora Bertha Böhm pensava no filho e chorava baixinho para que as guardas da Gestapo primeiro e das SS depois não a vissem e resolvessem agredi-la mais uma vez para sentirem o prazer da total falta de piedade e compaixão para com um ser humano.
Ao fim das intermináveis horas de espera no frio e cheios de fome, os presos foram empurrados brutalmente para dentro dos vagões de gado pelos guardas SS que, entretanto renderam o pessoal da Gestapo. Iniciara-se assim a longa viagem para o sul, para Theresienstadt, a cidade prisão modelo destinada a judeus ricos e, principalmente, meios judeus. Os nazis prendiam aí alguns judeus muito ricos a troco das suas fortunas e exibiam um certo bem-estar como meio de propaganda no cinema e rádio para dar a entender que os judeus eram apenas deportados para guetos de trabalho como Theresienstadt onde nada lhes faltava de essencial e trabalhavam para o chamado bem comum.
Frau Böihm foi efectivamente encaminhada para Theresienstadt. Aí foi obrigada a trabalhar numa fábrica de tintas e vernizes em condições sanitárias deploráveis, mas sempre a pensar no filho. O jovem anjo foi inexplicavelmente encaminhado para Auschwitz. Saiu em conjunto com umas dezenas de crianças judias de Kola-Fu depois de ter levado muitos murros e pontapés dos guardas da Gestapo sempre que dizia não ser judeu. Os relatos da sua trágica odisseia foram descritos posteriormente por um jovem judeu da mesma idade que o acompanhou ao longo de todo o trajecto e que inexplicavelmente sobreviveu ao holocausto do seu povo.
Quando o comboio chegou a Auschwitz, Joseph Engel quis sair da fila e dirigir-se a um oficial das SS e dizer-lhe ”ich bin kein Jude”, eu não sou um judeu, mas logo aos primeiros passos levou um forte pontapé de um dos guardas e regressou atormentado à fila. O seu companheiro, um jovem askanazi vestido de preto e ainda lhe perguntou o que tinha querido fazer.
- Nada, não, talvez fugir, respondeu-lhe.
- Daqui não se pode fugir, pelo menos agora, mas tenhamos esperança havemos de arranjar uma maneira de fugir.
O jovem askanazi, Michel Ashmer, tornara-se no único amigo de Joseph Engel que chorava continuamente para dentro, a pensar na sua sorte, na da mãe e no padrasto que tinha sido sempre tão bom para ele.
Foram para o campo das crianças e metidos em barracas de madeira. Ali o sofrimento era organizado com a típica meticulosidade germânica com horários certos. Levantar muito cedo e ir para a formatura de contagem ao frio e sem pequeno-almoço, seguida de inspecção. Qualquer das crianças que apresentasse sinais de debilidade era levada para a chamada enfermaria de onde, evidentemente, nunca mais saía. O Dr. Manfred Teufel apareceu a fazer uma escolha e ia chamando as crianças para uma das barracas, onde perguntava a idade e depois dizia para fazerem umas montagens de umas peças muito pequenas a partir de uns desenhos, mas só para os que tivessem 16 ou mais anos de idade. O espertíssimo Ashmer recomendara-lhe que dissesse ter 16 anos e não 15.
- Eles estão a seleccionar o pessoal para montagens de rádios ou coisa do género, talvez o ambiente seja mais aquecido e nos dêem um pouco mais comida. Aqui morremos mesmo de fome.
Quando chegou a vez dos dois, Teufel olhou com fúria para o Askanazi que pela sua indumentária e cabelo não escondia a sua origem judaica e depois olhou para o Joseph Engel e ainda mais fulo ficou e disse-lhe: - Tu és um mentiroso, disfarças, finges que não és judeu, queres passar por um ariano, mas não me enganas, estás aqui é porque és judeu. Engel já tinha percebido que o melhor é nunca responder nem contrariar um energúmeno das SS. Disse-lhe que tinha 16 anos todo perfilado quando lhe perguntou e, tal como Ashmer, passou no teste da montagem.
- Ouviste o que ele me disse, não tive coragem de dizer que não sou mesmo judeu, sou evangélico, a minha mãe é que foi judia.
- Pois é, comigo não se enganou, mas olha, nós os Askanazis somos judeus de religião, mas não de raça, somos descendentes dos Kazars que tiveram um grande império entre o Mar Negro e o Cáspio. Nós aderimos ao judaísmo só no ano 720, somos a 13ª Tribo de Israel. Talvez por isso somos os judeus mais crentes que há e toda a nossa vida regula-se pela vontade de Deus. Sabemos que Deus nos está a pôr à prova para ver se o renegamos. Mas, não, prefiro a morte ao inferno eterno. Eu venho da Polónia, onde a minha família se instalou quando aquilo era Rússia. Sabes, os russos faziam constantemente “progroms” e matavam muitos dos nossos, mas não desistíamos de viver e servir o nosso Deus. O meu sonho e o dos meus pais e avós é voltarmos ao Cáucaso com todo o nosso povo e aí refazermos o Império Kazar e tu podes ser um Kazar de adopção. Nas circunstâncias em que estamos, eu posso fazer de ti meu irmão adoptivo e depois de isto passar o meu pai confirma a adopção, fazendo de ti seu filho adoptivo.
Engel sorriu tristemente e agradeceu a amizade de Ashmer, dizendo-lhe - “Danke mein Bruder”, obrigado meu irmão. Na verdade nunca tinha tido um irmão ou uma irmã e muitas vezes pensara como seria isso de ter irmãos, deveria ser bem mais divertido ter sempre alguém em casa para brincar. Mas, ali, o pequeno Engel não se separava da ideia do frio e da fome, pelo que nada lhe causava uma particular alegria, nem mesmo a extraordinária oferta de Ashmer.
Dois dias passaram depois da selecção quando repentinamente abriram-se as portas do abarracamento, agora mais vazio porque os reprovados tinham desaparecido e ninguém sabia para onde. O guarda disse para arrumarem os seus pertences que iam sair dali.
Foi tudo metido num comboio de gado mal cheiroso e nada limpo desde o último transporte.
Ninguém sabia para onde iam, mas a dada altura Ashmer volta-se para Joseph Engel e outros companheiros e disse bem alto, vamos para oeste, vamos para a Alemanha. – Já sei, vamos trabalhar numa fábrica de aparelhos.
Aparentemente todos ficaram contentes.
Efectivamente, passados dois dias, o comboio passou pela gare de Munique e meteu por um ramal, parando na estação de uma pequena cidade.
Com os habituais gritos e pontapés, as crianças ensonadas foram levadas para o campo superlotada e instaladas em barracas onde já não cabia alguém. Lá se foram aconchegando junto a outros corpos magríssimos que nem se voltavam para ver quem vinha.
No dia seguinte, os novos foram chamados, “Die Neuen”, os novos, gritavam com brutalidade os guardas, para a formatura. Depois da chamada veio um médico ou enfermeiro que olhou para todos e disse a cada um para abrir a boca. Observou os dentes como faria um mercador de cavalos ou um antigo traficante de escravos e mandou alguns para fora da fila. Os outros regressaram à barraca, onde receberam um pequeno-almoço constituído por um sucedâneo de café mal cheiroso e um naco de pão escuro que parecia conter serradura de madeira. Logo a seguir foi-lhes ordenado para arrumarem as suas trouxas com os pertences e irem para a formatura.
Um SS apareceu com uns papéis e começou a organizar os miúdos em grupos. Joseph Engel e o Ashmer ficaram no grupo de uma vintena de rapazes. Escoltados por dois guardas armados foram encaminhados para fora do campo e seguiram a pé por uma longa estrada que parecia nunca mais ter fim. A cidade parecia estar cada vez mais próxima. De vez em quando passavam por baterias de canhões AA e verificavam com espanto que os soldados em uniforme da “Força Aérea” pareciam não ser mais velhos que eles mesmo.
Mas, aqueles rapazes orgulhosos nos seus uniformes azuis olhavam com desprezo para os rapazes de fatos às riscas ou então pareciam que não davam pela sua presença. Quase todos estavam meio a dormir em pé ou sentados. Tinham passado toda a noite a olhar para céu escuro e nublado de vez em quando iluminado pelos holofotes anti-aéreos. Outros ainda tinham os auscultadores nos ouvidos, ligados a gigantescas cornetas colocadas nuns mastros muito altos. Era para ouvir a grande distância os ruídos dos aviões de bombardeamento a aproximarem-se. Joseph Engel ainda pensou, eu bem podia estar aqui a defender a minha Pátria, em vez de estar preso sem ter cometido o mais pequeno crime e a minha mãe como estará ela, coitada. Como eu gostaria de a proteger e ter um uniforme assim para o fazer. Mas, não percebo nada, não sei o que fizemos e chorou.
Continuaram a marcha e voltaram a passar por pessoas, na maior parte civis totalmente indiferentes, até chegarem a uma fábrica.
Entraram logo num grande espaço fabril e foram reunidos a um canto. Apareceu um capataz ou mestre que começou logo a dizer - aqui trabalha-se muito e bem. Quem falhar, acaba. Vocês vão aprender a fazer umas montagens, só podem falhar na aprendizagem. Depois tem que sair tudo perfeito -.
Joseph Engel foi para uma bancada com dois companheiros. Um prisioneiro mais velho colocou um desenho com um esquema eléctrico na frente e uma base com uns fios e um ferro de soldar eléctrico.
- É muito simples – disse o prisioneiro – vocês soldam aqui o fio azul e depois o amarelo e o vermelho. Por fim, aparafusam esta capa e colocam estes suportes de válvulas nestes buracos, aparafusando por baixo. Vá! Façam lá à experiência. Têm de fazer mais de quinhentas peças diárias. Por isso nem pensem em levantar os olhos do trabalho e, menos ainda falar com alguém. Dois guardas SS com espingarda ao ombro estavam por perto a ouvir as explicações. Ninguém se atreveu a olhar para eles. Todos olhavam só para as peças e pensavam no trabalho que tinham de fazer. Adivinhavam que algo de muito mal podia acontecer se não obedecessem cegamente.
Começaram assim a trabalhar sob uma intensa vigilância. O prisioneiro monitor de vez em quando aparecia e arrancava os fios, dizendo que estavam mal soldados. Aconteceu a Joseph Engel que apanhou com os fios na cara com tanta violência que ficou a sangrar. Lá se enxugou com a manga e chorou meio para dentro meio para fora e repetiu o trabalho. Percebeu que aquilo tinha de ser feito bem e depressa.
Passadas seis horas de trabalho tocou uma sineta. Foram para um refeitório comer uma imunda sopa de batata mais qualquer coisa, um minúsculo naco de pão e um copo de água. Tiveram todos autorização apara ir aos sanitários.
E sem qualquer descanso voltaram ao trabalho. Foram mais seis horas de trabalho que acabou com outra sopa e um velho naco de pão. Depois foi-lhes ordenado para pegarem nas trouxas e marcharam por uma pequena ladeira abaixo até a um barracão rodeado de arame farpado. Era o “Aussenlager” da Agfa, a instalação externa de Dachau para os jovens que trabalhavam numa das fábricas Agfa.
Joseph Engel já não estava com Ashmer no mesmo grupo de trabalho, mas viram-se depois no barracão que servia de camarata. Engel contou-lhe o caso dos fios e mostrou a ferida na cara.
– Pois é, meu irmão - respondeu-lhe o Askanazi, aqui e em toda a Alemanha é assim, ou fazemos o que eles querem, ou acontece-nos o pior. Mas olha, este Mundo é mesmo mau, o horizonte está todo vermelho, queimaram toda a cidade de Munique com os seus habitantes. Só espero que as bombas não caiam aqui. Uns atiram bombas de fósforo lá de cima e outros batem e matam-nos cá em baixo. É tudo provação para ver se temos fé, depois vamos todos para o paraíso e os maus, tantos os Guardas SS como os pilotos dos bombardeiros vão para os infernos.
- Mesmo assim – respondeu Engel – preferia estar em casa e frequentar o liceu e não sei onde está a minha mãe.
- Por agora temos de sobreviver cada dia, ou antes cada hora ou minuto. Um dia mais de vida é uma nova eternidade, percebeste. Agasalha-te o melhor possível para não te constipares e apanhares alguma gripe. Levam-te logo para uma enfermaria de onde nunca mais se sai.
Deitaram-se, mas de início ninguém conseguia dormir, apesar do cansaço. De longe ouvia-se constantemente o estrondear seco e contínuo de milhares de bombas a cair sobre Munique sobreposto ao crepitar das rajadas de três tiros das peças de 8.8 anti-aéreas. Todos os habitantes do barracão enfiavam-se na pouca roupa de cama que tinham e todos pensavam que aquilo não se aproximaria dos barracões.
Ashmer levantou-se e foi observar por um postigo já que o barracão não tinha janelas. Regressou para perto da cama de Joseph Engel e disse-lhe: - Parece que os guardas foram embora, devem-se ter abrigado em qualquer sítio. Tenho a impressão que aquilo se está aproximar de cá, os gajos lá de cima devem querer destruir a nossa fábrica. Sim, o que fazemos deve servir para armamentos.
Depois, o espertíssimo Ashmer gritou repentinamente: -Levantem-se todos e vistam-se, vamos procurar um abrigo, talvez isto tenha um bunker. Joseph Engel foi dos primeiros e todos os outros a seguir. Procuraram nos lavabos e em todos os cantos, mas nada, nem um alçapão. Resolveram sair, as portas estavam fechadas a cadeado por fora, começaram a fazer força, mas aquilo era forte, não cedia tão rapidamente.
- Cheira-me a fósforo, isto é como em Hamburgo, vamos ser queimados vivos, cubram-se com mantas e lençóis molhados e tentem uma saída. Se fugirmos para o campo que está húmido da chuva desta tarde podemos salvar-nos, disse Joseph Engel.
- Façam isso, o Engel vem de Hamburgo, já viu a tempestade de fogo – completou Ashmer.
Foram todos forçar a porta com camas e cadeiras, mas não cedia. Outros tentaram sair por uma pequena janela situada na casa de banho, mas também não conseguiram. Ashmer ia espreitando pelo postigo e dizia, - a Agfa está toda a arder, vêm para cá uns bombeiros a apitar. Ainda ouviram dizer, - “raus” (para fora), venham ajudar a apagar o fogo, - mas a primeira bomba de fósforo, pequenina como uma ave atravessa o tecto, seguida de outras. O fósforo espalhou-se e um primeiro grupo foi apanhado pelo fogo. Joseph Engel e Ashmer viram os seus companheiros a arder como se fossem celulóide, aos saltos e aos gritos, enquanto o tecto e as paredes eram apanhadas pelo fogo. Os outros companheiros não eram capazes de fugir, todos arderam vivos até morrer quando tudo desabou, incluindo Engel e Ashmer.
No dia seguinte, pela manhã não restava daquele barracão mais do que um monte de cinzas e todos os cadáveres tinham ardido completamente. Só ficaram esqueletos contorcidos e maxilares muito abertos a denotar o horrível sofrimento de ser queimado vivo pelo fósforo. A fábrica ardera completamente e os guardas SS que se tinham refugiado num abrigo subterrâneo estavam igualmente mortos.
O fósforo tem disso, é independente, castiga impiedosamente e não aceita pedidos de perdão. Penetra em toda a parte, vai às caves, queima portas e janelas e entra sem pedir licença para queimar vivo quem lá esteja. E queima sem pressas, as bombas largam pequenas borboletas que parece terem uma preferência pelos seres vivos, vão atrás deles quando fogem e agarram-se às costas para propagarem o seu fogo lentamente por todo o corpo do atingido. Borboletas que não distinguem amigos de inimigos. Quem estava ali, às portas de Munique era inimigo das borboletas inglesas e americanas, tinha de ser queimado em vida e com vagar até morrer.
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