Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2004

O CURSO


-Ó Madeira, não te esqueças que para a semana tens o curso do Fundo Social Europeu, é na Oficina 3, vais lá, assistes a umas aulas, é pouco tempo! O principal é assinares o papel, depois voltas na carrinha com o resto da malta.


- Está bem, senhor engenheiro, mas se é como da outra vez acho que não vale muito a pena. Recorda-se do curso das caixas de velocidades? Eu sabia tudo aquilo, trabalho todos os dias com os carros, provavelmente já desmontei mais de mil caixas, aqui e nos doze anos que estive em Moçambique como mecânico.


- Não ligues, assina os papéis e pronto.


António Madeira voltou ao trabalho na Oficina Central da Marca Francesa sem pensar mais no assunto. Não lhe parecia que algum curso lhe pudesse ensinar mais do que já sabia. Trabalha ali há uns vinte anos, quase desde que regressou de Moçambique, mais concretamente do Lumbo, frente ao canal que separa o continente da Ilha de Moçambique. E recorda sempre com saudade aquela terra onde trabalhou um rol de anos; terra fértil de cajueiros e gigantescos embondeiros com praias como a das Chocas onde tinha uma pequena casa que alugava de vez em quando. Um dia, o Madeira contou como o macaco-cão é o melhor trabalhador daquela costa, pois limpa a noz do cajueiro dos restos da flor e do pericarpo, deixando-a pronta a ir para a grande fábrica de descasque que funcionava ali perto.


Ao Lumbo chegava diariamente a automotora de Nampula o que dava ainda algum vida à região, pois o tráfego marítimo já tinha passado para Nacala. Mas, para o Madeira não faltava trabalho. Ele gostava mesmo daquela vida com muito gente a ajudar por pouco dinheiro e com poucos conhecimentos. Mesmo assim, ainda treinou o Tamimo Otiselo que se tornou no seu “braço direito” e o Armando e o Saíd para se ocuparem das reparações menos exigentes. Adorava aquela condição de branco, sempre a mandar e a zangar-se com eles que não aprendiam o que se lhes ensinava.


Quando foi obrigado a regressar à terra que o viu nascer, o António Madeira teve a sorte que a sua qualidade profissional lhe proporcionou. Empregou-se na Marca Francesa e chegou a ir para a fábrica lá para os lados de Setúbal. Mas aquilo não era trabalho para um especialista, montar sempre as mesmas peças. Nos tempos áureos em que o dinheiro corria como um "caudal" do Orçamento de Estado para as contas bancárias da Marca Francesa, o Madeira foi nomeado inspector, mas só do lado esquerdo das viaturas. No lado direito estava o Tavares. Inspeccionavam o rodado, os painéis, os travões, as braçadeiras e bucins e não sei o que mais, além dos pneus.


Sempre que falava da época em que inspeccionava, António Madeira não pode deixar de sorrir e contar a história dos pneus. Eram trezentas viaturas que deveriam embarcar para Génova na Itália. O Madeira inspeccionou tudo muito bem, viu mesmo as jantes e os pneus "Mx"; tudo nos conformes e registado nas fichas. O Tavares, do lado direito, fez o mesmo e registou os pneus "Fir". E lá seguiram os carros para o cais onde deveriam embarcar numa caixa flutuante tão grande como feia. Por sorte, um dos condutores da estiva reparou que as viaturas tinham um comportamente ligeiramente diferente do habitual. Resolveu olhar para as rodas e, com espanto, reparou o que havia algo de anormal; uma marca de pneus de cada lado. Foi tudo chamado à baila. Ali mesmo no cais, começaram a trocar os pneus de uns carros para outros, mas o barco não esperava, trabalharam de noite e, por fim, o Madeira e uns colegas tiveram de embarcar à pressa com macacos e tudo para continuarem o trabalho durante a navegação para Génova. O Madeira nunca tinha estado na Itália, pelo que a viagem foi excitante, viu um pouco de Génova e depois um naco de Milão para onde foram à pressa apanhar o avião para Lisboa.


Quando chegou foi o bom e o bonito, quiseram assacar as culpas ao Madeira e ao Tavares, mas não podia ser, estava tudo nas fichas. E não é que o francês tinha proibido o pessoal de falar durante o trabalho e só duas mijas por turno. - Mas não! - disse o engenherio depois, - isso não era para os inspectores. Tinham de trocar impressões para que as viaturas saiam da fábrica "comme il faut"- .


Andou tudo à bulha, o francês mais os dos fornecimentos e gestão de produção e stocks, preparadores de trabalho e sabe-se lá quem mais. O francês, que tinha inventado o processo "taylorista" de inspecções à direita e à esquerda, continuou no posto, muito enfiado nos primeiros tempos e arrogante como sempre depois. O Madeira e o Tavares é que foram enviados para a Oficina Central como se fossem culpados, tendo-lhes sido comunicado já no fim do dia trabalho para que deixassem a impressão que tinham sido castigados. Para o Madeira até foi melhor, sempre ficava mais perto de casa e preferia o trabalho de mecânica que a repetição infinita das mesmas tarefas. Mas não foi para melhor que mudou, estava pegado pelo chefe, o engenheiro, e tinha os tipos do cronómetro sempre atrás dele. O trabalho era tão infernal como o da cadeia de montagem; um carro a seguir ao outro, geralmente revisões em que um certo número de tarefas tinham de ser feitas em meia hora para serem debitadas por hora e meia ao cliente. Trocava as correias de transmissão, afinava os platinados e substituía as velas e passava a outro que afinava os travões. Qualquer problema que houvesse passava despercebido e o experimentador também estava instruído para não dar por nada. Não estava escrito na ficha do pára-brisas, logo não era problema. Aquilo era repetitivo e esgotante; o maldito cronómetro deixava-o ainda mais prostrado. Só aos fins de semana é que o Madeira descansava um pouco ao arranjar alguns carros de amigos e clientes conhecidos, o que fazia com o vagar necessário para fazer obra bem feita. A ideia do Madeira era ter uma clientela fixa suficientemente grande para um dia abrir uma oficina na Damaia. Faltava-lhe o capital e há anos que procurava o local cerro. Tinha discussões em casa com a mulher que receava o desconhecido. Preferia o certo ao incerto do trabalho por conta própria, mas já estava convencido..


Para a marca francesa, o Madeira era visto como um velho, mas com os seus cinquenta e pouco anos, considerava-se ainda no auge das suas forças e senhor de uma vasta experiência no automóvel. Até mesmo as modernas técnicas electrónicas não o deixavam de lado; tinha uma sensibilidade prática para tudo o que fosse técnico, pelo que raramente saía algo de errado das suas mãos. Ainda pensou que o tal curso deveria ter algo a ver com a electrónica nos carros e chegou a dizer para com os seus botões que talvez até fosse útil. Agora com os computadores ligados ao escape e ao distribuidor e entrada de ar faz-se rapidamente a análise do estado em que se encontra uma viatura quanto ao funcionamento do motor. Talvez nesse campo haja algo de novo que possa aprender. Mas duvidava e tinha um interesse relativo, já que na oficina que queria montar não entrarariam tais engenhocas por falta de verba, evidentemente, e por, no seu entender, serem totalmente desnecessárias. Para o Madeira, o ouvido e a experiência registada cerebralmente fazem mais que o computador dos gáses.


A segunda-feira chegou e logo de manhã, mais cedo do que habitualmente, o Madeira, o Tavares e outros tomaram os seus lugares na carrinha que os levou à Oficina 3 onde ia ser dado o curso. Entraram todos e, como sucedera em ocasiões anteriores, foram logo preencher as fichas individuais e assinar uns recibos a constatar uns pagamentos que que ninguém receberia. Mas, não faz mal, sempre altera a monotonia do trabalho - pensou o Madeira - e os franceses aqui em Portugal têm agora de mamar na teta da Europa; já mamaram muito do nosso estado.


Preenchidos os "requisitos legais" foram todos para a grande sala de aulas. António Madeira ficou espantado ao ver alguns carros sujos e viu muitas escovas, baldes, agulhetas de alta pressão e ao fundo estava a máquina de lavar automóveis da Oficina 3 da Marca Francesa.


- Mas que raio de curso é este? - Perguntou o Madeira ao seu amigo Tavares.


- Ó pá, eu não sei, mas talvez o Coelho Antunes aqui nos pode explicar, o gajo está sempre a par com os acontecimentos. Não é verdade "Lapin"? O Tavares gosta de mostrar o seu francês; aprendido em Paris onde trabalhou como lubrificador de carros numa "Garage". De vez em quando traduzia os nomes dos colegas para francês. O Madeira passava a ser o "Bois" e o Coelho Antunes o "Lapin Antunés".


- Então vocês vêm a um digníssimo curso pago pela Europa e nem sequer sabem qual a sabedoria que vão beber, o que a Europa vem ensinar aos portugueses toscos e ignorantes. Não viram na Televisão, uma porcentagem muito importante de nós todos é o quê? Já não me lembro, iliteratos ou qualquer coisa no género. Quer dizer, segundo os gajos do Governo ou sei lá o quê, sabemos ler e não sabemos ler, tudo ao mesmo tempo. Por isso temos que voltar aos bancos da escola para aprendermo o que a Europa tem para nos ensinar. E vivam os franciús ensinadores. Como é que se diz isso em franciú, ó Tavares?


- Diz mas é lá que curso é este com escovas e baldes. Olha pá, está ali detergente também. Não me digas que é um curso de lavar cozinhas.


- Bem, cozinhas não, porque a Marca Francesa não as vende, mas é um curso de lavar carros.


António Madeira ficou branco, petrificado mesmo, não conseguiu balbuciar qualquer palavra e pensou, eu com trinta e seis anos de mecânico venho frequentar um curso de lavador de carros. Na verdade estão aqui muitas caras quase imberbes, uns putos arranjados não sei onde, até estão duas gajas, mas eu, o Tavares, o Coelho Antunes e o Silva Cavaco. Todos profissionais altamente cotados aqui. Não pode ser. Vou falar com o chefe destes cursos.


Rapidamente dirigiu-se à mesa onde uma secretária ia dando e recolhendo as fichas e perguntou quem estava ali a chefiar o curso.


- É o engenheiro Martins - respondeu a rapariga - está ali ao fundo, vê aquele senhor com um telefone portátil na mão, é ele mesmo. Mas olhe que o curso está mesmo a começar, o monitor já chegou, o melhor é falar com o engenheiro no intervalo.


Desconsolado, António Madeira voltou para o seu lugar ao lado do Tavares e do Coelho Antunes. Ambos riam desalmadamente, levavam aquilo a brincar e começaram a gozar com o Madeira.


- Então o que foste dizer à menina, pá?


- Olha, eu queria protestar, não venho aqui aprender a lavar carros, de resto não é coisa que se aprenda, o gajo mais tosco do mundo aprende isso em minutos. A tipa disse que o chefe desta porra é aquele gajo que está sempre a falar no portátil, ela diz que é o engenheiro Martins.


- Sim - respondeu - é o gajo que organiza todos os cursos aqui; aqui e de quase todo o país, é o gajo da Porrex.- respondeu o vivaço do Coelho Antunes.


- É mesmo nome para a porra de uma empresa de cursos de lavadores.


- Não são cursos pá. É sacar massas à Europa com comissão para os gajos do ministério ou do partido.


- Atenção, meus senhores, perdão, minhas senhoras e meus senhores. Estamos aqui para aprender a lavar e preparar viaturas automóveis. Para começar, não se esqueçam que a aparência é tudo e nisto, a limpeza é essencial. Um carro, mesmo saído de fábrica vem sujo, quanto mais depois de andar um certo número de quilómetros ou de fazer um longo percurso de barco ou de camião, vem cheio pó, restos de gorduras, ceras, lamas, folhas de árvores, etc. Tanto por baixo como por cima. Por isso a lavagem tem de começar por ....


Porra, porra, dizia para consigo o Madeira. Não era capaz de ouvir mais nada, nem viu o monitor deitar o detergente no balde e exemplificar com uma escova larga a técnica da pré-lavagem.


O Tavares ao olhar para a cara muito séria do Madeira disse-lhe a rir. - Pá, leva isto no gozo, a vida é demasiado triste para levarmos estas coisas a sério. Não vês que os gajos só querem é que a malta assine as fichas para receberem o cacau, não penses que vais para lavador de carros.


- Não, não é isso, sinto-me enganado, desmoralizado e não é com uns porras que resolvo isto. Olha, vou para casa e digo à minha mulher que os filhos da puta me engataram para um curso de lavador de carros. Vai tudo rir-se lá, a minha mulher e a minha filha e até a vizinhança se souber.


- Não te lixes com isso, diz que o curso é de electrónica, computadores ou internet para automóveis. Elas sabem lá o que é isso, e nós também não, - rematou o Tavares.


Na pausa para o café, o Madeira foi falar com o engenheiro Martins que tinha deixado de falar no portátil para beber café também.


- Não sei, foi a Administração da Marca Francesa que vos escolheu e mandou para aqui. Nós só organizámos o processo e pusemos isto a funcionar - respondeu-lhe o engenheiro Martins.


Quando regressaram à Oficina Central, o Madeira foi logo ter com o engenheiro e perguntou furioso. - Então o senhor manda-me para um curso de lavador de carros?


- É só um proforma, Madeira, já não precisas de ir lá mais, foi só para assinares as fichas.


- Está bem, mas olhe que se haver azar ponho a boca no trombone. Isto é uma aldrabice.


- Não tenhas medo pá, já demos cursos a milhares de gajos e nunca houve problemas.




publicado por DD às 21:53
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