Sábado, 24 de Fevereiro de 2007

O Conto como Género Literário

 

As editoras, sejam portuguesas ou não, raramente gostam do Conto, da "Short Story" como dizem os americanos ou do "Cuento" ou "Novela de Curto Plazo" no dizer dos sul-americanos. Por isso, não publicam esse "género menor", salvo nos casos em que o autor paga a edição ou quando uma "alta autoridade da televisão" lança o nome do autor, mesmo que seja em actividade completamente desgarrada da literatura.

No meu caso, tanto o conto como a novela curta fascinam-me e publico-as num blog com a consciência de nem serem lidas. Podem ser curtas e lidas em cinco a dez minutos, mas isso hoje acaba por ser uma eternidade. Quem tem paciência para mais de dez linhas ou mais de 30 segundos na Televisão? As televisões habituaram-nos a concentrar a atenção sobre algo durante segundos e, em casos mesmo excepcionais, minutos. Contudo, há países onde escritores se notabilizaram no conto, e são essencialmente sul-americanos de fala hispânica. Garcia Marques, Cortazar, Borges, Juan Rulfo, Mario Benedetti e tanto outros notabilizaram-se no conto, apesar de alguns terem também sido grandes romancistas.

No conto, o autor não tem a pretensão nem a arrogância de criar um mundo como sucede no romance, mas tão só contar uma peripécia em que, eventualmente entre mais que um personagem com capacidade para dialogarem entre si. Mas, a peripécia traduz sempre um momento da vida das pessoas e do ambiente que as rodeia, daí poder buscar um Século inteiro para contar algo de maior ou menor significado em dados momentos históricos. Mesmo um Século chato porque passou e deixou pouco para além do computador e de umas mecânicas. O Século XX foi o da morte das ideias. A inteligência humana parece que se passou lentamente para as maquinas. Sem elas já não somos nada, nem escrever sabemos sem o portátil.

 O conto sul-americano teve, sem dúvida, um grande desenvolvimento e não foi por acaso que o um prémio Nobel foi concedido a um contista puro. Refiro-me a Jorge Luís Borges, o autor que me fez um apaixonado por esse género literário, seguindo-se depois Raymond Carver, o inolvidável escritor das "short stories" e da escrita criativa. Carver foi um Tchekov americano, sendo que Tchekov foi o maior contista russo, e talvez do Mundo, de todos os tempos. A simplicidade de Carver e a forma como transmite nos seus escritos o tédio materialista de uma grande parte da sociedade americana que tem tudo, mas não tem nada ao mesmo tempo, finge ser feliz e é profundamente infeliz. Come hamburgers a julgar que participa na sociedade democrática e, sem saber, é totalmente dominada por esse "Big Brother" chamado televisão.

 Raymond Carver, como nenhum outro, é um fotógrafo por palavras e mostra as traseiras, a roupa estendida, as fraldas descartáveis e a monotonia que se apoderou de uma sociedade já globalizada a nível mundial neste aspecto. Carver é genial a descrever as vidas paradas e essas são praticamente todas. A peripécia em Carver é a chatice, ninguém pode ser político nos EUA, a não ser que seja milionário ou filho de presidente. Cada um tem a sua vidinha e nada mais. Mesmo assim, ainda não foi Raymond Carver quem teve a coragem de chegar ao âmago da realidade. À monotonia verdadeira, ao desencanto total da vida velha, ao apagar triste de cada ser humano na lenta degradação neuronal ou ambiental. Os humanos são trapos a morrer e vivem como trapos mais ou menos animados.

A literatura, tanto no conto como na novela, é uma fuga à realidade. A peripécia pode ter sido um acontecimento, mas é sempre fortuito, não é a realidade no seu todo. Essa, ninguém tem coragem para a descrever. Claro, eu muito menos. Mas qualquer dia alguém terá de o fazer. Não podemos ser apenas um Mundo de sete mil milhões de fingidores.

Arundati Roy em "Um Deus das Pequenas Coisas" aproximou-se bastante, tal como Robert Musil em "O Homem sem Qualidades" andou por perto da realidade, mas também não atravessou a última fronteira. A realidade é a consciência que todos temos e fingimos não saber da sua existência de que a vida não é ideal e nada de espantoso vai acontecer no tempo de cada um. Mesmo os acontecimentos cheios de grande intensidade como as revoluções ou guerras tornam-se incrivelmente monótonos e gastos logo ao terceiro dia. A tragédia da morte diária é o mais inconcebível dos acontecimentos e muito pior que o mesmo café tomado todas as manhãs ao longo de muitas décadas de vida. Enfim, resta-nos contemplar o azul do céu e as ondas do mar. O sol e a água podem encher-nos sempre de alegria. Fomos feitos disso, é a nossa matéria-prima essencial.

 

publicado por DD às 00:27
link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Janeiro 2023

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
31

.posts recentes

. O Conto como Género Liter...

.arquivos

. Janeiro 2023

. Janeiro 2022

. Setembro 2021

. Dezembro 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Abril 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Junho 2017

. Outubro 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Maio 2015

. Janeiro 2015

. Fevereiro 2014

. Novembro 2013

. Junho 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Maio 2012

. Março 2012

. Maio 2011

. Setembro 2010

. Junho 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Agosto 2009

. Abril 2009

. Junho 2008

. Maio 2008

. Agosto 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

. Setembro 2006

. Março 2006

. Janeiro 2006

. Julho 2005

. Março 2004

. Fevereiro 2004

. Janeiro 2004

.tags

. todas as tags

.links

blogs SAPO

.subscrever feeds