Carregada de madeira serrada, a escuna Nokomis do velho capitão Manfred Johansen entrou lentamente na Baía de São Francisco, naquele lindo dia de Abril de 1899, vinda do Norte.
O bom pinho do Oregon estava ali a caminho dos construtores ávidos de madeira para alimentar a fulgurante expansão da cidade. Depois de carregado em Port Blakeley, naquela zona do Norte dos EUA em que as águas do Columbia se espalham por miríades de braços e ilhas, a escuna seguiu rio acima para entrar no Pacífico pelo Estreito de Juan de Fuca, dobrando o Cabo Flattery, rumo ao Sul para as costas solarengas da Califórnia. Manfred Johansen conhece aquelas águas em que navega há mais de vinte anos, desde que começou a louca febre do ouro. E ao longo de todos aqueles anos, o dinamarquês do Schleswich-Holstein nunca deixou de tripular as escunas madeireiras que traziam do Norte dos EUA a madeira necessária aos caminhos-de-ferro transcontinentais e às novas cidades californianas. Por vezes levava madeira mais para o Sul, até ao porto de Callao no Peru ou até à Austrália, carregando copra na viagem de retorno pelas ilhas da Polinésia e fez algumas outras viagens aventurosas às costas siberianas, aguentando tempestades e calmarias.
A história das suas viagens ficou gravada em vários diários de bordo e em numerosas cartas dirigidas aos filhos e netos para virem a ser encontradas num alfarrabista de Copenhaga juntamente com o velho “Hand-Atlas” alemão de Eduard Goebler, editado em Leipzig com a data de 1897, tudo metido num volumoso pacote com escrito num rótulo, Espólio do Capitão Manfred Johansen, que adquiri por 200 coroas dinamarquesas. Quase tudo manuscrito em inglês e alemão, pelo que percebi que o capitão Manfred Johansen foi dinamarquês por ter nascido numa época em que a sua vila natal pertencia ao reino nórdico depois de ter sido alemã e voltar a sê-lo e a deixar de o ser várias vezes ao longo do Século XIX. De qualquer modo, emigrou muito cedo para os Estados Unidos, pelo que a questão da nacionalidade o deixou indiferente, já que se tornou muito depressa um cidadão da grande nação americana. Só já no fim da vida é que perguntava a si mesmo qual a sua origem verdadeira, principalmente quando os netos o questionavam também. Simpatizava com o pequeno reino nórdico, mas não podia esquecer que fez parte do espaço cultural alemão e foi aí que aprendeu as primeiras palavras no seio familiar.
Johansen comandou numerosas escunas e mistos de escuna e brigues, os “Brigantines”, ou de escunas e barcas, as “Barkentines” e uma vez escreveu, sou capaz de levar uma escuna ao mais incrível lugar da Terra, desde que tenha, pelo menos, um palmo de água por debaixo da quilha, numa carta em que relata a sua estranha viagem pelo rio Amur acima até à cidade russa de Nikolaievsk-An-Amur no último Verão do Século XIX.
Uma vez descarregado o famoso pinho do Oregon em S. Francisco, Johansen procurou, como habitualmente, um frete para o Norte. Esperava voltar a carregar peles curtidas ou carnes salgadas, mas o negócio fraquejava pois já se sentia a concorrência dos comboios e dos vapores. As escunas deixaram de ser o único meio de transporte, a febre do ouro terminara inopinadamente e a Califórnia procurava novas vias de desenvolvimento.
O velho capitão bateu a várias portas até contactar Mister Foster, o agente da Hall Brothers – Marine & Railway Company, o grande armador e construtor de escunas, mas já metido no negócio dos vapores e caminhos-de-ferro, que lhe disse a dada altura: Tenho um frete interessante para si, sal para a Sibéria a descarregar em Nikolaievsk-An-Amur. Johansen disse logo que sim. Sabia pelos russos da Califórnia e do Alasca que aquilo ficava no Extremo Oriente russo, para lá do Mar Interior do Japão e pouco mais.
Não tinha a mais pequena ideia do que me esperava, escreveu numa das cartas em inglês endereçada à mulher que residia em Port Blakeley, acrescentando: Os russos necessitam de muito sal, pois o frio não permite obtê-lo a partir da água do mar, esta não evapora naquelas paragens siberianas. Por isso importam o sal da Califórnia. Dizem que o trajecto é difícil e perigoso, mas não acredito que haja águas mais traiçoeiras que as da costa do Oregon, junto à Baía de Tilamook, onde tantas vezes fui buscar madeira.
Mas, pelo sim pelo não, Johansen foi aconselhar-se com o velho Truener, o skiper da escuna Wawona que tantas vezes foi ao Mar de Okhotsk pescar bacalhau à linha a partir dos seus dóris. Tunes ao ouvir falar em sal, disse-lhe logo: - Isso até faz bem ao seu madeirame, preserva-o do bicho e endurece as pranchas de pinho e quanto à navegação. Olhe! Nem é pior nem melhor que os nossos mares, mas o Amur é um rio dos diabos. Nunca lá estive, mas falaram-me.
TEMPESTADE TROPICAL
Johansen relata numa das suas cartas que a escuna Nokomis é uma das mais bem construídas da Costa Oeste, toda em abeto bem seco de Douglas, também conhecido por pinho de Humbold, uma madeira de longa duração perfeitamente seca pelos ventos agrestes de Noroeste que sopram continuamente na Península do mesmo nome. Construída com esmero nos estaleiros dos irmãos Hall para a sua própria empresa armadora, acabando por ser vendida a Manfred Johansen alguns anos depois de lançada ao mar, em 1891, precisamente no seu porto de registo Port Blakeley.
O aparelho vélico da elegante escuna desdobra-se pelos seus quatro mastros e outros tantos mastaréus. Cada um levanta uma vela latina quadrangular envergada em caranguejas de arriar de popa à proa. No tope armam-se velas latinas triangulares denominadas gave-tope. Todas as velas do traquete, do contra-traquete e do grande são intercambiáveis. Só a vela da ré possui uma área ligeiramente superior, caçando numa retranca mais longa que as vergas apoiada no mastro da gata por meio de um galindréu a entrar no cachimbo. No mastaréu da ré também vai armado um gave-tope (vela do topo do prolongamento do mastro denominado mastaréu). As quatro velas de proa são latinos que envergam em estais, apresentando a chamada vela de estai uma superfície maior que as outras duas velas designadas na nomenclatura da vela por bujarona, de giba e de estai do traquete.
Os gave-topes içam-se e arreiam-se ao longo dos mastaréus, tal como as outras velas ao longo dos mastros ou dos estais. Enfim, um excelente aparelho vélico para barlaventear de bolina cerrada com uma tripulação de nove a dez homens apenas.
O casco aparentava ser extremamente sólido, apesar das suas linhas elegantes e finas como é bem visível nas velhas fotos encontradas entre as cartas do velho capitão. «Efectivamente», escreve Manfred Johansen no prefácio de um dos seus diários de bordo, a escuna Nokomis está bem protegida contra o alquebramento por via dos fortíssimos pródigos das balizas e das escoas de fundo pregadas interiormente. O convés lavado, desprotegido de amuradas desde a zona que vai do mastro da ré até à grinalda (remate superior do painel da popa) facilita o acesso das pranchas de madeira pela popa, geralmente acomodadas no convés quase até às vergas do velame. O painel da popa é perfeitamente direito e inclinado para dentro.
A escuna Nokomis registou alguns recordes pessoais do capitão Manfred Johansen, registados num dos logbooks, os quais ultrapassavam ou igualavam as melhores escunas madeireiras. Assim, em Março de 1898, Johansen navegou da barra do Umpqua no Oregon até S. Pedro, no Sul da Califórnia, em três dias e catorze horas, carregada com 400 mil pés cúbicos de madeira. Mas, geralmente fazia o trajecto de ida e volta em 17 dias. Claro que a rapidez depende muito de haver boas condições de entrada nas barras do Norte. Por vezes, pairava-se frente a uma barra durante dias a fio até se propiciarem as condições adequadas, já que as escunas da época não tinham motores auxiliares e os rebocadores a vapor raramente se aventurava a passar uma barra.
Johansen aceitou prontamente o frete para levar sal para o outro lado do Pacífico e prontamente a sua escuna foi carregada de sal. Antes de iniciada a viagem, comprou a edição de 1896 do «Ocean Passages of the World” do Almirantado Britânico e o “Pacific Islands Pilot”, ambos de pouca utilidade porque pouco diziam sobre as águas japonesas e nada sobre o Mar de Okotsk. Não podia cruzar o Pacífico a Norte para encurtar a distância, a fim de não bolinar excessivamente e perder as vantagens, dado que os ventos e correntes não são nada favoráveis, escreveu num dos diários o capitão, continuando: Para aproveitar o alísio do NE planeei rumar a Sul até quase ao Trópico de Câncer e depois para Norte pelos 30º de latitude para entrar no Mar do Japão pelo Estreito de Tsugaru, a 40ºN, a fim de contornar um pouco a zona dos tufões, fugindo ao Estreito de Tsushima mais a Sul.
Manfred Johansen queria fugir aos tufões, mas numa das cartas, escreve como foi apanhado por um tufão, precisamente nessa viagem do sal.
Assim, o capitão escreve: Cheguei às ilhas Hawai após 12 dias de navegação desde a Califórnia. Entrei no porto de Kahului para receber água e alguns víveres frescos, sem perder muito tempo. Continuei para aproveitar o alísio NE, rodando lentamente para Norte na esperança de me safar dos tufões sem o conseguir; não tive sorte e fui apanhado, continuando: o meu susto começou pelas 14 horas. Como habitualmente fui ver o barómetro e eis que o meu coração quase queria saltar para fora da caixa torácica, quando li 955 mb e desceu ainda mais na hora seguinte. O tempo estava quente e na água o termómetro marcava 25º C. Comecei de seguida a sentir rajadas ascendentes de ventos sempre a crescer em força até atingirem a violência característica das tempestades tropicais com uma movimentação espiralada. Mas, logo que observei a depressão barométrica mandei arriar os gave-topes e a vela do grande e coloquei o resto do pessoal a fechar escotilhas, fixar peças móveis, verificar os brandais dos mastaréus e as enxárcias, além de reforçar os estais e o poleame, alceando-os onde fosse necessário. Depois ainda mandei arriar as velas do traquete e do mezena, ficando só com a ré e as velas dos estais, preparando-me para correr em árvore seca, logo que o venta atinja os 50 nós e a Escala 11 de Baufort. As nuvens carregadas eram arrastadas velozmente para o interior da depressão, enquanto que o mar se elevava de maneira ameaçadora, formando ondas de vários metros de altura a varrerem o convés de proa à popa. Os ralos dos embornais não davam vazão a tanta água, deixando o convés de tal maneira coberto pelo elemento líquido que os homens tiveram de trepar pelas enxárcias para não serem levados pelo turbilhão. Amarrados ao pilar da roda do leme, três homens tentavam manter o rumo com quanta força tinham. O objectivo era desviar a escuna do «olho do ciclone», onde o vento é mais fraco, mas o mar mais violento e desencontrado. Escapei-me pelo círculo navegável, evitando ser puxado para a zona perigosa, onde a minha pequena escuna não teria hipóteses de se safar. O vento uivava ameaçadoramente por entre as vergas como se invectivasse a escuna que teve a ousadia de penetrar no reino privado de Neptuno. Navegámos primeiro de capa seguida para passarmos depois a capa rigorosa só com as velas dos estais da proa. O navio balouçava com uma intensidade nunca vista nos meus trinta anos de mar e cada mergulho parecia ser o último, nunca mais voltaríamos à superfície. Como que por milagre a escuna voltava sempre ao de cima, víamos primeiro a proa a sair da espuma líquida e depois o resto antes de novo mergulho.
Não dei pelo tempo passar, lutámos durante umas seis horas com a tempestade e depois desta amainar ainda navegámos durante quase um dia mais em mar alteroso até vir a bonança. O meu imediato não tinha experiência alguma, era um rapaz ainda muito novo, apesar de navegar há menos de dois anos, mas tinha a patente para ser oficial. Foi a sua primeira grande lição do mar, creio que lhe valeu mais que todos os manuais de navegação que decorou no curso de pilotagem e oficial.
Infelizmente, uma das velas de estai rompeu-se no preciso momento em que as vagas não permitiam o acesso ao convés para a armar; perdemos assim aquele pano que se desfez em pedaços. Mesmo só com as restantes velas de estai, o navio corria como se tivesse todo o pano envergado.
O temporal não afectou a carga, protegida como estava nos porões bem cobertos e vedados com grossas telas oleadas. Manfred Johansen revela noutra carta que passou o estreito de Tsugaru entre as ilhas de Honshu, a maior do Japão, e a de Hokkaido. Depois rumei ao norte para o Estreito da Tartária entre a ilha Sakalina e o inóspito e frio território continental do Extremo-Oriente siberiano. Víamos a imensa cordilheira de Sikhote a perder de altura com os cumes envoltos num nevoeiro frio e cobertos de neve até nos aproximarmos da baía de De Kastris onde deveríamos meter o piloto que nos levaria pelo Rio Amur acima até Nikolaievski. Pelos 52ºN cheguei-me à costa cuidadosamente até ver um lugarejo com algumas casas no fundo de uma pequena enseada ou baía. Larguei a âncora a 200 jardas de uma pequeníssima ponte-cais de madeira, arriei o escaler e e fomos para a ponte onde já estavam todos os habitantes do lugar à nossa espera. Vi um indivíduo de barbas com aquilo que parecia ser a farda azul da marinha russa e perguntei em inglês:
- O Mister é o piloto aqui?
- Sou sim, não há outro piloto por estas paragens, só em Vladivostoque.
- Que bela a sua escuna.
O homem falavam um pouco de inglês, francês, alemão, japonês e chinês; depois, revelou-se como sendo um homem de grande cultura e que nascera no Báltico Russo e concordou logo em pilotar a escuna de Jahansen, mas na condição de ir previamente a casa dele beber um chá e algo mais se quiser. Claro, escreveu o capitão da escuna Nokomis, aceitámos e fomos à casa do piloto depois de cumprimentar toda a população do pequeno burgo.
A casa do piloto era uma “Isba” de razoáveis dimensões, isto é, uma casa de toros de madeira com telhado de madeira e telhas, tendo ao centro um enorme fogão que dá para uma chaminé volumosa e central. Era efectivamente a casa adequada ao clima siberiano, até porque os toros de madeira são um excelente isolante. E era acolhedora a casa de Misha, como queria que o tratasse, e Stepanovitch de apelido, ou seja, filho de Stepan.
NO RIO DO DIABO
-
No Rio
Vai ser uma viagem do diabo, - disse o piloto, enquanto bebiam o chá tirado de um Samovar que fogueava o dia inteiro, - vou levar a tua escuna a deslizar nos seixos rolados do Amur. De outro modo não é possível navegar neste rio do diabo.
Fiquei assustado, escreveu Manfred Johansen na sua carta, mas não quis aprofundar o assunto para não aumentar o meu receio de ir ao fundo do rio depois de bater num dos baixios e nem encarava a hipótese de voltar para trás.
Ficámos ali até à madrugada seguinte e logo muito cedo, antes mesmo do dia despontar, levantámos a âncora para navegar na parte mais apertada do Estreito da Tartária, passadas três horas de bolina firme. A ilha russa de Sacalina dista ali poucas milhas da Sibéria igualmente russa.
Seguindo as instruções do piloto Misha, a escuna abicou a meio do Estreito à foz do Amur com uma brisa forte num dia de verão quente siberiano.
Johansen escreveu no seu diário nunca pensei chegar um dia à foz quase insignificante deste rio de mais de 2.700 milhas que vem da Mongólia e passa pela China onde é conhecido pelo Hei-long-kiang até entrar na Sibéria onde passa a Amur.
Já estávamos em pleno rio quando Misha me faz uma confissão e disse: - Sabes Manfred, nunca pilotei uma embarcação do tamanho da tua por este rio até Nikolaievski. É que são raros os barcos que se aventuram aqui e muito mais raras as escunas de quatro mastros. De dois já pilotei, mas de quatro não.
Efectivamente, os barcos que navegam mais habitualmente naquele rio são os escaleres, barcaças e barcas a remos e, por vezes, alguns juncos chineses. Sempre se disse que o Amur não é um rio navegável, principalmente à vela, mas Misha estava decidido a provar o contrário e descarregar o sal bem lá acima, em Nikoilaievsk.
E acrescentou: Aqui sopra frequentemente um vento de cima, o tal que foi obrigado a subir pelas montanhas que ladeiam o rio. Outras vezes é o vento de terra que sopra de montante. Creio que podemos bolinar, nem que seja de seixos para seixos.
Fiquei apreensivo, continuou Manfred Johansen, e observei o vento, estava um vento de travessão, um bocado de repiquete, por vezes sentia rajadas de alheta a permitir avançar bem no rio.
Misha muito atento perscrutava o rio por causa dos baixios, os perekate, como dizia em russo, e acrescentou: - Há aqui dois tipos de baixios, os de seixos rolados e os de rochedos. A ter de tocar, temos de escolher os de seixos rolados e cobertos de limos e algas. Aí as barcas costumam deslizar como se fosse na neve. Os rochedos, mesmo quando estão cobertos de água, identificam-se pela grinalda de espuma que sempre formam, quanto maior a grinalda maior a pedra e há que evitá-la, pois o encalhe é a morte do navio.
Guinando a bombordo e a estibordo. relata Johansen, - fomos fugindo dos rochedos para, de vez em quando, bater nos calhaus roliços. O meu coração parecia estilhaçar-se, mas a Nokomis aguentava os embates e deslizava como se fosse feita para navegar sobre pedra. Misha disse para seguirmos a linha escura em que a água reflui. A tortura durava uma eternidade; levámos horas para fazer algumas milhas e a navegação ia tornando-se cada vez mais lenta, o pessoal atento manobrava o velame o mais rapidamente possível. Depois da zona da foz, passámos a navegar de borboleta, amurando as velas em bordos diferentes aos pares. Arriei os gave topes e um dos latinos para experimentar, depois icei as velas arriadas e reduzi todos os latinos. Não podia navegar a todo o pano pois os golpes de vento deixariam a escuna desgovernada e sem espaço de manobra antes de bater nas margens ou nalgum rochedo. O maior perigo foi vivido na zona dos baixios denominado Bico-de-Água. Uns grandes rochedos emergiam aí, reduzindo de tal modo o espaço para o rio que este formava rápidos. Em vez de avançar recuámos e fizemos sete tentativas para forçar a passagem. Ao fim de umas quatro horas de esforços continuados, conseguimos passar aquela zona graças a um vento forte e favorável de alheta que nos empurrou para a frente. Já tinha pensado em fazer sair a tripulação, arriar as velas e rebocar a escuna com a força humana a partir das margens como as barcaças do Volga. Com a minha reduzida tripulação seria mesmo uma tarefa quase impossível. Imaginei que ficaria apenas o piloto Misha a bordo. Eu e o imediato e todos mais iríamos puxar os cabos que nos atrelariam à escuna.
Só depois de passarmos a zona dos baixios é que Misha chamou a atenção para os muitos restos de barcaças e pirogas destruídas e abandonadas nas margens, aquilo era um canto do diabo, como me disse.
Navegámos, isto é, lutámos contra o rio durante o dia inteiro; à noite ancorámos para descansar numa das margens. Cinco dias e noites durou o nosso martírio para navegar aquelas poucas milhas e não dizemos mais de um a dois nós de média. Nem dei pela beleza deslumbrante das margens; algumas delas de um alcantilado a pique e todo coberto de imensos pinheiros e bétulas. Só já próximo de Nikolaievski é que o escarpado dava lugar a margens mais baixas para, por fim, abrigar um povoado de umas dezenas de isbas de madeira e uma igreja numa reentrância fluvial.
Noutra carta, Johansen descreve a festa que foi a chegada da Nokomis àquela cidade que, no seu entender, era tudo menos isso, nem sequer uma aldeia. Toda a população veio ao nosso encontro e gritavam “hurré”, traziam vodka e bolos para nos oferecer, o Pope da Igreja Ortodoxa vinha à frente e benzia-nos repetidamente. A minha extenuada tripulação não se fez rogada e começou ali três dias de bebedeira continuada. Aqueles rudes e hospitaleiros siberianos choravam de alegria ao verem pela primeira vez uma escuna que venceu o impossível, como me disseram posteriormente.
Todas as mãos do povoado vieram ajudar a descarregar a escuna, enquanto tive a ocasião de falar com as autoridades locais, nomeadamente com um governador ou representante do Vice-Czar, o irmão do Imperador Nikolau, que governava todo o Oriento russo a partir da cidade de Porto Artur. Contaram que os russos chegaram à região por volta de 1640 depois de conquistarem todos os territórios que vão dos Urais à ilha Sacalina já no arquipélago nipónico. Uma proeza indiscutível que libertou de vez a Europa das ameaçadoras invasões dos tártaros, mongóis e turcos.
Depois das curtas e inesquecíveis férias siberianas, a escuna Nokomis iniciou a viagem de regresso com menos carga, pois levava apenas algumas peles, por sinal mais valiosas que o sal que tanto fez aumentar o calado da escuna, escreveu o capitão da escuna Nokomis, continuando: o rio não tinha aí largura suficiente para voltar a escuna e abicar à foz. Depois de muito pensar e de algumas tentativas que resultaram em embates contra os seixos rolados, não tive outra alternativa que tentar navegar à ré impelido pela corrente do rio. Mas como conduzir devidamente a escuna? Misha não encontrava solução para manter a escuna direita no rio, pois o leme não queria obedecer na navegação à ré. Foi o jovem Serioja que encontrou a solução adequada. Serioja é um aprendiz de pilotagem que trabalha como o sota de Misha. Tinha levado uma grande piroga siberiana a Nikolaievski pelo que estava na cidade à nossa espera.
O espertíssimo Serioja propôs arrastarmos âncoras e utilizar como leme e impulsor uma vela mergulhada na água frente ao painel da popa, envergada na respectiva verga e ligada por dois cabos peados a meia nau. A força da corrente na superfície da vela impelia muito bem a escuna nas zonas mais profundas e largas do rio, enquanto as âncoras semi-mergulhadas permitiam estancar o navio logo que a corrente fosse demasiado forte ou se apresentasse um perigo pela frente, permitindo fazer a manobra para desviar dos baixios. Serioja, à popa que servia de proa, atirava longe uma sonda para apalpar a profundidade e, sempre que esta não era suficiente, Misha dava ordens para os meus marinheiros largarem as âncoras. Algumas vezes, Serioja enganava-se e atirava a sonda por cima da vela e gritava duas toezas. Fazíamos logo parar a escuna e verificávamos que afinal fora desnecessário. Foram dezenas de paragens, mas lá conseguimos chegar são e salvos à foz do Amur e eu disse para comigo, livra, nunca mais.
A escuna voltou então a adquirir a sua dignidade de excelente veleiro oceânico com todas as velas içadas. Em 21 dias apenas fez toda a viagem de regresso até ao Estreito Juan de Fuca entre o Canadá e os Estados Unidos da América. Foi, sem dúvida, a mais incrível das viagens que um capitão de navio poderia imaginar.
Léxico:
Abicar: aproar, guinar, encalhar propositadamente.
Amurada: Prolongamento do costado do navio, acima do convés e face interna do costado.
Bolina cerrada: Navegar com vento que faz um ângulo de 67º ou menos com a quilha.
Bolinar: Navegar muito chegado ao vento.
Bujarona: Vela de proa que enverga no estai de bujarona, um dos cabos que ligam a proa ao mastro do traquete (1º mastro nos navios de 4 mastros).
Carangueja: Verga das velas latinas quadrangulares, disposta no sentido da proa à popa, fixa ou de arriar. Consoante o mastro a que se encosta assim se chama carangueja do traquete latino (1º mastro), carangueja do latino grande (2º mastro), carangueja da mezena (3º mastro) e carangueja da vela ré (4º mastro).
Embornal: Abertura feita no costado, à altura do pavimento do convés, para escoamento das águas da baldeação, da chuva ou do mar.
Enxárcia: Conjunto de cabos que seguram os mastros e mastaréus para um e outro bordo do navio.
Gave-Tope: Vela latina, geralmente triangular, que arma no mastaréu de qualquer mastro.
Galindréu: Peça metálica fixada no extremo da retranca que vai entrar na abertura de uma peça fixada no mastro denominada cachimbo.
Mastaréu: Vergôntea que espiga por cima de um mastro real ou de outro mastaréu. Continuação do mastro com pau diferente ligado por peças metálicas.
Mezena: Vela que enverga na carangueja da mezena e no próprio mastro de mezena, o terceiro a contar da proa nos navios de quatro mastros que enverguem velas latinas.
Pear: Prender com peias (cabos).
Poleame: Conjunto de peças de madeira ou ferro destinadas à passagem dos cabos.
Pródigos das balizas: Tiras de ferro zincado colocadas na face exterior das balizas (peças curvas de madeira que formam a ossada do navio) para evitar o alquebramento (deformação da quilha).
Traquete latino: A vela latina quadrangular do mastro do traquete, o 1º nos navios de 4 mastros.
Velas latinas: Velas que trabalham no sentido da proa à popa, envergadas em mastros, caranguejas, estais ou vergas muito inclinadas para ré, ao contrário das velas redondas que envergam em vergas que cruzam horizontalmente de bombordo a estibordo.
Velas de estai: Velas que envergam no estai do mastro da proa ou do respectivo mastaréu, sendo o estai qualquer cabo que aguenta para vante a mastreação.
Do «Dicionário de Linguagem de Marinha” dos Comandantes Humberto Leitão e J. Vicente Lopes.
Publicado na Revista de Marinha em 1996.
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